Artigo Destaque dos editores

Um novo paradigma para o licenciamento ambiental:

construindo alternativas eficientes e eficazes

24/11/2015 às 08:26
Leia nesta página:

O atual paradigma que sustenta o nosso modelo de licenciamento ambiental, centrado nos Estados, e desenhado durante o regime militar, fracassou. É preciso repensá-lo para evitar novas tragédias ambientais e enfrentar as mudanças do clima.

Não é preciso pensar muito tempo para ver que o nosso atual paradigma de licenciamento ambiental está superado. Exemplos como o crime ambiental que matou o Rio Doce em Minas Gerais, a falta de água em São Paulo e as enchentes que assolam as cidades em vários cantos do país demonstram que o modelo gestado em 1981, pela Lei 6938/81, durante a ditadura militar, e concentrado nos Estados, fracassou.

Precisamos ampliar a base da gestão ambiental, oferecer condições técnicas aos Municípios, para  que estes passem a atuar no licenciamento ambiental, e fomentar instrumentos como a gestão integrada, consorciada e por bacias hidrográficas.

É irônico, mas os Estados também respondem pela gestão das bacias hidrográficas, no entanto, os custos das cheias que atacam a base da pirâmide, via de regra, são arcados pelos Municípios ou pela União.

No caso do Rio Doce é o Município de Governador Valadares – MG, que vai responder pela falta d’água decorrente de um processo de licenciamento ambiental falho, sem a adoção dos devidos sistemas de controle, e que permitiu a instalação de gigantescas barragens à montante da bacia hidrográfica. O convite para uma tragédia era evidente, e os resultados comprovaram isto.

Mas não é somente este o problema. Fruto de um Federalismo incompleto, de sistemas de informação que não se comunicam, e da falta de planejamento, especialmente dos Estados, não conseguimos ofertar respostas que atendam adequadamente “às duas grandes coalizões de defesa que atuam nos processos de licenciamento ambiental”. Nem aos movimentos ambientalistas, nem ao setor empresarial. E o pior, sou obrigado a concordar que ambos têm absoluta razão!

A excessiva concentração de poderes na mão dos Estados, e neste ponto a Lei Complementar nº 140/2011 acabou sendo um retrocesso, especialmente em relação ao art. 6º da antiga Resolução 237/1997 do CONAMA. A Nova Lei Complementar não resolveu os conflitos federativos, e continua sendo um grande entrave para o aperfeiçoamento do sistema. Logo, é um ponto de atraso.

Para a norma regulamentar do CONAMA, o ponto de partida era o impacto ambiental, inicialmente sempre partindo do âmbito local. Já a Lei Complementar acabou consolidando as falhas do sistema, ao definir que os Conselhos Estaduais do Meio Ambiente são os responsáveis pela classificação das atividades licenciadas pelos Municípios, tomando como referência o “porte” e o “grau de impacto ambiental” dos empreendimentos como ponto de partida. Agora eu pergunto: o que caracteriza um empreendimento de baixo impacto ambiental, um de impacto médio ou de impacto alto? Se a pergunta for feita aos legisladores, nenhum saberá responder! Vou mais longe, duvido que a maior parte dos órgãos ambientais ofereça resposta satisfatória a esta pergunta.

Em estudos realizados com matrizes, cruzando elementos impactantes, como lançamento de efluentes, poluição sonora, radiação, dentre outros, é possível derrubar os conceitos de impacto alto, médio e baixo que são hoje utilizados no Rio Grande do Sul, por exemplo. Afinal, o que é mais impactante, uma fábrica de telhas com pintura localizada numa região geologicamente adequada, ou uma fábrica de telhas sem pintura perto de um corpo hídrico que ultrapassa os limites do Município. Se utilizarmos a Resolução nº 288/2014 do CONSEMA/RS, é a primeira atividade. Mas se pensarmos com base na realidade de fato, com certeza, a segunda.

Aliás, a nefanda Resolução 288/2014 do CONSEMA/RS ainda carrega outras "pérolas", como a classificação de hospitais. Para a referida norma, todos os hospitais com atividades de baixa complexidade são licenciados pelos Municípios. Já os de média e de alta, pelo Estado. Ocorre que a complexidade é a dos serviços médicos, e não a ambiental. Na prática, não há grande mudança no regime de gestão e de construção dos hospitais sob o ponto de vista ambiental. A diferença ocorre em relação aos serviços médicos, e tal definição deve ser feita pelo Ministério da Saúde, e não pelo CONSEMA.

E aqui temos outro ponto de reflexão, não se justifica o licenciamento ambiental de serviços pelos estados, destinando um quadro de servidores para tratar de assuntos que poderiam ser apreciados pelos Municípios, enquanto a gestão das bacias hidrográficas e a integração da sua base de dados, elemento com uma natureza regional muito mais evidente, continua abandonada.

Ainda poderíamos considerar temas como as questões energéticas, as mudanças climáticas, a proteção da biodiversidade, e uma série de outros assuntos que precisam ser aprofundados, contudo, continuamos perdendo tempo em algo que deveria ser imperativo, que é a municipalização do licenciamento ambiental. Todavia, o objetivo deste artigo não é esgotar o tema, e sim provocar questionamentos e reflexões.

Nesse sentido, proponho algumas medidas que deveriam ser observadas com atenção:

1º) Um elemento é óbvio: Os órgãos ambientais precisam compor o centro da gestão pública, com um aporte mais significativo de recursos. Somente um administrador que vive no passado não consegue observar o papel estruturante das políticas ambientais, que hoje ganham a mesma relevância dos sistemas financeiros e jurídicos no gerenciamento dos governos, e de políticas sociais como saúde, da educação e assistência social. Hoje os órgãos ambientais cumprem, também, um papel fundamental no controle interno da administração, por isso a sua relevância estruturante. Infelizmente, ainda são poucos os administradores que já observaram esta dinâmica, ao ponto de apenas 15, entre os mais de 500 municípios existentes no Estado do Rio Grande do Sul, estarem pleiteando a ampliação de competências junto ao Governo do Estado.

2º) Municipalizar, de forma intensiva, o licenciamento ambiental. O tema é tão relevante que mereceria um programa nacional organizado, inclusive com ações de fomento, especialmente no campo de pessoal e tecnológico, assim como ocorre nas políticas de saúde e educação. Aliás, investir em política ambiental pode ser muito mais importante para o segmento da saúde do que nas áreas tradicionais, dado o crescimento nos indicadores de doenças com origem em danos ambientais causados pela poluição ou pela falta de saneamento. Ou seja, o dinheiro aplicado na gestão ambiental é um investimento no futuro e em saúde pública. Destaco ainda que demora na municipalização também é culpa da falta de interesse dos órgãos de controle, especialmente o Ministério Público e os Tribunais de Contas, que continuam atrasados na discussão do tema.

3º) É preciso ampliar as atribuições dos municípios grandes e médios, e dos sistemas regionais estruturados. Não se justifica a excessiva concentração de atividades nos Estados que, por sinal, deveriam atuar muito mais como articuladores das políticas ambientais, concentrando a gestão de bacias e a integração de ações dos Municípios, especialmente os de pequeno porte. Poderíamos copiar o modelo do SUS, onde o Estado e a União repassam recursos permanentemente aos Municípios para cobrir despesas dos serviços, propiciando, até mesmo, que as redes de gestão melhor estruturadas também possam atender aos pequenos, dando mais agilidade ao sistema, o que também pode ser ajustado por meio de convênios ou repasses fundo a fundo.

4º) Também é urgente a retirada das despesas com pessoal em políticas ambientais dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, pelo menos como moratória planejada. Não se justifica mais o nosso atraso no enfrentamento de problemas como as mudanças climáticas e a crise energética por falta de pessoal habilitado para análise destes temas. A LRF já cumpriu o seu papel, e hoje vem prejudicando várias políticas sociais, como a universalização da educação básica, da saúde e das políticas ambientais, sem considerar a insistência dos Tribunais de Contas em realizar a dupla contagem de programas como o de Saúde da Família. Garantir a ampliação dos quadros municipais voltados à gestão ambiental hoje é uma questão de prioridade nacional.

5º) Precisamos repensar os nossos modelos de gestão ambiental, saindo do limitado modelo “intra-lotes”. Existem muitas atividades, especialmente no setor primário, energético, serviços públicos, inclusive portuários, que devem ser pensadas de forma integrada ou consorciada. O desperdício de tempo com a análise fechada em pequenos grupos demanda duplo trabalho e um imenso prejuízo econômico e ambiental. E aqui novamente uma crítica aos órgãos estaduais (neste caso, também o Federal), que licenciam o sistema portuário, por exemplo, inclusive atividades de dragagem, de forma fragmentária, enquanto o assunto deveria ser trabalho em conjunto, considerando as características da bacia hidrográfica e dos ecossistemas lindeiros. O atual modelo apenas produz prejuízos, tanto sob o ponto de vista econômico como, especialmente, o ambiental.

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6º) É urgente incorporar tecnologia aos sistemas ambientaisInfelizmente, ações como o Programa da Administração Tributária – PMAT, ainda foram pensados, exclusivamente, com foco na arrecadação. Isto é um erro que prejudica a própria gestão dos orçamentos. Os programas de modernização da administração deveriam ser focados nos sistemas ambientais, que formam a base da pirâmide. Uma rede de Sistemas de Informações Geográficas Ambientais permitiria uma redução de bilhões de reais em despesas com defesa civil, saúde, saneamento, habitação, transporte e outras áreas, pois teríamos as bases de dados disponíveis, garantindo ações planejadas. Na outra ponta, a própria arrecadação seria aperfeiçoada, pois não podemos mais pensar as políticas econômicas sem considerar a centralidade da variável ambiental, e os dados coletados em campo pelo segmento ambiental pode ser reduzido a microescalas, permitindo a sua integração com a gestão financeira.

A incorporação de tecnologia em todos os setores da administração é um imperativo categórico, pois reduz despesas de custeio, aumenta a eficiência e, principalmente, a eficácia de políticas públicas, o que pode ser medido por indicadores de qualidade.

O caso do Rio Doce é um paradigma, pois demonstra como a desídia técnica deverá resultar num imenso volume de despesas públicas gigantesco e em várias áreas, que vão desde a recuperação do rio (ambiental estrito), até a criação de mecanismos de apoio à subsistência das populações tradicionais (assistência social), ou o abastecimento de água da população (saneamento), apenas para ficar em alguns pontos. Neste caso, a fragilidade da Lei de crimes ambientais gestada em 1998, também é um ponto de atraso, pois não só o ambiente, mas toda a economia regional acabou sendo afetada por um único empreendimento, claramente mal planejado e, historicamente, sem controle.

7º) Precisamos trazer a academia ao mundo da realidade da gestão ambiental. Hoje desperdiçamos intelectuais ou formamos acadêmicos com pensamento parcelar, com base em paradigmas do século XIX. As universidades devem atuar diretamente no fortalecimento dos sistemas ambientais, especialmente no campo da extensão e da formação continuada. É uma forma de romper com o pensamento imediatista dos meros cursos de capacitação. Não existe capacitação efetiva por certificados, precisamos pensar a médio e longo prazo, e por isso a importância da formação continuada.

Em síntese, como disse anteriormente, este é um breve resumo sobre o assunto, que merece um estudo muito mais amplo e de maior complexidade. Mas, é preciso trocar a posição da gestão ambiental nas matrizes de gestão administrativa da coluna das ameaças e levá-la para a das virtudes. A dinâmica de possibilidades é imensa, mas para isso precisamos romper paradigmas ultrapassados e reconstruirmos nossos sistemas de gestão ambiental.

Se nos focarmos apenas nos processos de aprovação de projetos, é possível notar que a licença ambiental, pela complexidade, E CASO SEJA FOMENTADA A MUNICIPALIZAÇÃO, pode incorporar as tradicionais e ultrapassadas licenças do papel e do carimbo, como a urbanística e a de atividades. Também pode ser associada à licença sanitária, e incorporar o licenciamento de prevenção contra incêndios. Somente nesse pequeno estudo de hipóteses, reduzimos a nossa imensa burocracia, que chega a envolver 16 licenças para empreendimentos, ao número de 4 ou 5, e isto não traz nenhum prejuízo à administração pública, e nenhum prejuízo ao ambiente.

Mas este é um tema que merece um tratamento carinhoso, pois envolve, inclusive, remanejamento fiscal e tributário. Seria necessária uma reengenharia do nosso sistema de gestão pública, o que acaba sendo facilitado quando levado para a esfera municipal. Contudo, é um assunto importante e que não pode ser esquecido. Desta forma, deve, isto sim, ser aprofundado.

Precisamos parar de ver as questões ambientais como problemas, isso faz parte da cegueira de pessoas que veem o mundo com os óculos do passado. Hoje a temática ambiental é a grande solução para a maior parte dos problemas administrativos, econômicos e sociais. Infelizmente, esta é uma virtude que ainda é enxergada por poucos, alguns dos quais preferem ficar sentados na sua região de conforto, além daqueles que não pretendem mudar relações de poder, muitas das quais criadas ainda em regimes de exceção.

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Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Sandro Ari Andrade. Um novo paradigma para o licenciamento ambiental:: construindo alternativas eficientes e eficazes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4528, 24 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44786. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

O artigo visa estabelecer a discussão sobre o processo de licenciamento ambiental, e é uma síntese de palestra realizada na Feira do Pólo Naval de Rio Grande em 10 de novembro de 2015.

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