São muitos os articulistas que discorrem sobre as altas taxas de letalidade que caracterizariam a atuação das forças policiais. Quase sempre as causas da “barbárie” estão relacionadas ao despreparo, aos excessos cometidos voluntariamente e à militarização, responsável, em parte, pela disseminação da doutrina do “inimigo”. Estranhamente, não são tecidas considerações sobre eventual culpa por parte do abordado ou mesmo por parte daqueles que se veem na condição de investigados.
Segundo dados do FBI (Federal Bureau of Investigation), em 2013, 27 policiais morreram em serviço nos EUA. Ainda segundo a Polícia Federal Americana, esse número saltou para 51 em 2014, quantitativo assustador que, segundo a própria instituição, refletiria as tensões entre policiais e membros da comunidade[1]. Já no Brasil, país da suposta cordialidade inata, 490 policiais tiveram mortes violentas em 2013, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública[2]. Número esse que, infelizmente, não chega a surpreender.
O aumento do número de policiais mortos nos EUA levou o Diretor do FBI, James Cormey, a apontar como uma das causas a “especialmente difícil relação entre polícia e as comunidades que servimos”, comentário veiculado em diversos meios de comunicação brasileiros[3]. Isso claramente demonstra a correlação direta que existe entre tais mortes e a postura da comunidade.
Como regra, o primeiro contato do policial com o indivíduo se dá por meio da busca pessoal, cabível em caso de fundada suspeita, ex vi do Artigo 244, do Código de Processo Penal. Geralmente, é por meio da busca que ocorrem as ações policiais desequilibradas (desproporcionais ou desarrazoadas). Ainda que causem um reconhecido desconforto, são elas necessárias em um estado de democrático de direito, no qual a segurança da coletividade está em primeiro lugar.
Ao passo que o contribuinte deseja ser abordado de forma respeitosa, espera o policial que o abordado demonstre deferência. A cortesia, em boa medida, ditará o ritmo da abordagem. Em sentido oposto, o descaso e atitudes irresponsáveis por parte do abordado poderão demandar o uso progressivo da força, eventualmente ocasionando lesões indesejáveis em um ou em outro.
Não se pode admitir a tortura como meio à conquista de elementos probantes. Da mesma forma que se deseja uma postura adequada do abordado frente à autoridade estatal, essencial é o cumprimento à lei. Por isso, nada justifica ferir de morte a dignidade da pessoa humana. Certo é que a legitimidade para exigir prudência por parte do abordado somente será conseguida com a fiel obediência à Constituição.
Infelizmente, ainda convivemos com a prática do linchamento, algo impensável em sociedades um pouco mais maduras. Por aqui, não estamos livres de ver noticiadas, em rede nacional, mortes de criminosos (ou simplesmente suspeitos[4]) vitimados por pauladas, pedradas e pancadas de todo o tipo, prática comum em um passado distante, em que a regra era a obtenção da justiça com as próprias mãos. Pior é inferir que ações dessa natureza revelam a terrível face de uma violência desmedida por parte da nossa população, que ainda expressa o nefasto prazer de matar.
As indagações a serem feitas, portanto, são as seguintes: em alguma medida, poderá o abordado violento ser também responsável pelas lesões causadas em sua própria pessoa? Colocando de outro modo, poderão suas ações influenciar o comportamento do policial, de maneira a contribuir com reações que não seriam necessárias, por parte deste, caso os comandos legítimos houvessem sido obedecidos?
Não há como negar que a violência do abordado irá refletir no comportamento do policial. Um movimento brusco, por exemplo, poderá levar o policial a se julgar amparado por uma descriminante putativa[5], ou mesmo por uma excludente de ilicitude[6]. E ainda que não estejam presentes quaisquer das situações postas, há de se considerar a possibilidade de eventual culpa concorrente, ainda que inadmissível a compensação de culpas[7].
Em que medida a imprudência poderá determinar uma ação policial correta, ou mesmo incorreta? Por mais surpreendente que pareça a indagação, é ela necessária ao próprio avanço da ciência policial. Todas as hipóteses devem ser consideradas e uma delas é que revela uma postura inconsequente por parte do abordado.
Mesmo estando distantes das guerras civis tradicionais, vivenciamos nossa guerra particular. Criminoso no Brasil utiliza armamento próprio das forças armadas, tal como o fuzil calibre .50. Por aqui, explosivos são usados como brinquedo de criança, usados para a destruição (e furto!) de instituições bancárias e dos seus terminais de auto-atendimento. Já tivemos a oportunidade de ver, no noticiário, criminosos abatendo um helicóptero das forças de segurança cariocas[8], ocorrência em que restaram carbonizados dois policiais.
Por óbvio, os excessos policiais existem e de nada adianta tentar “tapar o sol com a peneira”. Sem muito esforço, podemos apontar como causas o famigerado despreparo, a falta de investimento e mesmo frustrações de ordem pessoal ou profissional. Todas elas, entretanto, não justificariam o tratamento dispensado ao contribuinte, sujeito de direitos e titular primeiro da autorização dada à instituição pública legitimada a fazer o uso da força física. O contraponto que se faz está relacionado à violência da própria população, que de forma direta ou indireta, contribui para o aumento do número de pessoas mortas em ações policiais. É hora de deixar de lado a parcialidade, presente em inúmeras avaliações acadêmicas que gratuitamente condenam a atividade policial.
Ainda que partindo de algumas premissas equivocadas (se consideradas a extensão do território brasileiro e as peculiaridades de cada força de segurança), a Portaria Interministerial nº 4.226, de 31 de dezembro de 2010, veio estabelecer diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública. Dentre as recomendações positivas, merecem destaque a tentativa de disseminar o uso de equipamentos de menor potencial ofensivo (como o dispositivo eletrônico de controle – DEC, popularmente conhecido como taser, item nº 08) e a busca pela manualização de procedimentos (item nº 09).
Sobre a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, também foi publicada a Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, normativo que, por exemplo, dispôs, em seu art. 3º, acerca da necessidade de os cursos de formação policial preverem disciplinas que habilitem os futuros policiais a utilizarem equipamentos menos letais. Vê-se, assim, a importância dispensada às Academias de Polícia, no que tange à disseminação da doutrina do uso progressivo da força.
É oportuno reforçar que a violência e o uso legítimo da força não se confundem. A primeira é fruto da falta de técnica, de equipamentos, ou mesmo da ausência de planejamento, situações que acabam por expor uma ação incorreta, por vezes criminosa. O uso legítimo da força, por outro lado, resulta da ação legal, necessária e proporcional, amparada nos princípios que norteiam a abordagem policial, sempre tendo como foco o interesse público e o respeito à dignidade da pessoa humana.
Não é por capricho que o policial, durante uma abordagem, comanda o popular “mãos na cabeça”. É dela, das mãos, que pode surgir uma agressão, e por essa razão, é necessário que estejam em lugar visível, evitando, assim, que o policial seja obrigado a repelir o ataque. E se o policial não tiver à sua disposição instrumentos de menor potencial ofensivo? Fará ele uso da sua arma de fogo, e o resultado provável, já sabemos qual será.
Os argumentos ora apresentados não objetivam justificar a ação policial violenta, mas demonstrar que existe uma conexão – direta ou não – entre algumas das mortes e uma inconsequente postura do abordado. No mesmo sentido, nossas polícias carecem de investimentos voltados à aquisição de instrumentos menos letais e à ampliação dos respectivos cursos de capacitação. Por mais que saibamos que eventual violência deva ser afastada de maneira técnica, é a partir dela, da violência do abordado, que poderão surgir indesejáveis reações desproporcionais.
Notas
[1]Disponível em: https://www.fbi.gov/about-us/cjis/ucr/leoka/2013/officers-feloniously-killed/felonious_topic_page_-2013. Acesso em 20 out. 2016.
[2]Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2014_20150309.pdf. Acesso em 20 out. 2016.
[3]Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/estados-unidos/numero-de-policiais-mortos-em-acao-aumenta-89-em-um-ano-nos-eua-fbi,761490783bd8e1ddae676e87f40901076uedRCRD.html. Acesso em 20 out. 2016.
[4]Disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mulher-morta-apos-boato-em-rede-social-e-enterrada-nao-vou-aguentar.html. Acesso em 20 out. 2016.
[5]Art. 20, do CPB.
[6]Art. 23, II, do CPB.
[7] “Ao contrário do que ocorre no âmbito do Direito Civil, em sede penal não há compensação de culpa. Se o agente age culpavelmente e para o resultado colaborou a vítima de forma imprudente ou negligente, o que se deve é levar tal contribuição na fixação da pena. Com efeito, entre as circunstâncias judiciais situa-se o comportamento da vítima (art. 59, CP)” (PIRES, Ariosvaldo de Campos. Compêndio de Direito Penal, 2005, p. 148).
[8]Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/traficantes-derrubam-helicoptero-da-pm-no-rio-dois-morrem,98a85e49aa90b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acesso em 20 out. 2016.