A obrigatoriedade da ação regressiva decorrente da responsabilidade civil do Estado por ato ilícito

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Este trabalho tem como objetivo o exame da obrigatoriedade ou não da propositura pelo Estado da ação regressiva contra seu agente quando causador de dano a terceiro pelo qual a Administração responda, bem como de eventuais alternativas quando omissa.


 

RESUMO

Este artigo teve por objetivo o estudo da ação regressiva e de sua obrigatoriedade a partir da prática de ato ílicito que culmine em responsabilização civil estatal. Foi usado o método dedutivo de abordagem, e a análise bibliográfica e legal, como método procedimental. Primeiramente, demonstrou a hipótese de responsabilidade civil do Estado que permite a propositura da ação regressiva. Após, examinou a natureza da ação regressiva e suas características. Respondendo o objetivo desta pesquisa, constatou a obrigatoriedade da propositura da ação regressiva pelo Estado, tendo como causa maior o princípio da indisponibilidade do interesse público. Como alternativa à inação do Estado, examinou o cabimento da propositura da ação popular e da ação civil pública. Este artigo concluiu que a ação regressiva é obrigatória em decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público, e que, na sua ausência, dispõe a sociedade da possibilidade de propor a ação popular ou a ação civil pública. De acordo com a pesquisa realizada, essa solução melhor atende ao interesse público.

Palavras-chave: Ação regressiva. Responsabilidade Civil do Estado. Princípio da indisponibilidade do interesse público.
 

ABSTRACT

This article has as its objective the study of the regressive lawsuit and of its mandatory, after the commitment of a illegal act which causes State responsibility. It was developed by the deductive method of approach, with a bibliographic and legal analysis, as the procedural method. First of all, it was demonstrated the hypothesis of civil liability of State which permits the regressive lawsuit. Then, it was examined its nature and its characteristics. It was found that its propose is mandatory, because of the principle of non disposability of public interest. As an alternative to State omission, it was examined the possibility of public interest action and public civil action. It was concluded that the regressive lawsuit it is mandatory, because of the principle of non disposability of public interest, but, if not offered, the society has as options the public interest action and public civil action. According to this ressearch, that is the best solution in order to obbey the public interest.

Keywords: Regressive lawsuit. Civil State Liability. Principle of non disposability of public interest.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa retrata um ponto pouco abordado pela sociedade, embora lhe seja de grande valia por tratar de um tema que lhe afeta diretamente e à Administração Pública.

O dispêndio de dinheiro público para arcar com condenações judiciais relativas a atos ilícitos praticados por agentes públicos, nos casos de Responsabilidade Civil do Estado, e a inação da Administração Pública para deles cobrá-los merece maior destaque dos meios de comunicação e jurídicos por dizerem respeito em elevado grau ao erário público.

Este artigo, desse modo, visa à investigação do instituto da ação regressiva e de sua obrigatoriedade e do modo como é aplicado em nosso ordenamento, especificamente quanto aos atos ilícitos praticados por agentes públicos, excluídos os caracterizados como de improbidade administrativa.

Para tanto, inicia-se com uma breve explanação sobre a Responsabilidade Civil do Estado, condição sem a qual não há que se falar em ação regressiva, esta sim, analisada mais a fundo no primeiro tópico, porém nos limites da natureza dessa pesquisa.

Após a análise de seus requisitos e especificidades, em especial no que tange à obrigatoriedade de sua propositura e sua relação com o princípio da indisponibilidade do interesse público, examinam-se a ação popular e a ação civil pública como alternativas à sociedade, quando imóvel a Administração.

2 A AÇÃO REGRESSIVA

2.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

A responsabilidade civil do Estado tem lugar, nos termos do lecionado por Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 1009), quando a este é atribuída a obrigação de indenizar terceiro por dano a ele provocado em virtude de um comportamento unilateral, licíto, ilícito, comissivo ou omissivo, causado ou permitido por um agente público.

Importante frisar que a responsabilidade estatal é sempre civil, ao passo que, além desta, a do agente pode ter natureza penal ou administrativa (BARCHET, 2011, p. 547).

É unilateral, porque aquela que decorre de atos bilaterais tem previsão específica, regida, em primeiro plano, pela Lei de Licitações e Contratos nº 8.666/1993 (BARCHET, 2011, p. 549)

Pode configurar-se através de uma conduta comissiva (fazer) ou omissiva (não fazer) do agente público, e concretizar-se por meio de um ato ílicito ou lícito, embora, advirta-se, não haja consenso quanto a este último (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1326), discussão em que não se adentra, por fugir ao objeto desta pesquisa.

Para dar contornos mais definidos ao âmbito deste trabalho, ressalta-se que se restringirá à análise do cabimento da ação regressiva ou de outras medidas cabíveis a partir da prática de um ato ilícito.

Não serão alvo de estudo, todavia, aqueles atos tipificados como de improbidade administrativa, que, embora ilícitos, possuem procedimento próprio para recuperação dos valores, conforme previsto na Lei nº 8.429/1992, tais como o ressarcimento ao erário e perda de bens, que podem ser assegurados através da decretação da indisponibilidade dos bens do acusado e do sequestro (BARCHET, 2011, p. 648).

Aqui, vale lembrar a lição de Marçal Justen Filho (2014, p. 1084), no sentido de que a improbidade está contida no universo dos atos ilícitos em sentido amplo, nele se diferenciando dos demais por agregar uma qualificadora própria: a violação intencional da moralidade.

Conforme o referido autor (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1084), “[...] somente haverá improbidade se o sujeito tiver violado conscientemente o dever de moralidade”.

Posto isso, chega-se à problematização proposta: quais os meios legalmente dispostos para recuperar os valores gastos pela Administração em decorrência de condenação por ato ilícito gerador de responsabilidade civil? É eficiente a ação regressiva?

2.2 A AÇÃO REGRESSIVA

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) estatui em seu artigo 37, § 6º que:

As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

A ação regressiva, ou ação de ressarcimento, é aquela posta à disposição do Estado para que este se volte contra o agente público causador do dano a terceiro, a fim de que se devolva ao erário o valor dispendido para indenizá-lo pelo ato ilícito praticado (BARCHET, 2011, p. 566).

Pode se direcionar, segundo Numa P. Do Valle (1925, citada por CAHALI, 2014, p. 211), a agente investido em qualquer cargo público, independetemente de hierarquia ou tipo, seja eletivo ou por nomeação, tendo por escopo a moralização e a educação cívica e política.

Entretanto, sua definição não é consensual na doutrina. A começar pela eleição de seus requisitos.

Para Mello (2013, p.1050), são elementos indispensáveis à sua propositura a existência de condenação da pessoa de Direito Público ou Privado prestadora de serviço público “a indenizar terceiro por ato lesivo do agente” e a presença de dolo ou culpa no seu agir.

2.2.1 O requisito do dolo ou culpa

O dolo ou culpa na conduta do agente é o elemento subjetivo que não se afere no processo movido contra o Estado, em razão da consagração pela Constituição Federal da responsabilidade objetiva, mas que deve ser apurado na ação de regresso, regida pelos ditames do Código Civil, e, em consequência, pela responsabilidade subjetiva (MEIRELES, 2007, p. 661).

Isso quer dizer ser plenamente possível a condenação do ente público à indenização ao terceiro, e, ao mesmo tempo, a improcedência da ação de regresso, “[...] basta que, no caso concreto, não tenha o agente agido dolosa ou culposamente, mas, ainda assim, tenha com seus atos causado dano injusto ao particular.” (BARCHET, 2011, p. 566).

Não é todavia, como pensa Justen Filho (2014, p. 1364-1365). Para ele, o sistema constitucional vigente pressupõe a ciência por parte do agente público da natureza e importância de sua função e das consequências que sua atitude comissiva ou omissiva podem gerar, dentre elas a responsabilização civil do Estado, motivo pelo qual deve adotar todas as cautelas no sentido de evitá-la.

Ora, a simples consciência de que os cofres públicos poderão arcar com sérios prejuízos em virtude da conduta pessoal basta para impor um dever de grande cuidado e cautela ao agente estatal. Portanto, a responsabilização civil do agente tende a uma objetivação de culpabilidade idêntica àquela que se processa quanto ao próprio Estado. (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1365)

Tal fato, segundo o autor, não quer dizer que a responsabilidade do agente seria puramente objetiva, mas que a cautela especial inerente à função afasta escusas relacionadas a eventual ignorância, ingenuidade ou falta de intenção de produzir o dano (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1365).

2.2.2 O requisito da condenação e a possibilidade de denunciação à lide

Segundo Barchet (2011, p. 566), a doutrina majoritária se inclina em favor da orientação de que só é possível o ajuizamento da ação regressiva após o trânsito em julgado da decisão condenatória movida pelo lesado contra o Estado.

De mesmo modo, incabível seria a denunciação à lide do agente público nesse processo, tendo em vista o fato de que, embora ao autor fosse necessário somente comprovar a responsabilidade objetiva, ao Estado incumbiria demonstrar a culpa ou o dolo do agente no curso da mesma ação, o que acarretaria num atravancamento prejudicial ao trâmite processual (BARCHET, 2011, p. 566).

Tal entendimento, entretanto, não é uníssono.

Para Mello (2013, p. 1050), não há contradição em se exigir uma condenação como requisito da ação regressiva, ficando ao critério do terceiro lesado decidir se move a ação indenizatória diretamente contra o agente, contra o Estado, ou ambos. De todo o modo, a ação regressiva seria movida após a condenação.

Do contrário, estaria-se a ceifar a garantia do acesso à Justiça (CARVALHO NETO, 2000, p. 160).

A razão disso reside no fato de que a responsabilidade civil do Estado não se configura como uma restrição ao administrado no seu direito de ação, tampouco uma proteção ao funcionário causador do dano, mas sim uma forma de ampliar a possibilidade do terceiro ser amparado pelo ato lesivo (MELLO, 2013, p. 1053).

Isso, porque o patrimônio do agente muitas vezes seria insuficiente para cobrir toda a extensão da dívida, ou então não haveria que se falar em dolo ou culpa em sua conduta, podendo até mesmo se estar diante de um ato lícito (MELLO, 2013, p. 1052-1053).

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Não bastasse isso, Mello (2013, p. 1056) se posiciona favoravelmente ao entendimento de que a denunciação à lide ainda seria crucial ao agente público para que este pudesse influenciar ativamente no convencimento do juiz quanto ao valor da indenização a ser fixada e para evitar o ônus de arcar com as despesas relativas a dois processos distintos.

Yussef Said Cahali (2014, p. 212) segue no mesmo sentido, e acrescenta que, a despeito da possibilidade de denunciação à lide, nesse caso, a sentença deve decidir necessariamente sobre a responsabilidade do Estado em relação ao autor, assim como a do agente público perante o Estado.

Indo além, aduz que não basta o trânsito em julgado da decisão condenatória: embora esta se caracterize como um título executivo, é imprescindível que o Estado tenha efetivamente pago a dívida, uma vez que, do contrário, evidenciado estaria caso de apropriação ilícita, pois inexistente desfalque ao erário (CAHALI, 2014, p. 213).

2.2.3 Outros aspectos

É de se lembrar que a Administração não pode, de modo algum, descontar diretamente dos vencimentos do servidor os valores correspondentes ao prejuízo sofrido, ainda mais sem um título executivo judicial (CAHALI, 2014, p. 215).

Havendo processo penal, abrem-se quatro hipóteses: a condenação criminal do servidor, sua absolvição por negativa de autoria ou do fato, por ausência de culpabilidade e, enfim, por insuficiência de provas (MEIRELES, 2007, p. 662).

Nos dois primeiros casos faz-se coisa julgada no que tange aos processos civil e administrativo: se houver condenação, o agente sujeita-se à reparação do dano de imediato, sem necessidade de outro processo; se houver absolvição pela negativa de autoria ou do fato impede-se a responsabilização do agente (MEIRELES, 2007, p. 662).

Nos demais casos não é obstada a propositura da ação regressiva, porque se limitam a afastar tão somente a responsabilidade criminal, ou a declarar a insuficiência de provas para condenação nessa seara, permitindo-se, assim, a análise do ilícito pelo enfoque do Direito Civil (MEIRELES, 2007, p. 662-663).

Inacio de Carvalho Neto (2000, p. 153-157) trata do direito de regresso contra os agentes políticos, aduzindo ser possível contra os legisladores (ressalvadas as imunidades constitucionais), contra o Presidente da República, e contra membros do Ministério Público e magistrados, nesses dois últimos casos excluída a hipótese de responsabilidade por culpa, somente dolo e fraude, em virtude de previsão legal – artigos 85 e 133 do Código de Processo Civil.

Por fim, a ação regressiva caracteriza-se como uma espécie do genêro ações de ressarcimento, que, de acordo com o artigo 37, § 5º da Constituição Federal, são imprescritíveis, e podem ser propostas mesmo depois de desfeito o vínculo funcional entre o agente e a Administração (BARCHET, 2011, p. 566).

Tal endendimento, todavia, embora compartilhado por nomes como Celso Antônio Bandeira de Mello, Celso Ribeiro Bastos e José Afonso da Silva, é confrontado por Yussef Said Cahali, que defende a aplicação do prazo previsto para a ação de reparação de danos, de três anos, conforme o artigo 206, § 3º, do Código Civil (CAHALI, 2014, p. 215-216).

Para Mazza (2012, p. 306) esse prazo só é aplicado quando o servidor for ligado a empresa pública, sociedade de economia mista, fundação governamental, concessionária ou permissionária.

2.3 A OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO REGRESSIVA

Ao Estado é atribuído o dever-poder de propor a ação regressiva contra seu agente que praticou ou se omitiu dando ensejo à condenação judicial para reparação do dano causado (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1365).

Dever-poder assim conceituado como uma obrigação à prática de “todas as condutas necessárias e adequadas” voltadas para o atendimento ao interesse da sociedade como um todo (JUSTEN FILHO, 2014, p. 147), no caso, a ação regressiva.

De acordo com Justen Filho (2014, p. 1365), no nível federal tal obrigação foi regrada por meio da Lei nº 4.619 de 1965. Seu artigo 1º vem assim redigido:

Art. 1º Os Procuradores da República são obrigados a propor as competentes ações regressivas contra os funcionários de qualquer categoria declarados culpados por haverem causado a terceiros lesões de direito que a Fazenda Nacional, seja condenada judicialmente a reparar. Parágrafo único. Considera-se funcionário para os efeitos desta lei, qualquer pessoa investida em função pública, na esfera Administrativa, seja qual fôr a forma de investidura ou a natureza da função.

Entretanto, a ação regressiva é de fato utilizada pelo Poder Público? Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 1056) não. Oportuno se faz colacionar a crítica que faz sobre o instituto:

É que o Poder Público dificilmente moverá a ação regressiva, como, aliás, os fatos o comprovam de sobejo. Tirante casos de regresso contra motoristas de veículos oficiais – praticamente os únicos fustigados por esta via de retorno – não se vê o Estado regredir contra seus funcionários.

Os motivos para tal, segundo o citado autor, são vários. A começar pelo sentimento de corporativismo ou solidariedade com o subalterno, pois este perfaz sua conduta danosa muitas vezes respaldado pelo superior hierárquico, em conluio ou complacentemente, de modo que a propositura da ação em questão exporia a responsabilidade de ambos (MELLO, 2013, p. 1056-1057).

Além disso, a defesa habitual apresentada pelo Estado nas ações de indenização movidas pelo terceiro consiste na negação de causalidade ou licitude da conduta atacada, tese que necessariamente teria de ser desmentida por ele próprio na ação regressiva, o que levaria a uma situação constrangedora e de descrédito total (MELLO, 2013, p. 1057).

Estas são as razões pelas quais, tirante o caso dos humildes motoristas de veículos oficiais, praticamente funcionário algum é molestado com ação regressiva. Pode confiar que ficará impune, mesmo quando negligente. Não precisa coibir-se de abusos e até de atos dolosos lesivos aos administrados. O Estado pagará por ele. (MELLO, 2013, p. 1057).

Conclui o autor (MELLO, 2013, p. 1057) aduzindo que a consequência de tal omissão é nefasta, pois, ao contrário de desestimular o agir doloso, negligente, imprudente ou imperito, abre ensejo para condutas tais.

A ação regressiva se proposta, ou o acionamento direto do agente mal intencionado ou descuidado serviria como um remédio contra essa postura, evitando-se “abusos, violências, ou simples descaso do servidor pelos administrados” (MELLO, 2013, p. 1058).

Na mencionada Lei nº 4.619/1965, que trata do assunto, vem disposto em seu artigo 3º, que a não propositura da ação regressiva pelos Procuradores da República constitui falta de exação no cumprimento do dever (BRASIL, 1965).

Entretanto, a julgar pela crítica acima exposta, não se notam efeitos práticos, o que levanta questões como a gravidade da situação, tendo em vista que tal omissão faz com que o prejuízo seja suportado pela sociedade (MOTTA, 2009, p. 397), conduzindo-se ao indagamento sobre as alternativas disponíveis.

2.3.1 A indisponibilidade do interesse público

Tido por Mazza (2012, p. 79-82) como um supraprincípio de Direito Administrativo, pois dele decorrem todos os outros, a indisponibilidade do interesse público pode ser conceituada como “todas as sujeições administrativas, as limitações e restrições impostas pelo ordenamento à Administração com o intuito de evitar que ela atue de forma lesiva aos interesses públicos ou de modo ofensivo aos direitos fundamentais dos administrados”(BARCHET, 2011, p. 56).

Disso decorre o chamado poder-dever de agir da Administração: sempre que a ela for atribuída uma competência, um poder, pelo ordenamento jurídico, será em nome do interesse público, e, por isso, tratar-se-á de uma obrigação, e não de uma faculdade (BARCHET, 2011, p. 56-57).

Ao contrário do direito civilista, no qual aos particulares se permite fazer tudo que não seja proibido em lei, no Direito Administrativo fica evidente o caráter dúplice dos poderes administrativos, porque mais que poderes, consituem-se em deveres (conjugados na expressão poder-dever) instituídos por lei, sem margem para discricionariedade quanto ao exercício ou não dessa competência, nem extensão ou intensidade (BARCHET, 2011, p. 56-57).

A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público -, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis (MELLO, 2013, p. 76).

Dentre outras, Mello (2013, p. 77-78) reconhece como consequências do princípio da indisponibilidade do interesse público, outros princípios, tais como o da obrigatoriedade do desempenho de atividade pública, cujo teor veio exposto acima, e o da legalidade, que traz em seu âmago o sentido de balizar a conduta da Administração: esta deve proceder o que a lei determine, nos termos por ela dispostos.

3 AS ALTERNATIVAS À AÇÃO REGRESSIVA

A razão de ser do princípio da legalidade, contudo, não é a mera organização instrumental do aparelho estatal. É uma garantia e uma proteção à sociedade, pois incorpora um parâmetro de controle da conduta do Estado, permitindo-lhe recorrer de desmandos ou atos danosos por seus agentes perpetrados (MELLO, 2013, p. 963-964).

Existente ilegalidade ou defeito na atuação discricionária da Administração, abre-se espaço para a adoção de medidas destinadas a reverter a irregularidade, que podem consistir em condenações a uma obrigação de fazer, não fazer ou pagar quantia certa (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1213).

Embora parte da doutrina entenda que a expressão “direito de regresso” confira à Administração o poder de voltar-se contra o servidor independentemente de recurso à Justiça, tal corrente é minoritária, sendo necessário pronunciamento jurisdicional (MOTTA, 2009, p. 396).

Isso se dá através do chamado controle externo da atividade administrativa pelo Poder Judiciário, garantido pelo princípio da universalidade da jurisdição, que permite uma ampla fiscalização sobre os atos praticados pela Administração, respeitados certos limites incidentes sobre o exercício da competência discricionária (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1237).

Esse controle pode ser em abstrato, para a análise hipotética de uma lei ou ato normativo em face da Constituição, ou pode ser em concreto, quando há efetivamente um conflito de interesses numa situação real (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1238).

Este último se divide em duas modalidades diferenciadas pelo tipo de interesse aventado: em primeiro lugar, aquela relativa a direito subjetivo, assim classificado como aquele cuja relação jurídica seja facilmente determinável e que tenha sua extensão aferível, de cunho geralmente patrimonial (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1240).

Em segundo lugar, o controle pode se relacionar a um interesse jurídico indepentende da existência de uma relação jurídica imediata entre as partes. É o caso do autor que age em nome do senso cívico, de sujeito pertencente a uma comunidade em busca de benefício comum, e não a si próprio (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1240).

De acordo com Justen Filho (2014, p. 1240), há inúmeras possibilidades de instrumentos judiciais para se demandar a Administração, inclusive processo de conhecimento pelo rito ordinário. Atém-se, aqui, à ação popular e à ação civil pública.

3.1 A AÇÃO POPULAR

A Constituição Federal (BRASIL, 1988) consagrou a ação popular no inciso LXXIII do artigo 5º, com a seguinte redação:

LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Trata-se de uma garantia do sistema democrático que provê um meio de controle da Administração pela população, conferindo a qualquer cidadão legitimidade para o exercício de modo direto de um poder de natureza política, a função fiscalizadora (AFONSO DA SILVA, 2005, p. 462-463).

Tem como alvo atos ilegais ou lesivos que afrontem os valores insculpidos no corpo do artigo citado, aqui destacados os que causam dano ao erário (LENZA, 2012, p. 1060).

A Constituição trouxe ao âmbito da ação popular a moralidade administrativa, que embora enfrente dificuldades conceituais, pode ser violada a partir da conduta praticada com o intuito de prejudicar ou favorecer alguém (AFONSO DA SILVA, 2005, p. 464).

Expressa um interesse jurídico que não se relaciona a uma pretensão pecuniária individual do autor, mas sim à defesa de um bem ou direito comum à sociedade, titularizado pelo Estado (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1278).

Segundo Justen Filho (2014, p. 1278), via de regra, a ação popular não pode se voltar contra ato omissivo, somente quando este “for qualificado juridicamente e produzir efeito de manifestação de vontade administrativa.”

Barchet (2014, p. 656), por sua vez, filia-se à corrente que entende que o objeto da ação popular compreende tanto atos comissivos quanto omissivos, sendo necessária, em ambos os casos, a potencialidade lesiva aos bens protegidos.

De igual forma, tem caráter repressivo, pois pode anular ato já perpetrado, ou preventivo, o que ocorre quando se visa impedir a produção de danos por ato que potencialmente os possa causar (LENZA, 2012, p. 1064).

Por tudo isso, não tem como destino atos normativos gerais e abstratos, mas somente aqueles de efeitos concretos, de modo que a sentença a ser proferida tem como consequência a sua desconstituição, ou, secundariamente, a condenação do réu à reparação do dano (BARCHET, 2014, p. 656-658).

3.2 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Embora se assemelhe em alguns pontos com a ação popular, a ação civil pública vai além da finalidade única do controle da atividade administrativa, mas de atividades que possam ser danosas a um grande número de pessoas (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1288).

Também diferencia-se ao revelar como escopo principal a busca por uma sentença condenatória, seja ela ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer ou ao pagamento de quantia em dinheiro em razão de danos patrimoniais ou morais (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1288).

Como na ação popular, seu objetivo não é a defesa de interesses individuais, nem à reparação de danos sofridos por particulares, mas a proteção de bens intrinsecamente relacionados a direitos difusos e coletivos (MEIRELLES, 2007, p. 719).

Oportuno ressaltar que direitos difusos são, por definição, indisponíveis, “pois ninguém pode arrogar a si a titularidade privativa e excludente sobre os bens e direitos a eles relacionados” (JUSTEN FILHO, 2014, p. 1289).

São exemplos, seguindo a doutrina de Adriano Andrade, Cleber Masson e Landolfo Andrade (2011, p. 58-59), desses o direitos o meio ambiente, economia popular, e, no que tange a este trabalho, o patrimônio público.

A legitimidade ativa para sua propositura, porém, é restrita ao Ministério Público, entes federados, administração indireta e associações constituídas há no mínimo um ano, cujas finalidades compreendam a proteção dos interesses jurídicos em questão (MELLO, 2013, p. 973).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como finalidade o exame das características da ação regressiva relativa a responsabilidade civil estatal pela prática de ato ílicito, do modo como é aplicada e de alternativas à inação por parte da Administração.

A sua importância se torna evidente à medida que se verifica a objetivização da responsabilidade do Estado e consequente dispêndio de recursos públicos para ressarcimento das inúmeras condenações a que é submetido hodiernamente.

Em outras palavras, a sociedade arca com tais custos e não vê uma busca efetiva para responsabilização de quem efetivamente praticou o ato ilícito.

Partiu-se de uma linha de pesquisa em que se compilou brevemente algumas especificidades da responsabilidade civil do Estado, e quando esta dá ensejo para a propositura da ação regressiva, para aí sim se deter na análise desta última e de seus aspectos.

Dentre esses, deu-se especial enfoque à obrigatoriedade de sua propositura, decorrente de preceitos legais, e, acima de tudo, do princípio (ou supraprincípio) da indisponibilidade do interesse público, que torna determinadas condutas da Administração em verdadeiros deveres de agir, e não meras faculdades.

Nesse contexto, a ação regressiva traduz-se em um poder-dever, ou dever-poder, uma competência a que ela não pode se negar a exercer, sob pena de lesar o interesse público.

Tudo isso a despeito do fato de raramente se observar a propositura da ação regressiva por parte do Estado, em evidente contrariedade ao referido princípio.

Justamente por isso, mister se faz buscar alternativas à ação regressiva com o fito de recuperar o prejuízo causado por essa omissão.

Desse modo, a ação popular e a ação civil pública surgem como os meios jurídicos mais simbólicos de proteção ao interesse público dispostos à sociedade, aquela última por intermédio, em especial, do Ministério Público.

No caso da ação popular, embora parte da doutrina entenda ser impraticável contra atos omissivos, tal orientação somente viria a tolher a eficácia desse instrumento, sobretudo ante a ausência de outros mecanismos ao alcance dos cidadãos para defesa do erário público.

De mesmo modo se mostra contraproducente a defesa da exclusão do Ministério Público como parte legítima para propositura da ação civil pública quando atinente a atos lesivos ao erário, já que tal fato restringiria ainda mais as possibilidades de satisfação do interesse público, justamente o maior objetivo de tal ação.

Destarte, embora seja inexorável o dever do Estado de tentar reaver os valores gastos com indenizações por atos ilícitos de seus agentes, contra estes, constatada a sua omissão, não pode a sociedade se encontrar inapta a buscar de outras formas o ressarcimento aos cofres públicos.

REFERÊNCIAS

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Fabrício Cavalcante D'Ambrosio

Servidor do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau - FURB. Pós graduado em Direito Administrativo pela UNIDERP - Universidade Anhanguera.

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A responsabilidade civil objetiva do Estado faz com que a Administração Pública tenha que arcar cotidianamente com as condenações impostas por atos danosos causados por seus agentes. Todavia, pouco se noticia acerca da recuperação dos valores pelo Estado por meio da chamada ação regressiva, mostrando-se salutar para a sociedade reaver a quantia dispendida, no que depende da necessária propositura da ação competente.

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