2. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE CONVIVÊNCIA: O ABANDONO AFETIVO
O ordenamento jurídico impõe àqueles que exercem a paternidade e a maternidade a prerrogativa de garantidores do dever familiar, no que diz respeito à função de criar, cuidar, educar e proporcionar condições que atentem para o melhor interesse da criança e do adolescente; contudo, em decorrência dessas obrigações, acabam sendo deixados de lado os laços afetivos.
O abandono afetivo traz à baila a discussão acerca da possibilidade ou não de ser reparado o dano moral causado em decorrência da omissão da afetividade no exercício poder familiar.
2.1. Proteção jurídica do afeto nas relações paterno-filiais
A Constituição Federal assegura à criança e ao adolescente, no seu artigo 227, “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária [...] a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Como se pode observar, o afeto não aparece neste rol.
A Carta Magna, ao não colocar o afeto no rol dos direitos assegurados aos menores, e em decorrência dos novos perfis familiares, necessita agregar alguns dos princípios do direito de família considerados como múnus público, dentre eles o princípio da afetividade.
Com efeito, após o advento da Constituição Federal de 1988, verificou-se verdadeira revolução no âmbito do direito civil, operando- se a constitucionalização e a personalização dos institutos jurídicos, com o abandono do enfoque patrimonialista do Código Civil de 1916, para situar o indivíduo como centro do ordenamento jurídico. Tanto é que, o princípio da dignidade da pessoa humana foi acolhido pela Carta Magna como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III,CF). À guisa desse novo estandarte constitucional, e, para atender ao novo perfil da família contemporânea, o direito de família abrigou princípios fundamentais, tais como, princípio do pluralismo das formas de família, princípio da igualdade e do respeito às diferenças, princípio da autonomia e da menor intervenção estatal, princípio da afetividade, princípio da solidariedade, princípio da paternidade responsável, princípio do melhor interesse da criança, etc., todos com importante carga axiológica. No âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente [...] positivou-se a doutrina da proteção integral das crianças e adolescentes, para garantir- lhes um regime especial de proteção, por se acharem na peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. Nessa espreita, deu-se também nova configuração ao poder familiar, para atribuir ao filho a condição de sujeito de direitos. Assim, o poder familiar, decorrente da autoridade parental, afastou-se do conceito de exercício de poder dos pais sobre os filhos e assumiu os contornos de múnus compartilhado pelos pais, no interesse dos filhos, empregando-se esforços para o seu pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.
(TJ-PR - Ação Civil de Improbidade Administrativa: 11139849 PR 1113984-9 (Acórdão), Relator: Marcel Guimarães Rotoli de Macedo, Data de Julgamento: 02/07/2014, 12ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 1382 30/07/2014) [grifos nossos]
O conceito de família sofreu uma grande evolução, passando do pátrio poder à busca pelo melhor interesse da criança e do adolescente, fundada na paternidade solidária e afetiva. Acerca disso, Dias expõe:
O conceito atual de família, centrada no afeto como elemento agregador, exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade. A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação. (2011, p. 460) [grifo nosso]
Ao poder-dever imposto aos genitores, agrega-se ainda a responsabilidade de dar carinho na medida necessária ao desenvolvimento da criança e do adolescente, e mesmo nos casos de separação, exercem os genitores as mesmas responsabilidades sobre os descendentes, viabilizando a manutenção da convivência, e não podendo desobrigar-se dos seus deveres.
A despeito do fato de que o afeto não deve ter sua manifestação alterada pela separação dos pais, em muitos casos ocorre o enfraquecimento do vínculo com os filhos; contudo, não se deve esquecer que os laços paterno-filiais serão eternos, e que o sentimento de abandono em decorrência da separação não pode ser transmitido para os filhos menores.
Pensando o legislador a esse respeito, buscou-se criar normas que pudessem dirimir as consequências da dissolução do relacionamento e dar margem de segurança aos filhos, o que foi feito, por exemplo, com a criação da “Ação de Regulamentação de Visitas”, a fim de propiciar, portanto, a efetivação dos mais sublimes direitos do menor, por meio do fortalecimento de uma relação familiar, a qual deve ter como objetivo o desenvolvimento humano de todos os membros da família (SKAF, 2011, p.07).
A esse respeito, vejamos:
Não se podendo mais ignorar essa realidade, passou-se a falar em paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito, é dever. Não há direito de visita-lo, há obrigação de conviver com ele. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e pode comprometer o seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida. (DIAS, 2011, p. 460) [grifos nossos]
O direito de família tem a função de cuidar desses laços familiares, a fim de buscar nortear e conservar os seus basilares princípios, mantendo o âmago dessas relações construídas por meio do afeto.
O princípio da afetividade, consequentemente, é um dos seus pilares que pode ser considerado como derivado do princípio do melhor interesse da criança, segundo o qual se busca a proteção jurídica e psíquica dos menores pela sua condição de vulnerabilidade. Tal princípio tornou-se objeto de discussão após se perceber a situação frágil que caracteriza o desenvolvimento da personalidade dos filhos menores.
Nas relações socioafetivas, Lôbo (2010, p. 64) expõe claramente que tal princípio não deve ser confundido com o afeto como “fato psicológico”, podendo ser visto sob essa ótica, contudo, quando nas relações houver falta dele. Assim, “a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles”. Diante disso, como impor o afeto nas relações familiares?
Santos (2015) aborda a questão do afeto através de uma análise feita pela psicanalista Giselle Câmara Groeninga, em que explica que “apesar de no senso comum aferimos a palavra afeto no sentido positivo, amoroso, este, como energia mental expressa tanto qualidades positivas, quanto negativas, como o ódio”, indo mais a fundo nessa concepção:
Os afetos constituem a energia psíquica, baseada no prazer e desprazer, que investe pessoas ou representações, que valora as relações, e que se transforma em sentimento – dando um sentido aos relacionamentos. Como dito, os afetos não existem puros – só de amor ou só de ódio, e em função desta nossa natureza um tanto ambivalente, uma dose de conflito é inerente à vida. Várias são as combinações dos afetos, e enquanto o amor prevalecer as famílias continuam a se constituir, por meio da solidariedade e da cooperação, o mesmo se dando nas relações sociais e mesmo entre os países (GROENINGA, 2010, p. 204).
A afetividade deve ser vista apenas sob a ótica psicológica e não como elemento de natureza jurídica. Não se trata como “coisa” que pode ser cobrada, imposta ou disponível a qualquer tempo como requisito de formação dos laços socioafetivos, devendo ser vista como um sentimento e/ou emoção que floresce e permanece por meio do convívio e que ultrapassa qualquer entendimento. No mais, “quem ama não proporciona somente o amor, literalmente, mas sim atenção, [...] afeto e respeito aos filhos a fim de que conduzam futuramente suas vidas, em todos os sentidos da forma que mais lhes traga felicidade, paz, saúde e sucesso” (SKAF, 2011, p.06).
Ainda acerca do tema, vejamos:
Se o afeto é um sentimento de afeição para com alguém, soa intrínseco ao mesmo a característica de espontaneidade. É uma sensação que se apresenta, ou não, naturalmente. É uma franca disposição emocional para com o outro que não tolera variações de existência: ou há ou não há; e, tanto numa como noutra hipótese, o é porque autêntico. Isso impede que, ainda que se pretenda, se possa interferir sob o propósito de exigibilidade nas situações em que ele não se apresentar automaticamente. Insistir nisso é desvirtuar a virtude do afeto. Uma vez imposto não é sincero e, assim, não congrega as qualidades que lhes são próprias, desde as quais o incentivo à sadia conformação da identidade pessoal dos envolvidos. (SANTOS apud ALMEIDA, 2010, p. 50). [grifos nossos]
Nas relações familiares, a afetividade se faz presente pelo próprio manto de proteção com que é vista pela sociedade. O afeto e o amor merecem ser vislumbrados como um valor importante nas relações familiares; a não convivência dos pais com os filhos acarreta sequelas emocionais e psicológicas, comprometendo o seu desenvolvimento social. A esse respeito, é importante frisar que “o sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida” (DIAS, 2011, p.460).
Com esse entendimento corrobora Souto, ao afirmar que
a falta desses valores repercute negativamente não só no indivíduo, mas também na sociedade. Em relação ao indivíduo, a repercussão da falta de afeto e de cuidado dá-se na possibilidade da criança desenvolver uma personalidade agressiva, deprimida, rebelde e indisciplinada; ao passo que, na esfera social, essa falta é apontada, inclusive, como possível causa do aumento da delinquência juvenil. De tal feita, a ausência de tais valores nas primeiras etapas da vida não é maléfica apenas à criança, mas a todo o ambiente em que ela irá conviver, pelo que se justifica o interesse público na questão (2015). [grifos nossos]
Portanto, o convívio familiar é de suma importância para o desenvolvimento da criança e do adolescente, de modo que a ausência dos pais na criação e educação do menor traz prejuízos não só no desenvolvimento emocional, como também na formação da cidadania, acarretando prejuízos na sociedade, porquanto possível causa de delinquência juvenil.
Considerando que “dentro da família nós aprendemos a balizar a agressividade e desenvolvemos formas de dar e receber amor, as quais vão se transformar em solidariedade, um capital essencial para o exercício da cidadania” (GROENINGA apud SKAF, 2011, p.06), então existe a necessidade de se proteger a relação pater-filial, em decorrência da vulnerabilidade dos filhos e da importância do convívio familiar para seu desenvolvimento, havendo a percepção de reflexos não só para a família, mas para toda a sociedade.
2.2. Percepção sócio jurídica do abandono afetivo
A Constituição Federal estabelece no seu art. 226. o princípio da paternidade responsável, construída na ideia de que os pais são igualmente responsáveis pelo planejamento familiar. Tal ônus “não se resume ao cumprimento do dever de assistência material, abrange também a assistência moral” (LÔBO, 2010, p.308), e, em caso de desrespeito, pode-se constituir o instituto do abandono.
Desta forma, “depreende-se que há, no direito brasileiro, dever jurídico de afeto, sendo os pais (biológicos, socioafetivos ou quem cumpra a função) obrigados a respeitar esse mandamento sob pena de responderem civilmente, desembocando no dever de reparar” (ROSSOT apud SANTOS, 2015, p. 01). As transformações na entidade familiar, neste diapasão, deram ensejo à “valorização dos vínculos familiares e permitiram a construção de um novo paradigma doutrinário tendo por referencial o compromisso ético das relações afetivo” (DIAS apud MARIN, 2013, p. 01).
A criança e o adolescente, por estarem em pleno desenvolvimento, têm necessidade do convívio familiar, a fim de que possam desenvolver sua personalidade de forma “sadia e harmoniosa, em condições dignas de existência” (ECA, art. 7). No mais, trata-se de um direito do menor que não se limita apenas à companhia dos seus genitores, pois “garantir ao filho a convivência familiar significa respeitar seu direito de personalidade e garantir-lhe a dignidade, na medida em que depende de seus genitores não só materialmente” (MACHADO apud SILVA, 2013, p. 03).
Acrescenta ainda o autor:
Sob essa perspectiva, depreende-se que a convivência familiar decorre do cuidado, do afeto, da atenção proporcionada pelo pai ao filho, sobretudo nos momentos em que ele se sente mais carente, como em datas comemorativas. Portanto, convivência familiar não implica em coabitação, mas no dever que o pai tem de continuar presente na vida do filho não apenas fisicamente, mas também moralmente. Diante disso, a distância não pode ser utilizada como desculpa para justificar a falta de assistência moral do pai para com o seu filho (ob. cit., p. 01). [grifos nossos]
As relações paterno-filiais não se definem pela origem biológica, mas pela importante relação de afeto entre pai e filho, o que significa que, “para a criança, sua simples origem fisiológica não a leva a ter vínculo com seus pais; a figura dos pais, para ela, são aqueles com que ela tem relações de sentimento, aqueles que se entregam ao seu bem, satisfazendo suas necessidades de carinho, alimentação, cuidado e atenção” (ob. cit., p. 01).
Os pais, em decorrência da sua prerrogativa, possuem o dever da total assistência para com os filhos, e diante da negligência na criação trazem não só prejuízos ao desenvolvimento, como também um consequente dano psicológico, os quais podem deixar reflexos para uma vida toda: “A negligência é considerada um dos principais fatores, senão o principal, a desencadear comportamentos antissociais nas crianças. E está muito associada à história de vida de usuários de álcool e outras drogas, e de adolescentes com o comportamento infrator” (GOMIDE apud BRAGA, 2011, p.59).
No que diz respeito à questão, aduz Comel o seguinte:
O abandono do filho é ato que implica desatendimento direto do dever de guarda, bem como do de criação e educação. Revela falta de aptidão para o exercício e justifica plenamente a privação, tendo em vista que coloca o filho em situação de grave perigo, seja quanto à segurança e integridade pessoal, seja quanto à a saúde e à moralidade. É o ato que afronta um dos direitos mais caros dos filhos: o de estar sob os cuidados e vigilância dos pais. Traduz-se o abandono na falta de cuidado e atenção, na incúria, ausência absoluta de carinho e amor. O abandono que justifica a perda do poder familiar há que ser aquele em que o pai deixa o filho à mercê da própria sorte, ainda que com terceira pessoa ou com o outro pai, mas que não tenha condição alguma de atendê-lo. O abandono pode ser de aspecto material, intelectual e afetivo. (apud FERREIRA, 2013, p.03)
Em tese, a responsabilidade pela plenitude da convivência familiar é de ambos os genitores e direito fundamental da criança e do adolescente, e diante da sua ausência recai o poder-dever para os familiares mais próximos, no que diz respeito à assistência material e moral para o menor, “em que esse papel é desenvolvido de tal forma que supre as lacunas deixadas pelo abandono do pai ou da mãe ou de ambos, quando exercidos plenamente por membros da família biológica, por substitutos, ou, ainda, por pais sociais” (SKAF, 2011, p.8).
De igual posicionamento, acrescenta Groeninga:
O vazio deixado pela falta de um dos pais ou pelo impedimento da convivência entre pais e filhos será inevitavelmente preenchido com outras figuras de importância na vida da criança, que se identificará com estas de forma a tentar preencher a lacuna deixada pela ausência de um dos pais (apud SKAF, ob. cit.).
Dias, por sua vez, aborda o abandono afetivo e a ausência do amor e carinho ao filho como o inadimplemento dos deveres jurídicos da paternidade, sendo que “a omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação” (2011, p. 460), além de viabilizar a destituição do poder familiar.
O abandono é a falta de interesse no convívio com o filho, e a indiferença diante das demonstrações de amor e carinho, que levem o menor a perceber o desprezo por parte do seu genitor. Assim, nessas relações paternas filiais, não pode ser ignorando o afeto.
Existem pais biológicos que residem no mesmo lar e nunca conseguiram abraçar os seus filhos, nunca participaram dos seus aniversários ou formaturas, nem tampouco lembraram de questionar acerca do dia-a-dia do filho ou suas necessidades, inexistindo, portanto, qualquer laço afetivo.” (LOMEU apud RISTOW,2015, p. 1). [grifo nosso]
Ainda, existem mães que abandonam seus filhos. Existem mães que não contam para os genitores dos seus filhos que estão grávidas e, portanto, se quiserem, podem desempenhar o dever de serem pais. Existem mães que não contam para seus filhos quem são seus pais. Mas, existem muito mais mães abandonadas e filhos esquecidos! E é desses filhos e de seus possíveis transtornos psicológicos – que resultam, ainda, em outras numerosas consequências do abandono afetivo. Não somente do filho que foi criado sem a figura paterna, mas que efetivamente sofreu e sofre graves sequelas em função do abandono. (SOUZA apud RISTOW, ob. cit.). [grifos nossos]
O afeto passou a ser objeto de discussão pelo ordenamento jurídico, em decorrência do abandono afetivo sofrido pelos filhos ao longo da sua infância e adolescência. Assim, os tribunais brasileiros passaram a analisar a possibilidade de diminuir o dano sofrido através de uma reparação pecuniária.
2.3. Dano moral como forma de compensação
Os direitos e deveres em face dos filhos menores estão resguardados na Constituição Federal e no Direito de Família, sob a forma dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da convivência familiar, da efetividade, do melhor interesse da criança e da isonomia conjugal, buscando-se priorizar os direitos daqueles que se encontram em condição de vulneráveis.
Com o nascimento do filho a responsabilidade dos pais passou a ser solidária, e em decorrência da separação dos genitores ou no caso de desconhecimento do pai, obstaculizou-se a vida do filho em face da ausência do convívio familiar. Assim, os pais que pagam a pensão alimentícia como uma forma de suprir sua ausência permanecem na lista daqueles que negligenciam a criação dos seus filhos, uma vez que tal conduta não deixa de ser um abandono. No mais, os alimentos são inerentes a sua condição de genitor, além de figurarem como um direito do filho.
Diversas situações podem caracterizar este abandono: alguns genitores ainda acreditam que a manutenção dos filhos através do pagamento de pensão alimentícia é suficiente para eximir sua responsabilidade, sem se preocuparem em visitá-los, fiscalizar-lhes a educação ou proverem afeto. Outros, muitas vezes em razão de nunca terem convivido com a mãe/pai da criança, acreditam que não convivendo com o filho, exoneram-se da obrigação alimentar (BRAGA, 2011, p.58).
O intencional descumprimento do direito de visitas por parte do genitor não guardião ao seu filho, muitas vezes motivado pelo sentimento de vingança ao ex-cônjuge, também pode configurar hipótese de abandono afetivo, causando aos filhos sentimentos de rejeição e abalo a sua autoestima (NADER apud BRAGA, ob. cit.).
Destarte, o abandono tem relevância jurídica tanto na esfera cível como na penal (Ferreira, 2013, p.1). O Código Civil, no artigo 186, dispõe que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Assim sendo, comprovada a existência do abandono, recai a responsabilidade civil1 por meio da necessidade de reparação do dano causado a outrem, nos termos do art. 927, do mesmo Código: “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Na perspectiva dos deveres inerentes ao direito de família, considera-se que, com a “concepção de um filho, nasce a responsabilidade dos pais em provê-lo material e afetivamente, inerentes ao poder familiar” (MARIN; CASTRO, 2013, p. 1). Assim, o ato ilícito, na concepção do direito civil, é verificado no momento da omissão dos deveres impostos no art. 227, da Constituição, no que diz respeito à criação, educação, alimentação, cuidado e na assistência aos menores.
“Quando um genitor deixa de cumprir essa obrigação legal, omitindo-se quanto ao seu dever de cuidado para com a sua prole, incide em uma conduta ilícita e causadora de dano a este, submindo-se este fato à norma insculpida no referido art.186 do CC” (ob. cit.). Assim, é preciso demonstrar a ocorrência do nexo de causalidade entre a omissão do genitor e o dano ocasionado ao filho, para que e possa configurar a possibilidade da responsabilidade civil. Além disso, por ter o abandono afetivo uma responsabilidade subjetiva, existe a necessidade de se verificar a culpa do agente.
Ademais, por terem as relações familiares um liame emocional, há de fato certa dificuldade em se demonstrar o dano, por serem “casos difíceis com ponderáveis razões em cada lado” (LÔBO, 2010, p. 308). Assim, o dano não é o patrimonial, mas sim aquele que
consiste na afetação dos direitos da personalidade da pessoa, gerando um abalo na tranquilidade psíquica desta. Assim o abando afetivo, na maioria dos casos, geram constrangimento ao filho, principalmente, como de praxe, nas datas festivas destinados aos pais, às mães, oferecidas nas escolas, por exemplo. Com efeito, inegável, pois, que tais atos afetam a dignidade da criança ou adolescente, gerando sentimentos de índole ruim, em forma de dor, angustia desprezo, desgosto. (MARIN; CASTRO, 2013, p. 1) [grifos nossos]
O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada. (HIRONAKA apud RISTOW, 2015, p.1) [grifos nossos]
Sob essa perspectiva, o dano ocasionado pelo abandono afetivo tem sequelas não só emocionais, como também inerentes ao desenvolvimento da personalidade, devendo ser recompensado por meio da reparação pecuniária, como uma forma de minimizar os prejuízos sofridos.
“Assim, é primordial avaliar como a pessoa elaborou a indiferença paterna. Só quando ficar constatado em perícia judicial que o projeto de vida daquele filho foi trocado pelo abandono, configurando o dano psicológico, é que cabe indenização” (LOPEZ apud RISTOW, 2015, p.1). Tal verificação figura como forma de identificar aqueles que realmente foram abandonados e sofreram danos, procurando-se evitar a sua banalização. Quanto a esta necessidade, observa-se que o embasamento probatório desempenha um importante papel:
As sequelas são provadas por laudos periciais elaborados por especialistas, entre eles: Psicólogos, Assistentes Sociais, dentre outros; Prova documental, como boletins escolares e fotografias; Depoimentos de testemunhas, além de interrogatório minucioso do Juiz competente (SOUZA apud RISTOW, 2015, p.1).
Diante do primeiro caso abordando o tema que chegou a Corte Superior brasileira, asseverou Pereira:
Será que há alguma razão/justificativa para um pai deixar de dar assistência moral e afetiva a um filho? A ausência de prestação de uma assistência material seria até compreensível, se se tratasse de um pai totalmente desprovido de recursos. Mas deixar de dar amor e afeto a um filho... não há razão nenhuma capaz de explicar tal falta (apud Stolze, 2012, p.981).
Desde este primeiro caso, a responsabilidade civil em decorrência do abandono afetivo vem dividindo opiniões entre os juristas e a sociedade, não havendo um posicionamento definitivo sobre o caso, que deve ser cuidadosamente analisado. Dessa maneira, passamos a analisar os prós e contras inerentes ao instituto.
2.3.1. Posicionamento contrário
A grande ponderação para esses juristas versa sobre impossibilidade da responsabilidade civil no direito de família em decorrência violação do afeto, por não se tratar de um dever de ordem jurídica, não se devendo obrigar alguém a dar amor, carinho, afeto e atenção. Assim, segundo este posicionamento, não pode o judiciário ordenar alguém a amar outrem, bem como quantificar monetariamente a falta dele. Senão vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PAI. ABANDONO AFETIVO. ATO ILÍCITO. DANO INJUSTO. INEXISTENTE. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MEDIDA QUE SE IMPÕE. O afeto não se trata de um dever do pai, mas decorre de uma opção inconsciente de verdadeira adoção, de modo que o abandono afetivo deste para com o filho não implica ato ilícito nem dano injusto, e, assim o sendo, não há falar em dever de indenizar, por ausência desses requisitos da responsabilidade civil.
(TJMG, AC 0063791-20.2007.8.13.499, 17ª C. Cível, Rel. Des Luciano Pinto, julg. 27.11.2008, pub. 09.01.09). [grifo nosso]
Stloze (2012, p. 981) coloca a ideia centralizadora para quem segue esse posicionamento:
Já aqueles que se contrapõem à tese sustentam, em síntese, que a sua adoção importaria em uma indevida monetarização do afeto, com o desvirtuamento da sua essência, bem como a impossibilidade de se aferir quantidade e qualidade do amor dedicado por alguém a outrem, que deve ser sempre algo natural e espontâneo, e não uma obrigação jurídica, sob controle estatal.
Chaves e Rosenvald (2010, p. 90) colocam que a “simples violação de um dever decorrente de norma de família (como o dever do afeto) não é idôneo, por si só, para reparação de um eventual dano”. Assim, a indenização seria uma forma de quantificação do amor; e quanto vale esse sentimento? Considerando que quem pleiteia a reparação busca demonstrar sua indignação pelo desprezo sofrido ao longo do tempo, a busca pelo valor pecuniário amenizaria a dor sofrida.
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159. do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. [...] Colhe-se do corpo do acórdão que, “como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada” (BRASIL, 2005). De acordo com o entendimento do relator, já existe sanção prevista em lei para a hipótese de abandono moral: a perda do poder familiar. Ainda segundo o julgador, acolher a tese de responsabilização civil enterraria definitivamente a possibilidade de restabelecimento da relação paterno-filial entre os envolvidos.
(STJ - REsp: 757411 MG 2005/0085464-3, Relator: Ministro FERNANDO GONÇALVES, Data de Julgamento: 29/11/2005, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 27/03/2006) [grifos nossos]
O ponto primordial da possibilidade de se aplicar a indenização é a maior comprometimento da já fragilizada relação paterno-filial, tendo em vista que aplicar uma sanção tamanha ao pai ou à mãe incitaria ainda mais o desprezo e dificultaria uma reaproximação com o filho.
O Tribunal de Santa Catariana julgou uma apelação em 2011 e confirmou este entendimento, no sentindo de negar o direito à indenização por presumir que o afeto deve ser manifestado de modo espontâneo entre pai e filho, bem como por não haver previsão legal, acerca do tema:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE VISITA PATERNA COM CONVERSÃO EM INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO. EXTINÇÃO DO PROCESSO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. A paternidade pressupõe a manifestação natural e espontânea de afetividade, convivência, proteção, amor e respeito entre pais e filhos, não havendo previsão legal para obrigar o pai visitar o filho ou manter laços de afetividade com o mesmo. Também não há ilicitude na conduta do genitor, mesmo desprovida de amparo moral, que enseje dever de indenizar. APELAÇÃO DESPROVIDA.
(Apelação Cível Nº 70044341360, Sétima TJ-RS - AC: 70044341360 RS , Relator: André Luiz Planella Villarinho, Data de Julgamento: 23/11/2011, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/11/2011) [grifo nosso]
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais expõe que o abandono não caracteriza um ato ilícito, nos termos do art. 186. do CC, e de modo que não se deve impor a obrigação de indenizar:
APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. AUSÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. O abandono afetivo do pai em relação aos filhos, ainda que moralmente reprovável, não gera dever de indenizar, por não caracterizar conduta antijurídica e ilícita.
(TJ-MG - AC: 10194090997850001 MG , Relator: Tiago Pinto, Data de Julgamento: 07/02/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 15ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/02/2013) [grifo nosso]
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ABANDONO AFETIVO - ATO ILÍCITO - INEXISTÊNCIA - DEVER DE INDENIZAR - AUSÊNCIA. - A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. - Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186. do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização.
(TJ-MG 1.0251.08.026141-4/001.1, Relator: NILO LACERDA, Data de Julgamento: 29/10/2009, Data de Publicação: 09/12/2009) [grifo nosso]
Outra questão importante é a ausência dos requisitos da responsabilidade civil: a conduta dolosa ou culposa, o dano e o nexo de causalidade. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (2013) e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (2013) apreciaram a questão sob o fundamento de que, na falta desses pressupostos ou de prova material, não há que se falar em responsabilidade civil:
DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFETIVO PELO GENITOR. NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA. DANO MORAL. NÃO CONFIGURADO. 1. a responsabilidade civil extracontratual, decorrente da prática ato ilícito, depende da presença de três pressupostos elementares: conduta culposa ou dolosa, dano e nexo de causalidade. 2. ausente o nexo de causalidade entre a conduta omissiva do genitor e o abalo psíquico causado ao filho, não há que se falar em indenização por danos morais, porque não restaram violados quaisquer direitos da personalidade. 3. ademais, não há falar em abandono afetivo, pois que impossível se exigir indenização de quem nem sequer sabia que era pai. 4. recurso improvido.
(TJ-DF - EMD1: 20090110466999 DF 0089809-17.2009.8.07.0001, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 07/08/2013, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 19/08/2013 . Pág.: 89) [grifo nosso]
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE ABANDONO AFETIVO. INOCORRÊNCIA. A responsabilidade civil no Direito de Família é subjetiva, de modo que o dever de indenizar pressupõe o ato ilícito e nexo de causalidade. Nesse passo, não se pode reconhecer como ato ilícito o alegado abandono afetivo que, por sua vez, não guarda nexo de causalidade com os danos alegadamente sofridos pela autora. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO.
(TJ-RS - AC: 70054827019 RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Data de Julgamento: 26/09/2013, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/10/2013) [grifos nosso]
Os Tribunais têm se posicionado no sentido na impossibilidade de indenizar o dano moral decorrente do abandono afetivo com a visão de quem ninguém pode obrigar outrem a manter um vínculo de afetividade, de modo que tal finalidade não seria alcançada por meio de um valor monetário.
2.3.2. Posicionamento favorável
Nesse caso, o que se espera no direito de família é a uniformização do entendimento acerca da possibilidade de responsabilidade civil em decorrência do abandono afetivo. Assim, “são favoráveis à indenização Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Paulo Lôbo” (TARTUCE apud RISTOW, 2015, p.1), além de Berenice Dias, entre outros.
A indenização não visa a suprir ou a recuperar o amor que nunca existiu, ou aquele sentimento desfeito ao longo do tempo, em face da ausência daquele que deveria exercer seu papel de cuidado, amor e proteção. Conforme afirma Braga (2011, p. 65), a pretensão de se pleitear danos morais é a de reparar o irreversível prejuízo causado ao filho, que sofreu pela ausência de seu pai ou de sua mãe, uma vez que não há amor para recuperar.
Assim, a criança e o adolescente, pela sua condição de vulnerável, não possuem a capacidade de compreender os motivos que levaram à ausência do pai ou da mãe, fato este que lhes dá o direito de buscar na justiça a reparação dos danos sofridos pela omissão do direito à convivência familiar harmoniosa.
Dias (2011, p. 460) entende que “a omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação”. Por isso, seria possível considerar a possibilidade da responsabilidade civil, aplicável a quem descumpre o múnus inerente ao poder familiar, “afinal, se uma criança veio ao mundo – desejada ou não, planejada ou não - os pais devem arcar com a responsabilidade que esta escolha (consciente ou não) lhes demanda” (TEIXEIRA apud LÔBO, 2010, p. 309).
Dias (2011, p. 461-462) é uma das adeptas deste entendimento:
A lei obriga e responsabiliza os pais no que toca aos cuidados com os filhos. A ausência desses cuidados, o abandono moral, viola a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura dano moral. Quem causa dano é obrigada a indenizar. A indenização deve ser em valor suficiente para cobrir as despesas necessárias, para que o filho possa amenizar as sequelas psicológicas [...] Claro que o relacionamento mantido sob pena de recompensa financeira não é a forma mais correta de se estabelecer um vínculo afetivo. Ainda assim, mesmo que o pai só visite o filho por medo de ser condenado a pagar uma indenização, isso é melhor do que gerar no filho o sentimento de abandono. Ora, se os pais não conseguem dimensionar a necessidade de amar e conviver com os filhos que não pediram para nascer, imperioso que a justiça imponha coactamente essa obrigação. [grifo nosso]
A Ministra Nancy Andrighi, em um de seus votos, abordou o abandono afetivo sob a perspectiva da impossibilidade de se obrigar a amar:
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever”.
(STJ- RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP (2009/0193701-9) RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI). [grifos nossos]
O afeto, neste diapasão, deve ser colocado com uma incumbência jurídica, de forma que sua negligência constitui um ato ilícito que, no âmbito civil, levaria à possibilidade de se indenizar, restando configurada uma natureza punitiva da omissão.
As finalidades da condenação: a) de um lado, a indenização deve reparar, ainda que parcialmente, em pecúnia, os danos causados à vítima; b) de outro lado, deve servir de medida sancionatória ou punitiva que vida a desestimular condutas ilícitas por parte de agente que ocasionou o dano.
(PARANÁ, Tribunal de Justiça. Apelação nº 527.845-3, da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Curitiba, PR, de 2011. RELATORA : JUÍZA SUBST. 2º G. DENISE KRUGER PEREIRA RELATOR ORIGINARIO: DES. ARNO GUSTAVO KNOERR)
O Superior Tribunal de Justiça de São Paulo, no ano de 2012, proferiu uma decisão de grande repercussão em favor da viabilidade da reparação civil em decorrência do abandono afetivo:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227. da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.
(Apelação nº 410524-4/0-00, 4ª Câmara de Direito Privado, RELATOR Des. Francisco Loureiro, julgado em 04/06/09).
Os defensores da violabilidade jurídica da indenização afirmam que a responsabilidade civil seria uma forma para os filhos de se compensar pelos danos sofridos em face da ausência intencional do genitor, e da qual decorreria uma sanção imposta pelo Estado, no intuito de inibir a prática na sociedade e de construir “uma cultura de paternidade responsável” (BRAGA, 2011, p.68).
Segue o entendimento dos tribunais:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ABANDONO PATERNO - VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - NOVA CONFIGURAÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR - DEVERES DOS PAIS - ART. 227 DA CONSTITUIÇÃO - ART. 1.634, I E II, DO CÓDIGO CIVIL - A família atual deve se preocupar com o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus membros, sendo um ente funcionalizado, onde todos têm o objetivo de promover o livre desenvolvimento dos demais membros. - Nesse contexto, em que a família torna-se o centro de desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, a conduta do pai que abandona seu filho revela-se violadora dos seus direitos, uma vez que o art. 227 da Constituição inclui no rol dos direitos da criança e do adolescente a convivência familiar. - O pai que deixa de prestar a assistência afetiva, moral e psicológica a um filho, violando seus deveres paternos, pratica uma conduta ilícita, ensejadora de reparação no campo moral.
(TJ-MG, Relator: NILO LACERDA, Data de Julgamento: 29/10/2009)
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE - A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana".
(TJMG, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível Nº 408.550-5, julgamento em 01/04/2004) [grifo nosso]
PROCESSO CIVIL - INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - GENITOR - ABANDONO MORAL E FALTA DE AFETO - PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL - SENTENÇA ANULADA - PROSSEGUIMENTO REGULAR DO FEITO - RECURSO PROVIDO. 1. O pedido de reparação por danos morais sofridos é um pedido juridicamente possível e reconhecido pelo nosso ordenamento jurídico. 2. No caso de pedido de indenização por danos moral em decorrência de abandono moral e falta de afeto por parte do genitor, é necessária a caracterização dos elementos ensejadores da responsabilidade civil, quais sejam, o dano experimento pela filho, o ato ilícito praticado pelo pai, e liame causal que conecta os referidos elementos. 3. Impõe-se a remessa dos autos à instância de origem, a fim de propiciar a angularização do processo, citando-se o réu/apelado para exercer o contraditório e a ampla defesa, bem como proceder a dilação probatória necessária ao deslinde da quaestio. 4. Recurso conhecido e provido. VISTOS, relatados e discutidos, estes autos em que estão as partes acima indicadas. ACORDA a Egrégia Segunda Câmara Cível, na conformidade da ata e notas taquigráficas que integram este julgado, à unanimidade de votos, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, anulando a sentença objurgada e determinando o retorno dos autos à instância de origem, para o seu regular processamento.
(TJ-ES - AC: 15096006794 ES 15096006794, Relator: ÁLVARO MANOEL ROSINDO BOURGUIGNON, Data de Julgamento: 21/09/2010, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 11/11/2010).
Portanto, os Tribunais têm levado em consideração que a violação dos direitos constitucionais assegurados à criança e adolescente constitui um ato ilícito, ensejadora de uma reparação civil. Assim, não só o abandono material, como também a ausência do convívio familiar, acarretem danos emocionais e dão ensejo ao dano moral.
Logicamente, dinheiro nenhum efetivamente compensará a ausência. Mas é preciso se compreender que a fixação dessa indenização tem um acentuado e necessário caráter punitivo e pedagógico, na perspectiva da função social da responsabilidade civil, para que não se consagreo paradoxo de se impor ao pai ou a mãe responsável por esse grave comportamento danoso (jurídico e espiritual), simplesmente, a “perda do poder familiar”, pois, se assim o for, para o genitor que o realiza, essa suposta sanção repercutiria como um verdadeiro favor (STOLZE, 2012, p. 984).
Diante do exposto, a admissibilidade dessa ação deve ser vista com cautela e sendo analisado o caso concreto, porquanto não visa a suprir o amor que nunca foi dado, e sim a compensar pelos danos sofridos. Certamente que nenhum dinheiro compensa o convívio com a dor do abandono, “a frieza, o desprezo de um pai ou de uma mãe por seu filho, ao longo da vida” (STOLZE, 2012, p.984); contudo, o que se pretende é punir tal ação.