Capa da publicação Abandono afetivo pode tirar poder familiar?
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O abandono afetivo como motivo ensejador da destituição do poder familiar

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27/11/2015 às 15:25

Resumo:


  • O abandono afetivo nas relações familiares é um tema que gera controvérsias no âmbito jurídico, especialmente em relação à possibilidade de responsabilização civil por danos morais decorrentes dessa ausência de afeto.

  • Enquanto alguns entendem que não se pode obrigar juridicamente alguém a amar e que a indenização por abandono afetivo poderia monetarizar o sentimento, outros defendem a aplicabilidade da responsabilidade civil como forma de compensação pelos danos emocionais causados pelo abandono.

  • A destituição do poder familiar pode ser uma medida aplicada em casos de abandono afetivo, visando proteger os interesses da criança ou do adolescente, sendo possível a supressão do sobrenome do genitor no registro de nascimento como forma de desvinculação dos laços familiares.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR PELO ABANDONO AFETIVO

A pátria potestas adveio do ordenamento jurídico como instituto do exercício do poder familiar em face dos filhos menores, sendo exercido exclusivamente pelo chefe da família, a saber, o pai. Com as mudanças legislativas, o Código Civil de 2002 trouxe uma nova expressão em substituição ao pátrio poder, que passou a ser considerado como poder familiar, sendo as relações familiares desempenhadas por ambos os pais. A esse respeito, vejamos:

Poder familiar é o antigo pátrio poder ou pátria potestas, advém de uma evolução jurídica visto que é instituto voltado aos interesses e proteção do menor, a ser exercido pelo pai e pela mãe. Por ser exercido por ambos os pais, a expressão pátrio poder foi substituída por poder familiar no Código Civil (2002). Quando se fala em poder familiar, está se falando às relações jurídicas entre pais e filhos. Anteriormente, o poder sobre o filho era absoluto do pai, com imposições e decisões unilaterais, e não mãe. Atualmente, a sociedade onde a legislação prevê a igualdade entre os membros da família e, a autoridade dos pais, e não somente do pai, é reconhecida através de diálogo e explicações. São direitos e deveres que se ajustam para a satisfação de interesses de toda a família, buscando a convivência familiar sincera e pacífica. (Torres, et. al., 2013, p.5)

Destarte, o poder familiar é um conjunto de direitos e deveres imposto por lei no desempenho de prerrogativas inerentes à condição de pais, no desenvolvimento da criança e do adolescente, no que diz respeito à criação, educação, alimentação e assistência. Assim, pela condição de vulnerável na qual se encontra o menor, o ordenamento jurídico impõe o direito-dever do exercício do poder familiar aos pais, até que se alcance a maioridade.

Segundo Tomizawa e Moreira (p. 17) esclarecem, a “justificativa para o então ‘poder familiar’ é que uma criança não possui condições de se desenvolver e crescer sem um auxílio que lhe ajude na sua formação moral e material”. Sendo assim, ninguém melhor que os pais para oferecer toda estrutura possível no desenvolvimento do menor. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no seu artigo 22, esclarece que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”.

O Estado transfere aos pais a condição de múnus público inerente ao poder familiar, e adverte que os descumprimentos das obrigações impostas pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional estão “sujeito a penalidades por parte do Estado, através do Poder Judiciário” (FÁVERO apud BULSING, 2013, p.166). Assim, aos pais é instituído o poder-dever de garantidores na assistência e proteção da criança e do adolescente, colocando-os a salvo de qualquer risco à integridade física e psíquica, oferecendo um lar digno de respeito e replicador dos bons costumes, como forma de desenvolver um cidadão com valores éticos.

A partir do momento, que os principais personagens designados para a formação moral não estão cumprindo com os seus deveres, colocando os seus próprios filhos em situações de riscos, em situações de abandono moral e material, em convivência com exemplos de prostituição, drogadição, em ambientes onde há prática de crimes, ou ainda, o que infelizmente é muito comum ocorrer na nossa sociedade, o próprio pai violar sexualmente de seus filhos, é certo que o Estado deverá intervir para proteger essa criança/adolescente (TOMIZAWA; MOREIRA, p. 18).

Com habitualidade surgem ocasiões nas quais os próprios pais expõem de forma violenta e desrespeitosa a figura da criança e do adolescente, em situações de constrangimento sexual, de abandono, de prostituição, ou outras condições que impliquem no descumprimento do papel de garantidores. Sendo assim, é através da medida da destituição do poder familiar - como último instrumento de proteção -, que o Estado intervém para resguardar os direitos dos menores violados por aqueles que detinham o poder de salvaguardá-los.

A destituição (perda) de pátrio poder é solução amarga, porque atinge em cheio o pátrio poder. Assim, deve ser utilizada apenas em casos muito especiais, apenas quando não se encontrar solução consensual, adequada e fiscalizada pelo Poder Público, para controlar o conflito entre os detentores do pátrio poder e o filho (FONSECA, 2000, p.265).

Portanto, o Estado exerce a função de custus legis nas relações familiares, na qual tem o dever de fiscalizar a existência da violação dos direitos do menor, inclusive o abandono afetivo, impondo medidas necessárias como, por exemplo, a dissolução do pátrio poder, conforme os casos elencados no Código Civil, em seu artigo 1638: “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: [...] II - deixar o filho em abandono”.

O objeto de discussão do dispositivo versa sobre o abandono afetivo, podendo ser motivo ensejador de uma responsabilidade civil, e da consequente análise jurídica para uma possível perda do poder familiar.

No mais, a respeito da reparação civil o tema é bastante controverso, porquanto há posições sólidas de que o abandono afetivo, por si só, não gera dano moral passível de indenização, distanciando este quadro da possibilidade da responsabilidade civil; tal entendimento decorre da definição do afeto, nesse caso considerado como algo imensurável economicamente. Em contrapartida, há quem entenda ser o abandono passível de indenização, por ser assegurado à criança e ao adolescente um conjunto de direitos constitucionais, no que diz respeito à criação, educação, alimentação e assistência. Portanto, a violação desses direitos, seja de forma comissiva ou omissiva, constitui ato ilícito de acordo com o Código Civil, tornando o ato passível de reparação civil.

Assim, para aqueles adeptos do posicionamento favorável ao dever de indenizar diante do abandono afetivo, são fundamentais os pressupostos inerentes à responsabilidade civil, a saber, a conduta dolosa ou culposa, o dano e o nexo de causalidade entre a conduta do genitor e o dano ocasionado ao filho. Ademais, por ser o abandono afetivo uma situação de responsabilidade subjetiva, deve ser verificada a culpa do agente.

3.1. O abandono afetivo como motivo ensejador da destituição do poder familiar

A destituição (ou a perda) do poder familiar é uma medida que põe fim a toda relação de parentalidade, nas hipóteses mencionadas no artigo 1638 do Código Civil, com a finalidade de se buscar o melhor interesse da criança e do adolescente. Sendo assim,

a Destituição do Pátrio Poder é uma medida de resguardo no tocante ao desenvolvimento integral da criança ou do adolescente, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o Art. 22. previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, embora a Destituição do Pátrio Poder seja vista como condição única de solução de situações de extremo risco. Em Fávero (2001), observa-se que as medidas de destituição e de extinção do Pátrio Poder, devem ser tomadas em razão de apresentarem-se como única alternativa capaz de solucionar o que se percebe ou se avalia como necessidade de proteção prioritária a criança (Torres, et. al., 2013, p. 10). [grifos nossos]

Com efeito, o instituto se concretiza nas relações familiares, configurando a perda da chance dos pais de exercerem a função de garantidores do poder-dever em face dos menores, de maneira que “implica subtrair de alguém oportunidades futuras” (CHAVES; ROSENVALD, 2012, p. 169). Assim, a destituição do vínculo familiar deve ser analisada com cautela e considerada a última medida a ser aplicada pelo Estado. A esse respeito, “o juiz que destitui o poder da família deve ser muito criterioso, por ser uma sanção grave, que além de punir os pais (seja um dos genitores ou ambos), também pode causar traumas à criança” (Torres, et. al., 2013, p. 4).

Outras importantes questões a levar em consideração são a consequência dessa medida, a forma como ela deve ser imposta nas relações familiares, e a motivação para tal ato. Nesse contexto, Tomizawa e Moreira pontuam que

a aplicação da destituição do poder familiar gera efeitos graves tanto na vida do filho quanto na vida dos pais, isto porque com a aplicação da medida, os pais perderão a autoridade e prerrogativas que tinham em relação aos filhos, havendo dessa forma a extinção do vínculo afetivo existente entre eles, por isso é que só poderemos ter a aplicação da destituição nos casos previstos em lei, e quando houver o melhor interesse da criança e adolescente. (p.11)

Vislumbra-se que os efeitos dessa perda do poder familiar são graves, e uma vez destituído o vínculo, não se poderá voltar à condição anteriormente estabelecida. Nesse sentindo, exonera-se o poder-dever dos pais sobre os filhos menores, exceto para a sucessão hereditária e os direitos alimentícios, que continuam a existir: “é uma forma de responsabilizar este pai pelo seu abandono. Se ele fosse destituído do poder familiar, por exemplo, seria uma premiação, porque além de ter abandonado o filho, ele também não teria nenhuma responsabilidade com ele” (PEREIRA, 2015, p. 1).

Há quem entenda de forma contrária os efeitos dessa destituição, como por exemplo, o Promotor de Justiça do Estado do Paraná, Murillo José Digiàcomo (2013, p. 1), o qual esclarece ser possível a reintegração do pátrio poder, mas devendo ser analisadas com certa cautela as circunstâncias que levaram a cessação do vínculo familiar, prezando-se pelo princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

No caso da destituição que tem como motivo ensejador o abandono afetivo, deve ser analisado cada caso concreto particularmente, pois o abandono no sentido amplo constitui um dos motivos de tal perda, sendo ele a

falta de cuidado e atenção, na incúria, ausência absoluta de carinho e amor. É o pai que tem desleixo para com a prole, que pouco se lhe importa a nutrição, faltando aos cuidados básicos e essenciais à própria sobrevivência, e mantendo o filho em estado de indigência (COMEL apud TOMIZAWA; MOREIRA, p. 13).

A jurisprudência vem se posicionando sobre a destituição do poder familiar, por afrontar ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Assim, os julgados colocam o abandono afetivo também como manifestação de desrespeito a tal princípio. Nesse sentido, seguem os entendimentos:

EMBARGOS INFRINGENTES - DIREITO DE FAMÍLIA - ABANDONO MATERIAL E AFETIVO DE MENOR - ART. 1.638. DO CC - PERDA DO PÁTRIO PODER - POSSIBILIDADE. - Restando demonstrado o abandono de menor por sua genitora, que, ao entregá-lo aos cuidados de terceiros, deixa de lhe prestar os necessários cuidados, carinho e atenção indispensáveis ao seu desenvolvimento saudável, em total descumprimento de suas obrigações inerentes à maternidade, a perda de seu poder familiar é medida que se impõe.

(TJ-MG 100270711963590021 MG 1.0027.07.119635-9/0021, Relator: ELIAS CAMILO, Data de Julgamento: 28/01/2010, Data de Publicação: 05/03/2010) [grifos nossos]

APELAÇÃO CÍVEL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PODER FAMILIAR. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. GENITORES QUE NÃO APRESENTAM CONDIÇÕES MÍNIMAS DE PROVER O SAUDÁVEL DESENVOLVIMENTO DA PROLE. NEGLIGÊNCIA E ABANDONO MATERIAL E AFETIVO. INAPTIDÃO DOS GENITORES PARA PROVER A SUBSISTÊNCIA DAS CRIANÇAS EM TENRA IDADE. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.638. DO CÓDIGO CIVIL E DOS ARTS. 22. E SEGUINTES DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE MÁXIMA PROTEÇÃO À CRIANÇA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Tratando-se a destituição do poder familiar de sanção grave e excepcional imposta aos genitores que não cumprirem com os deveres insculpidos no art. 1.634. do Código Civil e nos arts. 227. e 229 da Constituição Federal, sua decretação depende de prova irrefutável da falta, omissão ou abuso em relação aos filhos. Comprovado que os pais biológicos não apresentam condições de cumprir os deveres decorrentes do poder familiar, porquanto sem atividade remuneratória, vivendo em precárias condições de moradia, higiene e alimentação, submetendo os filhos a constante sofrimento pela negligência, a destituição do poder familiar é medida que se impõe, como afirmação dos princípios da dignidade da pessoa humana e do superior interesse da criança. APELAÇÃO DESPROVIDA.

(TJRS, APL nº 70041418302, Sétima Câmara Cível; Rel.: Desembargador Roberto Carvalho Fraga; Julg. 08/06/2011).

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As decisões demonstram que o descumprimento comissivo ou omisso das obrigações constitucionais pertinentes à criança e ao adolescente acarreta o rompimento da relação familiar; por lógico, aos pais incumbe a proteção dos menores por estarem eles em condições de vulnerabilidade diante da sociedade, e se eles não cumprem seu papel, o menor fica mais suscetível a qualquer acontecimento na sua vida.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina aprecia a questão da negligência dos pais quanto ao afeto, à criação e à assistência ao filho menor como pressuposto da perda do poder familiar. Vejamos:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PERDA DO PODER FAMILIAR PELOS PAIS - PROCEDÊNCIA EM PRIMEIRO GRAU - INCONFORMISMO EXCLUSIVO DA GENITORA - AUSÊNCIA DE CAUSA AUTORIZADORA DE DESTITUIÇÃO - INACOLHIMENTO - ABANDONO MORAL E MATERIAL CARACTERIZADOS - DESCASO QUE GEROU O ENFRAQUECIMENTO DO VÍNCULO AFETIVO MATERNO-FILIAL - OMISSÃO DO NÚCLEO FAMILIAR MATERNO E PATERNO - POSTURA PASSIVA DA GENITORA - INCAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR - PERDA DO PODER FAMILIAR MANTIDA - PROVIMENTO NEGADO. Caracterizada a negligência familiar e materna em relação ao desenvolvimento afetivo, físico e psíquico dos menores e não implementadas alterações nas condições de vida da genitora a evidenciar a sua capacidade para o exercício da autoridade parental, impõe-se-lhe a perda do poder familiar, a teor do disposto no art. 1.638, inciso II, do Código Civil.

(TJ-SC - AC: 20140029106 SC 2014.002910-6 (Acórdão), Relator: Monteiro Rocha, Data de Julgamento: 04/06/2014, Segunda Câmara de Direito Civil Julgado).

Outra questão importante a ser analisada é a existência de provas concretas do abandono dos pais quanto à criança e ao adolescente. A esse respeito, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entende que, diante da prova da ausência dos cuidados fundamentais ao menor, é cabível a decretação da destituição do poder familiar. Assim assevera:

DIREITO DO MENOR - APELAÇÃO - AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR - ABANDONO MATERIAL E AFETIVO DE MENOR - CÓDIGO CIVIL, ART. 1.638. - PERDA DO PODER FAMILIAR - POSSIBILIDADE - RECURSO DESPROVIDO. - Havendo prova de que a mãe do menor o abandonou, não propiciando a companhia e os cuidados indispensáveis, mostra-se irrepreensível a sentença que decreta a perda do poder familiar.

(TJ-MG - AC: 10338100101371001 MG, Relator: Moreira Diniz, Data de Julgamento: 11/07/2013, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 16/07/2013) [grifo nosso]

Em sentido contrário, a falta de provas concretas das hipóteses descritas no artigo 1638 do Código Civil não constitui motivo para perda do poder familiar. Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal reconheceu a impossibilidade de tal medida diante da equívoca prova acostada aos autos. A Desembargadora Carmelita Brasil esclarece que “o processo é muito mais fruto da relação de conflito existente entre os pais da menor, do que propriamente do descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar pelo genitor”, não sendo possível reconhecer a destituição do poder familiar.

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. INEXISTÊNCIA DE CAUSA PARA A APLICAÇÃO DA SEVERA MEDIDA. As disposições contidas no art. 227. da constituição federal e no art. 4º do ECA dispõem que os direitos da criança e do adolescente têm absoluta prioridade no ordenamento jurídico brasileiro. O poder familiar deve ser exercido em benefício do próprio menor. Para a destituição judicial do poder familiar, necessário que esteja comprovada, de forma inequívoca, uma das hipóteses descritas no art. 1.638. do código civil, o que não ocorreu na hipótese.

(TJ-DF - APL: 64902320068070013 DF 0006490-23.2006.807.0013, Relator: CARMELITA BRASIL, Data de Julgamento: 30/03/2011, 2ª Turma Cível, Data de Publicação: 01/04/2011). [grifo nosso]

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua vez, analisou todo conjunto probatório de um caso concreto em que um pai abandou seus filhos em um abrigo por mais de 10 anos, sem prestar qualquer auxílio material ou afetivo. No mais, esclarece o Relator que o motivo que deflagra toda a discussão do processo de destituição do poder familiar gira em torno principalmente do abandono afetivo, por ocasionar sérios danos emocionais aos menores, que viveram a ermo sem qualquer assistência do pai. Sendo assim, se este atua de forma negligente no poder-dever familiar, nada mais justo que preservar os interesses dos menores deixados aos cuidados do Estado.

PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR REQUERIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. MENORES EM ABRIGO POR MAIS DE 10 ANOS. SITUAÇÃO DE ABANDONO MATERIAL E AFETIVO CARACTERIZADA. CARÁTER PUNITIVO DA DECISÃO. INOCORRÊNCIA. APELAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1- recurso de apelação interposto em face de sentença que julgou procedente o pedido inicial para decretar a perda do poder familiar do apelante em relação a seus filhos menores. 2- da análise detalhada do conjunto probatório acostado aos autos, mormente do documento técnico, conclui-se claramente, que o réu agiu de forma desairosa e negligente para com seus filhos, que se encontram em abrigo desde novembro de 2001 sendo que nesse período o apelante os visitou esporadicamente. 3- a negligência do apelante quanto aos cuidados inerentes ao exercício do poder familiar, como a assistência material e afetiva aos filhos encontra-se evidenciada nos autos nos termos do art. 1.638, inciso ii do código civil perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: "deixar o filho em abandono." 4- no caso em análise, o descuido do apelante em relação aos filhos, não deflui tão somente da escassez de bens materiais, decorre principalmente do abandono afetivo, que pode causar severos danos à criança. 5- a perda do poder familiar é medida extrema, mas deve ser deferida quando os pais não apresentam condições de exercer tal mister e não restam outros caminhos a preservar os interesses dos incapazes. 6- o decreto de perda do poder familiar não se reveste de caráter eminentemente punitivo como afirma o recorrente. a rigor, o decreto se deu visando à proteção dos menores que, na prática, já estavam sem o apoio dos pais. 7- recurso desprovido.

(TJ-DF - APL: 39714120078070013 DF 0003971-41.2007.807.0013, Relator: JOÃO EGMONT, Data de Julgamento: 09/02/2012, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: 28/02/2012). [grifos nossos]

O mesmo fato ocorreu no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, diante de um caso em que a genitora abandonou seu filho com uma tia-avó, desde o ano de 2009, e não apresentou desde então qualquer iniciativa no sentido de reaver o menor, transferindo toda a responsabilidade para um terceiro. Sendo assim, o Tribunal entendeu que a genitora descumpriu com seus deveres, inerentes ao poder familiar, em face do abandono material e afetivo do menor, o que leva à destituição do vínculo familiar.

APELAÇÃO CÍVEL. ECA. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ABANDONO PERPETRADO PELA GENITORA, QUE NÃO SE MOSTRA INTERESSADA EM MUDAR DE POSTURA PARA REASSUMIR A GUARDA DO FILHO. DESCUMPRIMENTO INJUSTIFICADO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. INCAPACIDADE DA GENITORA DE EXERCER A FUNÇÃO PARENTAL DE FORMA RESPONSÁVEL. Os elementos carreados aos autos apontam induvidosamente que, além do abandono afetivo e material perpetrado pela genitora no ano de 2009, que deixou o filho aos inteiros cuidados de uma tia-avó, não apresenta ela condições de exercer a função parental de forma responsável, por não se comprometer em se reorganizar e se reestruturar para receber novamente a guarda do filho e proporcionar um ambiente protegido ao infante. Nesse contexto, resta autorizado o decreto de perda do poder familiar, com fundamento no art. 1.638, inc. II, do Código Civil, e no art. 24. do Estatuto da Criança e do Adolescente. Negaram provimento. Unânime.

(TJ-RS - AC: 70057358137 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 20/03/2014, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 24/03/2014).

Dessa maneira, os Tribunais têm ampliado seu posicionamento no sentido da destituição do poder familiar também em face do abandono afetivo, não se limitando portanto aos casos em que se verifica a ausência do provimento de recursos materiais para a criança e o adolescente. Entendem, assim, que a falta de afeição ao menor acarreta severos danos, e deve ser observada como requisito para a perda do poder familiar.

Ademais, além de uma possível configuração de responsabilidade civil diante do abandono afetivo, pode ser igualmente considerado como causa da perda do poder familiar, em que há oportunidade, por parte daqueles que foram abandonados, de ingressarem em juízo não só pela busca do dano moral sofrido, mas também pleiteando a destituição de qualquer vínculo diante daqueles que o abandonaram.

3.2. Procedimento da destituição do poder familiar

O procedimento de perda ou destituição do poder familiar encontra-se regulamentado no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, nos termos do artigo 155 e seguintes. Trata-se de uma ação voluntária, por iniciativa de quem tem legitimidade processual (pais, parentes, ou outros que demonstrem interesse) e do Ministério Público. Esclarece o art. 155. do ECA que “o procedimento para a perda ou a suspensão do poder familiar terá início por provocação do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse”.

Na prática, Torres (et. al., 2013, p. 218), esclarece que “o Ministério Público, é o grande autor na destituição, porque é um dos agentes da doutrina de proteção integral às crianças e adolescentes. Via de regra, o Conselho Tutelar é quem representa ao Ministério Público, nos casos em que entender ser necessária a medida extrema”. Ademais, não cabe ao magistrado agir de ofício na destituição do poder familiar, “nem mesmo por procedimento administrativo” (ob. cit.), por prejudicar o princípio da imparcialidade, diante de um caso concreto, ao prejulgar os fatos sem tomar conhecimento da versão da outra parte, o que prejudicaria o julgamento da causa.

Nesse sentido, Bulsing (2013, p.168) expõe que

a destituição do Poder Familiar deve ser decidida quando o fato ameace constantemente a segurança e a dignidade do menor, ou seja quando não há possibilidade de reconstrução dos laços de afetividade na unidade familiar. A destituição do Poder Familiar está sujeito a procedimento judicial, sendo parte legítima para propor a ação um dos genitores frente ao outro, o Ministério Público (artigo 201, III, ECA) ou qualquer parente da criança.

Portanto, a finalidade do instituto da perda do poder familiar é proteger a criança e adolescente que se encontre em situação de ameaça ou violação aos seus direitos pelos genitores, servindo o instrumento como última medida protetiva. O procedimento é estabelecido pelo ECA, e inexiste outra norma que verse a respeito. Ademais, “a sentença que destitui o Poder Familiar é sanção de maior abrangência aplicada à desobediência de um dever relevante, sendo medida imperativa e não facultativa, que impede qualquer autoridade com relação ao filho” (SILVIO apud BULSING, 2013, p.169), de modo que se retira dos pais a condição de garantidores do poder-dever do pátrio poder em face da criança e do adolescente.

Quanto à sentença que declara a destituição, o artigo 163, parágrafo único do ECA, expõe que: “[...] será averbada à margem do registro de nascimento da criança ou do adolescente”, ou seja, será feita uma anotação sempre que foi modificada a relação familiar que consta no registro de nascimento. A esse respeito, esclarece a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo – ARPEN-SP que a “averbação é o ato de anotar um fato jurídico que modifica ou cancela o conteúdo de um registro e é feita na sua margem direita já apropriada para este fim [...] sempre é feita por determinação judicial”. Nesse sentido:

PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. PAIS DESTITUÍDOS DO PODER FAMILIAR. MANUTENÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS. 1. O ponto controvertido nestes autos está na condição de dependente do autor em relação a sua falecida mãe. 2. Consta à margem da certidão de nascimento do autor averbação da sentença de destituição do poder familiar que a falecida Vera Aparecida Rodrigues da Silva exercia sobre o requerente, tendo sido nomeada como tutora Dorcelina Rosa de Jesus da Silva, mãe da segurada falecida e avó do autor. 3. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) estabelece como modalidade de medida pertinente aos pais ou responsáveis a destituição do poder familiar, que deverá ser "decretada judicialmente, em procedimento contraditório" (art. 24, com redação dada pela Lei n. 12.010/09). 4. A medida em questão, por si só, não caracteriza o rompimento do vínculo com a mãe biológica. A obrigação de prestar alimentos pelos pais suspensos do poder familiar continua existindo pela própria redação do art. 163, parágrafo único, do Estatuto. Deste modo, não há que se falar em cancelamento do registro de nascimento e, consequentemente, de rompimento dos vínculos de parentesco e obrigações ou deveres disto decorrentes. 5. Necessário observar que averbação não se confunde com cancelamento de registro, eis que averbar é fazer constar à margem de um registro as ocorrências que, por qualquer modo, o alterem. Por sua vez, o cancelamento torna sem efeito jurídico o registro anterior. Somente com a adoção ocorre o cancelamento do registro original, com a confecção de novo, estabelecendo assim novos vínculos de parentesco, agora em relação aos adotantes e adotados (47, caput e § 2º). 6. Ademais, a Lei 12.010/2009, ao tratar da guarda e responsabilidade de crianças e adolescentes, alterou a redação do § 4º do art. 33. do ECA, estabelecendo que o dever de prestar alimentos, assim como o direito a visitas somente se extinguem automaticamente quando a medida for aplicada em preparação para a adoção. 7. [...]

(TRF-3 - AC: 53352 SP 0053352-43.2008.4.03.9999, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL LUCIA URSAIA, Data de Julgamento: 02/12/2014, DÉCIMA TURMA). [grifos nossos]

Em contrapartida, a Desembargadora Carmelita Brasil, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, entende de forma contrária a respeito da averbação do nome no registro de nascimento, esclarecendo que: “tal averbação vai servir apenas para registrar a relembrar a vida inteira de [...] que seu pai foi formal e reconhecidamente reprovado”. Nesse sentido, por que não dar ao filho, após atingir a maioridade, a escolha de retirar o nome daquele que o abandou no registro de nascimento? A lei deixa claro que a maioridade torna a pessoa apta a praticar atos da vida civil, dessa forma, seria cabível tal conduta, não se limitando o amparo jurídico apenas à reparação civil ou à retirada do sobrenome.

Há o entendimento de que não se deve retirar do registro o nome do genitor que foi destituído da relação familiar, em decorrência do princípio da imutabilidade do nome e da indisponibilidade do sistema registral, salvo no caso peculiar de adoção. A esse respeito, impede ressaltar que os efeitos são apenas diante do poder de garantidor dos direitos, em face da criança e do adolescente, uma vez que os deveres continuam a ser resguardados.

Em março de 2015, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a um rapaz o direito de supressão do sobrenome do seu genitor em face do abandono, com substituição pelo prenome da avó materna, que junto da sua genitora o criaram, entendendo a Terceira Turma que o princípio da imutabilidade do nome não é absoluto. O autor da ação recorreu ao STJ contra o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, alegando que

violou o artigo 56 da Lei 6.015/73, já que estariam presentes todos os requisitos legais exigidos para a alteração do nome no primeiro ano após ele ter atingido a maioridade civil. Argumentou, ainda, que não pediu a modificação da sua paternidade no registro de nascimento, mas somente a exclusão do sobrenome do genitor, com quem não desenvolveu nenhum vínculo afetivo [grifo nosso].

O presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, o advogado Rodrigo da Cunha Pereira (2015, p. 1), a respeito de tal julgado, expôs que

é uma decisão muito lúcida porque traduz a realidade das atuais famílias; um pai que abandona o seu filho é indigno de ter seu sobrenome perpetuado. Quando alguém pretende retirar o sobrenome de um ascendente é por ter um motivo muito forte; neste caso, o total abandono do pai.

O mais importante para aquele filho abandonado é tentar minimizar o dano emocional sofrido, seja mediante uma possível reparação civil, ou por meio da busca do direito de desvincular o laço familiar através da modificação do nome no registro de nascimento.

Embora não seja reconhecida a supressão total do nome do genitor no registro de nascimento em face do abandono afetivo, em contrapartida há o reconhecimento do direito da retirada do sobrenome do genitor, sendo um passo importante na frustrada relação familiar, garantindo Pereira (ob. cit.) ser essa uma “decisão inovadora” no contexto social no qual vivemos, em que são comuns os casos de abandono afetivo.

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Sobre a autora
Milena Cibelle Siqueira

Militante em todas as áreas do Direito, ênfase em Direito Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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