Em tempos de diminuição de empregos, significativa alta de inflação, além da iminente crise econômica que assola o nosso país, o orçamento familiar sofreu grande mudança. Hoje, as famílias são levadas a escolher entre diversas contas que devem ser pagas e, consequentemente, deixar de pagar aquelas que julgam menos importantes.
Em meio a esse cenário perturbador encontra-se o condomínio que, notadamente, enfrenta enorme dificuldade em manter as finanças em dia, tendo em vista que, em regra, a cota condominial é a primeira obrigação que é deixada de lado em tempos de crise. Dados da SECOVI –SP mostram que o número de ações judiciais por falta de pagamento da taxa condominial cresceu 32,9% no acumulado de janeiro a agosto desse ano, em comparação com o mesmo período de 2014. Na cidade de São Paulo, foram 7.361 ações contra 5.540, no ano passado.
Aliado à crescente inadimplência que assola a grande maioria dos condomínios em todo o país, os condomínios que recorrem à via judicial enfrentam um processo deveras demorado e custoso, que pode se arrastar por anos e impedir que a saúde financeira do condomínio seja mantida, ou pior, estimular que o comportamento inadimplente seja lastreado ao cotidiano do condomínio como se fosse uma prática comum e aceitável, impondo aos condôminos bons pagadores o ônus de custear aqueles que não contribuem com as despesas do condomínio. Diante dessas circunstâncias, os síndicos buscam desesperadamente soluções que possam inibir a inadimplência.
Em muitos condomínios tornou-se habitual a supressão de serviços essenciais no caso de inadimplemento das cotas condominiais. Tais serviços compreendem as despesas ordinárias relativas ao consumo, tais como, água e gás, de modo que, em caso de inadimplemento da obrigação de pagar as cotas condominiais, incide sobre o inadimplente as sanções previstas na lei civil e na convenção condominial.
Ocorre que o corte de serviços essenciais em razão do inadimplemento das cotas condominiais ainda é matéria de entendimento conflituoso perante os tribunais e a mais autorizada doutrina. Como se não bastasse, os síndicos adotam tal medida, muitas vezes, de forma arbitrária e inconsequente, não tomando os mínimos cuidados necessários e comprometendo a segurança jurídica dos condomínios que representam.
Imprescindível se faz a análise dos riscos e benefícios que tal medida traz ao condomínio que pretende praticá-la e, consequentemente, dos fundamentos que sustentam tanto a legalidade quanto a ilegalidade de tal ato.
O princípio da dignidade da pessoa humana, constante no artigo 1º, III, da Constituição Federal, é o principal fundamento utilizado para sustentar a ilegalidade do corte de água pelos condomínios. Preceitua que:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;”
Quando buscamos a definição conceitual de “dignidade da pessoa humana” encontramos diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema, mas me parece mais adequada a definição de que a dignidade da pessoa humana consiste, basicamente, no conceito de mínimo existencial, ou seja, determinados bens, oportunidades e direitos imprescindíveis, sendo que a privação dos mesmos tornaria a existência deste ser humano demasiadamente penosa e talvez insuportável, ofendendo a sua condição humana e, consequentemente, sendo considerada intolerável.
É inequívoco que a água constitui o bem mais precioso e vital à existência do ser humano, além de permitir o óbvio prolongamento de sua existência, o ser humano utiliza das comodidades da água para suprir as suas necessidades cotidianas mais básicas como se alimentar, realizar a sua higiene pessoal etc. Portanto, privar qualquer pessoa desse bem constitui afronta a sua dignidade. Ademais, privando o condômino inadimplente do acesso à água, o mesmo não terá a possibilidade nem sequer de manter a higiene necessária à boa aparência e, consequentemente, não poderá comparecer a uma simples entrevista de emprego em condições aceitáveis. Dessa forma, tal medida prejudicará ainda mais a possibilidade do condômino equilibrar a sua vida financeira por meio de um novo emprego.
Como se não bastasse tal argumentação, o artigo art. 620 do CPC consolida que “Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.”. Ora, apesar do expressivo lapso temporal, que faz a demanda se arrastar por meses e até anos na justiça, é incontroverso que o condomínio dispõe de diversos modos para perseguir o adimplemento das cotas condominiais em atraso, por exemplo, ação monitória, mediações, protesto, execução etc. Dessa monta, seria justo com o devedor, considerado por vezes parte extremamente frágil da relação, imputar imediatamente a medida mais gravosa que irá lhe trazer consequências extremamente negativas?
Finalmente, diante de todos os fundamentos anteriormente mencionados, é de fácil constatação que a utilização de tal medida, desde que ignorados certos cuidados, torna-se extremamente violenta e traz sérios danos ao devedor, violando o princípio da dignidade da pessoa humana e, consequentemente, ocasionando sério risco de pagamento de indenização em razão de danos morais pelo condomínio em face do inadimplente.
Por outro lado, aqueles que acreditam na legalidade do corte de serviços essenciais utilizam como um de seus fundamentos o disposto no artigo 6º, parágrafo 3º, II, da lei nº 8987/95, que dispõe:
“Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 3oNão se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.”
Preliminarmente, destaca-se que é imprescindível a individualização da conta de água das unidades condominiais, pois a ausência dessa providência levaria ao condomínio notória insegurança jurídica. Consequentemente, levando-se em conta as diversas formas de individualização de conta de água, além de modelos de medição, é necessário definir quem será o responsável pelo corte de água, ou seja, será o condomínio ou a empresa prestadora de serviços?
Evidentemente, é preferível que o corte seja realizado pela empresa prestadora de serviço, pois, em caso de decisões judiciais desfavoráveis a tal prática, a responsabilidade do condomínio poderá ser excluída. Se ainda assim o condomínio optar por realizar o corte por ele próprio ou empresa administradora de condomínios, o risco de condenação em danos morais será ainda mais elevado, recomenda-se então que o procedimento seja acompanhado por profissional com ampla experiência na área.
Um erro muito comum em diversas administrações condominiais é o convencimento de que basta a realização de uma assembleia condominial, com aprovação de condôminos por quórum simples, para que o corte de água possa ser realizado. Este é um grave equívoco. Antecipadamente, além da individualização da conta de água das unidades condominiais, é necessário que seja definida a forma de cobrança e as regras para aplicação do corte de água, estas disposições deverão obrigatoriamente constar da convenção condominial. No caso da convenção condominial não dispor sobre o tema, a alteração na mesma deverá ser realizada em assembleia com aprovação de no mínimo 2/3 da totalidade dos condôminos, respeitado o quórum específico.
A forma de cobrança irá estipular se a cobrança de água será realizada separadamente da cota condominial ou conjuntamente em um único boleto.
Em relação às regras do corte de água, serão definidos os requisitos necessários para que seja realizada a supressão de tal serviço, sendo amplamente recomendado que sejam seguidas, no mínimo, as mesmas regras imputadas às concessionárias de serviços públicos em relação ao assunto. Ou seja, reiterados avisos prévios sobre o corte, inadimplência das cotas condominiais de no mínimo 70 dias, tentativa de realização de acordo, inadimplência atual etc. Nota-se que jamais a supressão de tal serviço pode ser feita de maneira arbitrária, ignorando um padrão de tolerância aplicável a coletividade dos condôminos.
Somente a fixação das regras do corte de água na convenção condominial, com aprovação por quórum específico de 2/3 da totalidade dos condôminos, traz a solidez da fundamentação necessária a legitimar a supressão deste serviço essencial, o que é amplamente reconhecido pelos tribunais em todo o país, como será analisado em seguida.
No tocante ao entendimento dos tribunais, a legalidade do ato de suprimir serviços essenciais ainda é deveras conflituosa.
Nota-se que, quando os tribunais não legitimam tal ato, a decisão é fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana e, principalmente, na ausência de previsão legal que deveria constar na convenção condominial. O condomínio geralmente aprova o corte de água em assembleia, com quórum simples, acreditando que tal ato é legítimo e aplicando-o sem qualquer padrão ou critério. Dessa forma, os tribunais condenam os condomínios a pagar indenização a título de danos morais.
No entanto, quando os tribunais reconhecem a legitimidade de tal ato, os condomínios realizaram o corte de água baseado em norma constante na convenção condominial, regularmente alterada por quórum específico e aplicada seguindo um critério coerente e padronizado à generalidade dos condôminos.
Por fim, é notória a eficiência do método de supressão dos serviços essenciais como medida de adimplemento das cotas condominiais, estimulando o inadimplente, exposto à situação de penúria, a suprir com as suas obrigações. No entanto, somente alguns condomínios consideravelmente organizados estão aptos a utilizar esta medida com a necessária segurança jurídica, sempre acompanhados de profissional experiente que possa realizar todos os requisitos que minimizam os riscos desse ato. Caso contrário, o condomínio estaria exposto a severo risco de condenação e pagamento de indenização a título de danos morais.