Recentemente, mais precisamente em 29 de Setembro de 2015, foi promulgada a novel Lei nº 13.165 - Minirreforma Eleitoral, que, por veto presidencial, na esteira da decisão do Supremo Tribunal Federal pela inconstitucionalidade dos dispositivos de lei que autorizavam o financiamento de campanhas políticas por pessoas jurídicas, alterou parcialmente o Projeto de Lei nº 5.735/13, revogando expressamente a totalidade do artigo 81 da Lei 9.504/97.
Essa nova realidade na arrecadação de recursos, ao que indica, tem por escopo retirar o protagonismo das pessoas jurídicas no financiamento das campanhas eleitorais, barrando o poderio econômico das empresas, que encarece o processo eleitoral, sem oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate[1].
Não obstante o interesse e o clamor social pela discussão, o que deverás se pretende abordar aqui é o destino das Representações ajuizadas contra Pessoas Jurídicas que supostamente efetuaram doações eleitorais acima do limite legal.
Com efeito, estando revogado o §3º, do artigo 81, da Lei 9.504/97 - norma que servia de fundamentação para as Representações (§4º) por suposta doação acima do limite legal, prevendo, inclusive, algumas das sanções (§§2º e 3º - não cumulativas) para as pessoas jurídicas que infringissem os limites impostos no §1º, nenhuma representação ajuizada com fundamento no artigo 81 da Lei das Eleições poderá ser julgada procedente, sob pena de violação ao princípio da legalidade (art. 5º, incisos II e XXXIX, CF/88).
Isso porque a derrogação da totalidade do artigo em comento trouxe como consequência a atipicidade da conduta então vedada no §1º, razão pela qual não tem mais cabimento à aplicação das sanções administrativas cominadas nos §§2º e 3º, do artigo 81, da Lei 9.504.
Explica-se.
Ao retirar do ordenamento jurídico eleitoral a oportunidade dos candidatos e dos partidos receberem recursos financeiros de empresas para suas campanhas, o legislador, direta ou indiretamente, isso pouco importa, acabou por “descriminalizar” a conduta da pessoa jurídica que realizou doações ou contribuições acima do limite legal, tornando o fato atípico, motivo pelo qual não cabe mais a aplicação das sanções contidas nos seguintes §§2º e 3º, acaso haja Representação em curso.
Isso quer dizer, utilizando-se dos conceitos básicos dos princípios penais, que o Estado abriu mão do seu direito de punir e, em vias de consequência, declarou extinta a punibilidade de todos os fatos ocorridos anteriormente à edição da lei nova.
No Direito Penal, esse fenômeno jurídico é conhecido como abolitio criminis, e tem previsão no artigo 2º, do Código Penal, significando que ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime.
Antes que seja advertido, é prudente anotar que não se desconhece que se está diante de matéria administrativa. Todavia, é importante que se atenha ao ponto nuclear da discussão: a eventualidade de uma punição por comportamento que não encontra mais vedação legal, não sendo, pois, passível de sanção.
Veja, então, que se tem aqui um ponto de interseção entre o ilícito penal e o ilícito administrativo, tendo em vista que parte-se da premissa de que aquilo que se tinha como reprovável não é mais assim entendido e, por isso mesmo, não se deve mais cogitar aplicação de sanção, sob pena de impor punição a comportamento não mais tido como censurável.
Assim sendo, sob o prisma ontológico, não há distinção entre o ilícito administrativo e o ilícito penal. Nesse sentido, precisa é a lição Nélson Hungria[2]:
“A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Dizia BENTHAM que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas ‘sôbre um mesmo plano, sôbre um só mapamúndi’. Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontològicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critério de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interêsse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço. Conforme acentua BELING, a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau: está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com outra. O ilícito administrativo é o minus em relação ao ilícito penal. Pretender justificar um descrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que KULULA justamente chama de ‘estéril especulação’, idêntica à demonstração da ‘quadratura do círculo’. Baldadas têm sido tôdas as tentativas doutrinárias em tal sentido.”
E, mais adiante:
“Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre uma e outra, pôsto que pena seja, de um lado, o mal infligido por lei como consequência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g, a multa administrativa e a multa do direito penal.”
Caminho idêntico encontra Fábio Medina Osório[3], segundo o qual:
“Há sanções administrativas que se assemelham bastante àquelas de natureza penal. Tal é o caso da suspensão dos direitos políticos, restrições a direitos de contratar ou receber benefícios lato sensu da administração pública, e inclusive perda de cargos públicos, as quais, dependendo do ordenamento jurídico em que inseridas, podem assumir feições de natureza penal.”
Isto posto, inequívoco afirmar que há, sim, um regime jurídico comum aplicável ao ilícito penal e ao ilícito administrativo, vez que não há diferença ontológica quanto à natureza e a essência desses ilícitos.
Assim é que, em que pese não ser de natureza penal, a norma revogada possui índole sancionatória, razão pela qual se justifica a retroatividade da lei mais benéfica - no caso a 13.165/15, sendo aplicada aos fatos ocorridos anteriormente à sua vigência, ainda que tenham sido decididos por sentença condenatória já transitada em julgado[4].
Outra vez mais, essa é a intelecção que se extrai do artigo 2º, do Código Penal, e se configura no que o Direito Penal denomina como novatio legis in mellius, exceção à regra da irretroatividade da lei penal, garantia constitucional insculpida no inciso XL, do artigo 5º.
É o que, mutatis mutandis, Cezar Roberto Bitencourt[5] denomina de retroatividade da lei penal mais benigna, significando que a lei nova que for mais favorável ao réu sempre retroage.
De igual modo, o constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos[6] doutrina que a função do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais branda, lex mitior, é voltar no tempo, visando a obtenção de benefícios outrora não considerados.
É salutar anotar que o princípio da retroatividade da lei penal mais favorável (art. 5º, XL, CF) representa um detalhamento, no âmbito do Direito Penal, do princípio da legalidade enunciado de forma genérica no inciso II do artigo 5º da CF/88.
Tudo isso, indelevelmente, leva, como já anunciado previamente, a necessidade de aplicação - nas Representações ajuizadas contra Pessoas Jurídicas que supostamente realizaram doações acima do limite legal, do fenômeno jurídico da abolitio criminis, dado o caráter sancionatório da norma revogada (§§2º e 3º, do art. 81, da Lei 9.504/97).
Aliás, a aplicação da doutrina da abolitio criminis na seara eleitoral não é nenhuma novidade, vez que são inúmeras as decisões proferidas pelos Tribunais Eleitorais[7] consagrando os efeitos desse princípio (Retroatividade da Lei Penal Benéfica) de essência penal, mas com fundamentos que alcançam outros ramos do Direito, como visto en passant.
Portanto, entendemos que as Representações contra pessoas jurídicas por doação acima do limite legal devem ser julgadas improcedentes, aplicando-se os efeitos da abolitio criminis.
[1] O voto do relator da ADI 4650, Ministro Luiz Fux, pode ser conferido através do link http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4650relator.pdf
[2] Artigo publicado na RDA que pode ser conferido através do link http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/8302/7076
[3] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 4. Ed. Rev., atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2011, p. 96.
[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 15ª ed. Rio de Janeiro. Impetus, 2013, p. 108
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 1, parte geral. 13ª ed. atual. São Paulo. Saraiva, 2008 , p. 19
[6] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva, 2007, p. 496.
[7] Para fins de consulta, destaca-se o RE nº 1207/GO, Rel. Roldão O. de Carvalho, p. 16/01/2012.