A função do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade: uma análise à luz da evolução do controle de constitucionalidade no Brasil

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Pretende-se mostrar como tem sido compreendida a competência outorgada ao Senado Federal para suspender lei declarada inconstitucional em sede de controle de constitucionalidade difuso desde a instituição dessa competência, em 1934, até os dias atuais

Resumo: A Constituição brasileira de 1934, com o intuito de resolver o problema relativo à limitação de eficácia das declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, atribuiu competência ao Senado Federal para que este suspendesse a execução de lei ou ato, deliberação ou regulamento declarados inconstitucionais pela Corte. Essa competência deferida ao Senado foi preservada nas Constituições posteriores, salvo pela de 1937. Nota-se, contudo, que, ao longo da evolução do controle de constitucionalidade no Brasil, essa atribuição do Senado Federal passou a ser questionada. Há autores que afirmam que a intervenção do Senado Federal no controle difuso não se faz mais necessária para fins de atribuição de eficácia erga omnes às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum pelo Supremo Tribunal Federal e que, atualmente, a participação do Senado no controle de constitucionalidade deveria ser tão somente para dar publicidade às decisões daquele Tribunal.

Palavras-chave: competência do Senado Federal; controle difuso de constitucionalidade; evolução do controle de constitucionalidade

Abstract: The Brazilian Constitution of 1934, in order to solve the problem of the limited efficacy of the unconstitutionality of statements made by the Supreme Court on fuzzy control headquarters, attributed jurisdiction to the Federal Senate for it to suspend the law enforcement or action, deliberation or regulation declared unconstitutional by the Court. That power granted to the Senate was preserved in subsequent Constitutions, except for 1937. It should be noted, however, that, throughout the evolution of judicial review in Brazil, this function of the Senate began to be questioned. Some authors claim that the intervention of the Senate in the diffuse control it becomes more necessary for the purpose of assignment erga omnes effect to the rendered unconstitutional statements incidenter off aid by the Supreme Court and that, currently, the participation of the Senate in constitutional control It should be just to publicize the decisions of that Court.

Keywords: competence of the Federal Senate; diffuse control of constitutionality; evolution of judicial review

1 INTRODUÇÃO 

Conforme o art. 52, inciso X, da Constituição Federal de 1988, compete privativamente ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”[2]. Esta competência outorgada ao Senado, entretanto, não é uma inovação da Constituição de 1988. Deveras, foi prevista pela primeira na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934.

Quando atribuiu esta competência ao Senado Federal, a Carta de 1934 pretendeu resolver uma falha do controle de constitucionalidade instituído no Brasil pala Constituição Imperial, de 1891: a limitação da eficácia das declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. 

O constituinte de 1891, inspirado no Direito norte-americano, consolidou no ordenamento jurídico brasileiro o controle jurisdicional de constitucionalidade. Tal como no sistema de controle de constitucionalidade estadunidense, o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade instituído pela Constituição de 1891 era difuso e incidental. Contudo, deixou esta Constituição de importar do modelo controle jurisdicional existente nos Estados Unidos o stare decisis, mecanismo responsável por emprestar eficácia geral às decisões das Cortes Superiores[3]. Com isso, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal produziam eficácia tão somente entre as partes da relação jurídica processual.

Somente a partir de 1934, com a atribuição de competência ao Senado Federal para suspender a execução de lei ou ato, deliberação ou regulamento declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, tornou-se possível emprestar eficácia erga omnes às decisões proferidas por esse Tribunal em sede de controle difuso. {C}[4]

Por meio da Emenda Constituição n. 16, de 1965, foi formalmente adotado no Brasil o controle concentrado de constitucionalidade, de origem austríaca. Ocorre que, mesmo as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado dependiam da intervenção do Senado Federal para produzirem eficácia erga omnes.  Essa situação só veio a mudar em 1977, quando o Supremo formou posição quanto à inexigibilidade do ato do Senado para fins de atribuição de eficácia geral às declarações de inconstitucionalidade em controle concentrado.

Ao longo da evolução do controle de constitucionalidade no Brasil, é possível observar manifestações contrárias até mesmo à necessidade de intervenção do Senado no controle difuso de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal. Nesta esteira, a despeito de estar prevista na Constituição de 1988, a resolução do Senado, para alguns autores, não é mais condição de eficácia geral às declarações de inconstitucionalidade incidenter tantum. Há na doutrina quem sustente que a participação do Senado no controle de constitucionalidade atualmente deve ocorrer tão somente para dar publicidade às declarações de inconstitucionalidade.

2 SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1 O Sistema norte-americano

O sistema norte-americano de controle de constitucionalidade formalizou-se em 1803, com o julgamento do célebre caso William Marbury versus James Madison pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Neste julgamento destacou-se a o voto do Chief Justice da Suprema Corte americana, John Marshall,[5] que sustentou tanto a supremacia da Constituição como a competência do Poder Judiciário para invalidar os atos do poder público que a contrariassem.

Na decisão que proferiu, o juiz da Suprema Corte arguiu que a Constituição, por ser “uma lei superior e predominante”, não permite a existência de qualquer ato normativo com ela incompatível. Outrossim, asseverou que o Judiciário, sendo investido do poder de aplicar as regras, também detém competência para interpretá-las. Deste modo, aduz que, quando diante de um caso particular em que a lei contraria a Constituição, os juízes e tribunais deverão, em razão da superioridade Constituição, negar aplicação à resolução legislativa ordinária[6].

Antes de John Marshall, Alexandre Hamilton já havia sustentado em O Federalista a importância do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário para a garantia da democracia e afirmado que a norma contrária à Constituição é nula.  Contudo, foi a partir do pronunciamento de Marshall naquele julgamento que os fundamentos do controle jurisdicional de constitucionalidade foram disseminados. Aliás, para Dirley da Cunha Júnior, o controle judicial de constitucionalidade das leis teria nascido da decisão do juiz Suprema Corte dos Estados Unidos[7].

Desde então, o sistema judicial de controle de constitucionalidade foi incorporado definitivamente à experiência constitucional dos Estados Unidos e daí se expandiu, servindo o sistema norte-americano de inspiração para os vários modelos de controle de constitucionalidade que surgiram posteriormente em outros países, dentre eles o Brasil.

O sistema do judicial review norte-americano caracteriza-se como um sistema de controle judicial difuso, concreto, subjetivo e incidental. É definido como um controle difuso e concreto em razão de possibilitar a todos os juízes e tribunais, quaisquer que sejam sua natureza ou grau, a aferição da constitucionalidade das leis e atos do poder público diante de um caso concreto[8]. Contrapõe-se, pois, ao controle concentrado, de origem austríaca, caracterizado por deferir à apenas um ou poucos órgãos do Judiciário o poder para fiscalizar a constitucionalidade das leis[9].

É subjetivo o controle norte-americano uma vez que é efetivado diante de um caso concreto, no qual existe conflito de interesses entre as partes que compõem a relação jurídico processual. Ademais, consiste em controle incidental, provocado por via de exceção ou de defesa, porque realizado no curso de uma demanda na qual a inconstitucionalidade é alega incidentalmente, configurando uma questão prejudicial, que deve ser resolvida pelo juiz para solucionar a controvérsia. Neste caso, a análise da constitucionalidade não é o pedido principal da demanda, mas se faz necessária à composição da lide[10].

Quanto aos efeitos do controle de constitucionalidade no Direito norte-americano aplicava-se com exclusividade a tese da nulidade [11]. Com base nela, tem-se por nula, írrita, inexistente e ineficaz a norma eivada pela mácula da inconstitucionalidade. Frente à esta inconstitucionalidade congênita da norma restaria ao juiz apenas declarar sua preexistente nulidade e não anulá-la[12].

Como desdobramento da adoção da teoria da nulidade, segundo a qual a norma inconstitucional é considerada ineficaz, como se nunca tivesse existido, atribuía-se às decisão declaratória de inconstitucionalidade no sistema estadunidense, sem exceção, apenas efeitos retroativos, isto é, ex tunc.  Para Dirley da Cunha Júnior, o efeito retroativo destas decisões consiste em “mero acertamento de uma pré-existente nulidade absoluta”[13].

Não obstante o sistema de controle de constitucionalidade norte-americano ter, a princípio, adotado com exclusividade a tese da nulidade, esta veio a ser mitigada a partir de 1965, quando a Suprema Corte americana, no julgamento do caso Likletter versus Walker, inaugurou a possibilidade para atribuição efeitos prospectivos às decisões declaratórias de inconstitucionalidade.[14]

No caso Linkletter versus Walker (381 US 25, 1965), Linkletter pleiteava a revisão de sentença que lhe havia condenado com base em sistema de colheita de provas declarada inconstitucional pela Suprema Corte no julgamento do caso Mapp versus Ohio (367 US 643, 1961). A Corte, entretanto, indeferiu o pedido de Linkletter sob o fundamento de que na Constituição não havia proibição nem exigência de efeito retroativo às decisões que declarassem a inconstitucionalidade da lei. Ademais, esclarece Tribe que, nesta oportunidade a Suprem Corte afirmou que a questão da retroatividade da decisão declaratória de inconstitucionalidade trata-se de assunto relacionado à política judiciária e que deveria ser analisada caso a caso[15].

Ao negar efeitos retroativos à decisão adotada caso Mapp versus Ohio pretendeu a Suprema Corte americana evitar o indesejável aumento do trabalho do Judiciário que seria deflagrado pelo acúmulo de demandas voltadas à revisão de casos já decididos sob a égide de lei que, posteriormente venha a ser declarada inconstitucional.

Aberta a possibilidade de atenuação do tradicional princípio da nulidade absoluta, no sistema norte-americano passou-se a admitir que às declarações de inconstitucionalidade além do efeito retroativo amplo ou limitado (limited retrospectivity), fosse dado efeito ex nunc (prospective overruling). O efeito prospectivo pode ser limitado (limited prospectivity), aplicando-se a partir do caso que gerou o pronunciamento da Corte, ou pode ser ilimitado (pure prospectivity), quando a declaração de inconstitucionalidade somente produzirá efeitos em relação a casos posteriores aquele que ensejou o pronunciamento da Corte[16].  

Por ser o controle de constitucionalidade norte-americano qualificado como um controle concreto, tem-se, ainda, que as decisões declaratórias de inconstitucionalidade, a priori, produzem eficácia somente inter partes, vinculando tão somente as partes da relação jurídico-processual. Todavia, a limitação da eficácia das decisões ao caso concreto é superada por aquele sistema de jurisdição constitucional em virtude da existência do stare decisis[17].

O termo stare decisis, abreviatura da expressão latina stare decisis et non quieta movere, significa ficar com o que foi decidido e não mover o que está em repouso. [18] A doutrina do stare decisis ou da força vinculante dos precedentes judiciais não encontra previsão no texto da Constituição dos Estados Unidos, de 1787. Sua origem no direito norte-americano deve-se à influência recebida da tradição do common law inglês. [19]

Pela regra do stare decisis assegura-se que a decisão adotada em determinado caso seja aplicada a casos semelhantes, sendo, por isso, definido por Taiz Marrão Batista da Costa como um “instrumento de manutenção das decisões estabelecidas, em observância ao princípio estabelecido em precedente”. [20]

Para Amy Coney Barret o stare decis é o princípio segundo o qual uma Corte segue seus próprios precedentes e os precedentes de uma Corte superior.{C}[21] Levada em consideração esta definição, as decisões proferidas pela Suprema Corte norte-americana, por força do stare decisis, devem ser observadas por todos os juízes e tribunais.

Diante da força vinculante dos precedentes da Corte, quando esta declarar a inconstitucionalidade de uma lei, os demais órgãos judiciais deverão deixar de aplicá-la. Assim, muito embora a decisão proferida no sistema de controle de constitucionalidade norte-americano refira-se a um caso concreto, terá ela eficácia erga omnes, alcançando, portanto, não somente as partes em litígio.

2.2 Sistema austríaco

A doutrina norte-americana da jurisdição constitucional somente foi recepcionada na Europa no início do século XX, tendo sido decisivo para tanto o trabalho intelectual desenvolvido por Hans Kelsen no projeto que apresentou, a pedido do governo austríaco, para a elaboração da Constituição austríaca (Oktoberverfassung), promulgada em 1º de outubro de 1920. Sob a influência de Kelsen, a Constituição da Áustria de 1920 incorporou o controle de constitucionalidade das leis. Este, contudo, comportava diferenças significativas com o controle da judicial review americano.

Tal como idealizado pelo jurista austríaco, a Carta de 1920 incorporou o controle jurisdicional de constitucionalidade, a ser exercido com exclusividade por um órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Tribunal Constitucional (Verfassungsgerichshof). Por possibilitar que somente um órgão do Judiciário fiscalize a compatibilidade das leis e atos normativos com a Constituição, fala-se que no sistema austríaco o controle de constitucionalidade é concentrado, característica esta que se opõe a do sistema de jurisdição constitucional americano, em que o controle é difuso.

Afirma Dirley da Cunha Junior que essa distinção entre o modelo americano e austríaco decorre do fato de que, tanto a Áustria quanto os demais países que posteriormente adotaram o controle conscentrado seguem a tradição da civil law e, por consequência, não adotam o princípio  do stare decisis, mecanismo existente nos países da common law que permite que os precedentes dos órgãos de cúpula do Judiciário vinculem os órgãos jurisdicionais inferiores. Com isso, a adoção do controle difuso por países da civil law conduziria a uma situação em que alguns juízes deixariam de aplicar uma norma por entendê-la inconstitucional, ao passou que outros poderiam aplicá-la em razão de entendê-la constitucional.

Segue o autor dizendo que também é inconveniente para a instituição do controle difuso em países que não tenham um mecanismo semelhante ao stare decisis a situação de acúmulo de demandas. Isto porque, ainda que a inconstitucionalidade de uma lei de forma reiterada, “será sempre necessário que alguém interessado nesse mesmo pronunciamento proponha uma nova demanda em juízo, submetendo a mesma lei a um novo julgamento”.[22]{C}

Outra característica do sistema austríaco de controle de constitucionalidade que o distingue do sistema americano diz respeito ao modo como podem ser levadas a julgamento pelo órgão jurisdicional competente as questões relativas à constitucionalidade das normas. Enquanto a questão constitucional é suscitada pela via principal no sistema austríaco, no sistema americano é submetida aos juízes e tribunais pela via incidental.

            No sistema europeu, como também é conhecido o sistema idealizado por Kelsen, o controle pela via principal concretiza-se mediante um requerimento especial (Antrag) ao Tribunal Constitucional. Os únicos legitimados para fazer tal requerimento alguns o Governo Federal e os Governos dos Lünder, que são órgãos políticos. Assim, o controle de constitucionalidade das normas pelo Verfassungsgerichshof, que, a princípio era somente abstrato, isto é, desvinculado de uma situação concreta, dependia do ajuizamento da ação especial pelos referidos órgãos políticos.

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            Em 1929, com a reforma constitucional, o sistema austríaco de controle de constitucionalidade sofreu alteração. Com efeito, antes de 1929 este sistema possibilitava apenas o controle concentrado e abstrato, por quanto a questão a análise da constitucionalidade somente poderia ser feita em tese, fora de um caso concreto, pela via principal, mediante o ajuizamento de uma ação especial, esta manejada somente por órgãos políticos.

Ocorre que, após a reforma de 1929, a Constituição austríaca passou a prever ao lado do “controle abstrato, na via de ação, o controle concreto, na via de exceção”[23]. A leigitimadade para suscitar o exercício do controle concreto de constitucional  pelo Tribunal Constitucional é de apenas dois órgãos de jurisdição ordinária, quais sejam, o Oberster Gerichtshof (a Corte Suprema para as causas cíveis e penais) e o Verwaltungsgerichtshof (a Corte Suprema para as causas administrativas). Estes órgãos, quando estiverem a julgar uma controvérsia que para ser solucionada exija a análise da constitucionalidade da lei, por não poderem eles mesmo realizá-la, uma vez que o controle de constitucionalidade somente pode ser exercido pelo Tribunal Constitucional, requerem a este órgão de cúpula que a faça{C}[24]{C}.

            Uma das críticas dirigidas ao sistema austríaco diz respeito ao fato de não permitir que os demais órgãos do Poder Judiciário possam provocar o Tribunal Constitucional a analisar a constitucionalidade da lei, ainda que a aferição da constitucionalidade seja necessária para solucionar a controvérsia.  Essa limitação acaba por impor aos órgãos de jurisdição ordinária que apliquem a lei ainda que a considerem inconstitucional.

            Pode-se mencionar, ainda, como traços distintivos entre o sistema norte-americano e sistema austríaco os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da lei observados em cada uma dessas matrizes de controle de constitucionalidade. Como já exposto, no sistema americano, a decisão que declara a inconstitucionalidade das leis terá, em regra, efeito ex tunc, em razão da tese da nulidade da lei declarada inconstitucional, bem como eficácia inter partes, e, por isso, somente repercutirá entre as partes da relação jurídico-processual. De forma contrária, no sistema austríaco não se aplica a teoria da nulidade, mas sim da anulabilidade,[25] sendo a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de natureza constitutiva. [26] Ademais, a decisão que declara a inconstitucionalidade, neste sistema, produzirá efeito ex nunc e eficácia erga omnes (Allgemeinwirkung).

Na matriz austríaca de controle de constitucionalidade, considera-se que a lei, antes de ser declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, era válida e eficaz. Diante disso, a declaração de inconstitucionalidade somente terá efeitos prospectivos. Notabiliza-se, ainda, neste sistema, o poder discricionário do Verfassungsgerichshof para determinar que a anulação da lei tenha efeito somente “a partir de uma determinada data posterior (‘Kundmachung) de seu pronunciamento, contanto que este diferimento de eficácia constitutiva do pronunciamento não seja superior a um ano”. [27].

            Com o advento da reforma constitucional de 1929, além do tradicional efeitos ex nunc, passou-se a admitir que a decisão que declara a inconstitucionalidade da lei tenha efeitos ex tunc. Essa possibilidade, contudo, restringe-se aos casos em que a declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional tenha decorrido de um requerimento dirigido pelo Oberster Gerichtshof ou pelo Verwaltungsgerichtshof àquela Corte para que se pronuncie acerca da constitucionalidade de uma lei, possibilitando assim, que resolvam os casos concretos tramitam perante eles.   

Dirley da Cunha Júnior faz as seguintes considerações quanto à atenuação da regra do efeito prospectivo da decisão declaratória de inconstitucionalidade no sistema austríaco, promovida pela admissibilidade do efeito ex tunc:

Essa situação, porém, foi atenuada com a reforma constitucional de 1929.

Consoante foi visto acima, essa reforma acrescentou um modo peculiar para a

instauração da jurisdição constitucional concentrada do Tribunal Constitucional, mediante a atribuição de legitimidade a dois órgaos de cúpula da justiça ordinária - o Oberster Gerichtshof e o Verwaltungsgerichtshof - limitada, porém, a provocar junto à Corte Constitucional o controle de constitucionalidade das leis questionadas nos casos concretos em curso perante aqueles órgãos. Ou seja, incidentalmente aos processos concretos que perante eles tramitam, os supra aludidos órgãos judiciarios assumiram o encargo de requerer junto ao Tribunal Constitucional o exame da constitucionalidade das leis questionadas junto àquelas demandas e cuja aplicação ou não aplicação seja condição necessária para o desate das mesmas.

Em decorrência dessa circunstância, visando a conciliar os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional com as situações ou fatos concretos discutidos nas ações comuns em tramitação naqueles órgãos judiciários ordinários, e em virtude dos quais se instaurou o incidente de constitucionalidade junto a Corte Constitucional, a reforma de 1929 admitiu que a lei declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, nessas circunstâncias, não seja aplicada também em relação aos fatos ocorridos antes da decisão, operando com efeitos ex tunc nos casos concretos.[28]{C}

3 O PAPEL DO SENADO FEDERAL AO LONGO DA EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

A Constituição do Império, de 1824 não admitiu o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos pelo Poder Judiciário. [29] Fortemente influenciada pelo dogma francês da soberania do Parlamento, a Carta de 1824 havia consagrado em art. 15, incisos VIII e IX a competência do Poder Legislativo para editar leis, de interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem como o poder de velar pela guarda da Constituição[30].

Naquele contexto, portanto, apenas o poder que editou o ato normativo tinha competência para interpretá-lo e revogá-lo, ao passo que, ao juiz restava apenas a aplicação da norma, sendo-lhe, no exercício desta função, vedado “pronunciar mais do que as palavras do seu texto”[31].

A partir da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, e das ideias de Rui Barbosa, o Brasil passou a sofrer forte influência do direito norte-americano. Com inspiração no sistema norte-americano do judiacial review, a Constituição Provisória de 1890 (Decreto n° 510, de 22 de junho de 1890), nos seus art. 58, §1º, a e b{C}[32], já previa o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Foi nesse momento, portanto, que, de forma embrionária, instituiu-se no Brasil o controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário.

 O Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, por meio dos arts. 3º e 9º, também outorgou aos órgãos do Judiciário o poder de fiscalizar a validade das normas em face da Constituição. No art. 3º, estabeleceu a competência da magistratura federal para intervir, em espécie e por provocação da parte, na guarda e aplicação da Constituição e das leis nacionais.  Já em seu art. 9º, parágrafo único, alíneas a e b, previa, ainda, o controle de constitucionalidade das leis estaduais ou federais.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, recepcionou aquelas disposições em seu art. 59, §1º, alíneas a e b, consolidando no país o controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. O art. 59, § 1º, da Constituição Republicana definia a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar recurso interposto contra sentenças da Justiça dos Estados em última instância quando fosse questionada a validade ou aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal do Estado a contrariasse, bem como na situação em que fosse contestada a validade de leis ou de atos dos governos locais, em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas. 

Embora o texto da Constituição de 1891 tivesse sedimentado o controle difuso de constitucionalidade no Brasil, atribuindo competência para aos órgãos do Judiciário exercerem o controle de constitucionalidade das leis, observou-se, a princípio, a inércia dos juízes e tribunais em efetivarem aquela atribuição. A razão para isso, segundo Dirley da Cunha Júnior, foi a “dúvida que acometeu, no início, ao próprio Poder Judiciário quanto à existência de sua competência para o controle de constitucionalidade[33]”.

Tal dúvida veio a ser dirimida por Rui Barbosa ao esclarecer que a intenção da Carta de 1891 era de deferir competência aos juízes e tribunais para analisarem a constitucionalidade das leis e aplicarem-nas somente quando estiver em conformidade com a Constituição[34]. Com o advento da Lei n. 221, de 20 de novembro de 1894, cuja elaboração contou com a participação daquele jurista brasileiro, tornou-se ainda mais evidente a existência do controle judicial de constitucionalidade no país, tendo o art. 13, § 10, da Lei n. 221 definido a competência dos juízes e tribunais para procederem ao exame da constitucionalidade das normas e deixarem de aplicá-las quando maculadas pela inconstitucionalidade.

Sob o influxo do modelo norte-americano da judicial review, a Constituição de 1891 havia adotado o controle de constitucionalidade difuso, porquanto atribuía a todos os juízes e tribunais a competência para fiscalizar a compatibilidade dos atos normativos com a Constituição. Ademais, tal como no sistema norte-americano, o controle de constitucionalidade brasileiro, a princípio, era tão somente incidental[35], provocado por via de exceção ou de defesa, uma vez que o exame da constitucionalidade da norma somente era realizado quando necessário à solução de uma controvérsia. Diante disso, as decisões que declaravam a inconstitucionalidade dos atos normativos produziam eficácia inter partes.

Conquanto o controle de constitucionalidade adotado pela Constituição de 1891 tenha sido fortemente influenciado pelo sistema de controle dos Estados Unidos, deixou aquele de prever um mecanismo que, à semelhança do stare decisis norte-americano, resolvesse o problema relativo à limitação da eficácia às decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade concreto.

Daí a afirmação de Luís Guilherme Marinoni de que, a despeito da inclinação das “mentes privilegiadas que influenciaram a Constituição de 1891” pelo direito estadunidense e de ter Rui Barbosa defendido a adoção de precedentes vinculantes, ao menos em relação às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo STF, “a importância do stare decisis foi renegada no desenvolvimento do direito brasileiro”.[36]{C}

A Constituição de 1934, embora tenha mantido o controle difuso de constitucionalidade, trouxe algumas novidades ao ordenamento jurídico pátrio. Kildare Gonçalves destaca dentre as inovações desta Carta a regra de reserva de plenário, a representação interventiva, a vedação ao Poder Judiciário em conhecer questões exclusivamente políticas e a atribuição de competência ao Senado Federal para suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, que tenham sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. {C}[37]

A regra da reserva de plenário estava prevista no art. 179, da Constituição de 1934. Este dispositivo estabeleceu um quorum especial, constituído pela maioria absoluta dos membros dos tribunais, para decidir sobre a inconstitucionalidade de lei ou atos do Poder Público. Esta exigência, introduzida no ordenamento jurídico pátrio com o objetivo outorgar maior segurança jurídica às declarações de inconstitucionalidade, existe até hoje.

            A representação interventiva, “germe da ação direta de inconstitucionalidade”, por sua vez, estava prevista no art. 12, V daquele diploma. Segundo este dispositivo, a União não poderia intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo para garantir a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras a a h , do art. 7º, nº I, e a execução das leis federais.[38]

Já a atribuição de competência ao Senado Federal para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei, decreto, regulamento ou deliberação declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário estava prevista no art. 91, IV, da Constituição de 1934. O art. 96 desta Constituição, em complemento a este dispositivo, estabeleceu a competência do Procurador-Geral da República para comunicar a decisão da Corte Suprema que houvesse declarado a inconstitucionalidade de lei ou ato governamental ao Senado, para fins do art. 91, IV, bem como à autoridade legislativa ou executiva, de que tenha emanado a lei ou o ato.

            Por meio do mecanismo da suspensão pelo Senado, a limitação da eficácia das decisões proferidas pela Corte em controle concreto de constitucionalidade, único modelo de controle de constitucionalidade até então existente no ordenamento jurídico brasileiro, foi superada. Estas decisões da Corte Suprema, embora proferidas em sede de controle concreto, mediante a edição, pelo Senado, de resolução suspensiva da norma declarada inconstitucional, passariam a ter eficácia erga omnes.[39]

                Com o advento da Constituição de 10 de novembro de 1937 manteve-se o modelo controle de constitucionalidade introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1891, estando este previsto no art. 101, III, b e c da nova Carta. Também foram mantidas a vedação ao Poder Judiciário para conhecer das questões exclusivamente políticas (art. 94) e a exigência de quorum de maioria absoluta dos membros dos tribunais para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Presidente da República (art. 96, caput).

            A Constituição de 1937, entretanto, deixou de recepcionar os institutos da representação interventiva e da suspensão, pelo Senado, da execução das leis e atos declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário, previstos na Carta anterior, de 1934.[40]

            Contudo, as características mais marcantes dessa Constituição, segundo Uadi Lammêgo Bulos, foram a estagnação e o retrocesso do controle de constitucionalidade. [41] A mácula ao histórico do controle de constitucionalidade no Brasil decorreu do disposto no parágrafo único do art. 96 da Constituição de 1937, bem como do Decreto-Lei n. 1.564, editado em 1939 por Getúlio Vargas.

No parágrafo único do art. 96 estava prevista a possibilidade do Presidente da República submeter a lei declarada inconstitucional a um novo exame pelo Parlamento. Caso este confirmasse a lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal[42].  O Decreto-Lei n. 1.564, por sua vez, estabeleceu que as decisões do Supremo Tribunal Federal, tribunais e juízes que tenham declarado a inconstitucionalidade das leis ficariam sem efeitos.

A Constituição promulgada em 18 de setembro de 1946 surgiu num momento de redemocratização e reconstitucionalização do Brasil.[43] Neste contexto, a Carta de 1946 restabeleceu o controle difuso de constitucionalidade e preservou a exigência de quorum especial de maioria absoluta dos membros do tribunal para a declaração de inconstitucionalidade. Embora tenha mantido a representação interventiva, deu a ela uma nova configuração, permitindo ao Supremo Tribunal Federal que examinasse não mais a lei federal que tivesse decretado a intervenção federal no Estado, mas o próprio ato deste ente que tenha sido considerado inconstitucional por violar princípio constitucional sensível. 

Mantida também a competência do Senado Federal no controle de difuso de constitucionalidade, a nova Constituição, contudo, restringiu a amplitude da resolução suspensiva daquele órgão do Legislativo. Isso porque, conforme a redação do art. 64 da Constituição de 1946, a resolução suspensiva do Senado teria por objeto somente lei e decretos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal, enquanto na vigência da Constituição de 1934 a suspensão poderia atingir lei, declaração, atos ou regulamento.[44]

            Por força da Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, conferiu-se nova redação à alínea k do art. 101, inciso I, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, introduzindo a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar originariamente “ a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. Foi por meio deste dispositivo que se introduziu, formalmente, no nosso sistema, o controle abstrato de normas, a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal[45].

Além disso, a Emenda Constitucional n. 16 acrescentou ao art. 124 da Constituição de 1946 o inciso XIII, que permitiu aos Estados que estabelecessem como competência originária dos seus Tribunais de Justiça o controle de constitucionalidade da lei ou ato do Município que contrariasse a Constituição do Estado[46].

Importa destacar que, no Projeto que resultou na Emenda n. 16, pretendeu-se, ainda, conferir ao art. 64 da Lei Maior, de 1946, nova redação que implicasse na modificação da função do Senado Federal em sede de controle de constitucionalidade. No Projeto, a redação daquele artigo passaria a ser seguinte: “Art. 64. Incumbe ao Presidente do Senado Federal, perdida a eficácia de lei ou ato de natureza normativa (art. 101, §3º), fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção das leis, a conclusão do julgado que lhe for comunicado”.

A teor da Exposição de Motivos do Projeto, com a alteração do art. 64 objetivava-se a atribuição de eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, “poupando ao Senado o dever correlato de suspensão da lei ou do decreto” [47]. Contudo, a proposta de alteração foi rejeitada, mantendo o art. 64 a redação que lhe foi dada pelo Constituinte originário, segundo a qual “incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal” [48].

            Com as inovações realizadas pela Emenda Constitucional n. 16, é possível afirmar que, já na vigência da Constituição de 1946 o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro poderia ser identificado como um sistema misto, posto que a previsão do controle de constitucionalidade concentrado ou abstrato no ordenamento jurídico brasileiro não implicou na extinção do controle difuso. A partir de então, em nosso ordenamento passaram a coexistir o controle concentrado, de origem austríaca, e o controle difuso, ou norte-americano, este adotado por nós desde a Constituição de 1891.

            Dirley da Cunha Júnior, em análise às características do sistema de controle de constitucionalidade delineado na vigência da Constituição de 1946, conclui:

Destarte, já aqui se encontrava perfeitamente definido um modelo misto ou eclético de controle judicial de constitucionalidade, que combinava os sistemas difuso-incidental, de competência de todos os juízes e tribunais nos casos concretos sujeitos as suas apreciações, e concentrado-principal, de competência exclusivamente do Supremo Tribunal Federal das leis e atos normativos estaduais e federais em face da Constituição Federal, e dos Tribunais de Justiça das leis e atos normativos municipais em face das Constituições Estaduais. O sistema concentrado-principal, no entanto, encontrava-se até então limitado às ações diretas de inconstitucionalidade por ação (representação genérica) e de inconstitucionalidade interventiva (representação interventiva)[49].

A Constituição promulgada em 24 de janeiro de 1967 preservou o sistema de controle de constitucionalidade nos moldes do que foi definido pela Constituição de 1946, com as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional n. 16. A nova Constituição, contudo, não recepcionou da Carta de 1946, o disposto no seu art. 124, inciso XIII, que previa a autorização para que os Estados estabelecessem a competência originária dos seus tribunais para declararem a inconstitucionalidade de lei ou ato municipal contrário às constituições estaduais.

Por meio da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, foram implementadas algumas modificações na Constituição de 1946, dentre elas a que resultou na nova redação dada ao art. 15, § 3º, d, que passou a prever a competência do Tribunal de Justiça para realizar o controle de constitucionalidade de lei municipal em face da Constituição estadual para fins de intervenção no Município.

Considera Nagib Slaibi Filho, entretanto, que a mudança mais significativa em sede de controle de constitucionalidade se deu na prática do Supremo Tribunal Federal. Refere-se o autor ao fato de que a Corte, a partir de 1970, passou a atribuir eficácia erga omnes às suas decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas em representação de inconstitucionalidade (controle abstrato), deixando de condicionar tal efeito à suspensão, pelo Senado, da lei declarada inconstitucional por aquele Tribunal.[50]

Antes de 1977, tanto a declaração de inconstitucionalidade proferida em controle incidental quanto a proferia em controle concentrado pelo Supremo, deveriam ser comunicadas ao Senado Federal para que este resolvesse sobre a resolução que conferiria eficácia geral àquelas decisões. A partir daquela data, depois de longo debate, a Corte firmou entendimento quanto à dispensabilidade da resolução suspensiva da Câmara Alta nos casos de declaração de inconstitucionalidade proferida em controle abstrato. Assim, às declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo em controle abstrato passou-se a estender eficácia erga omnes, independentemente da intervenção do Senado.

Gilmar Mendes, quanto à mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à amplitude de alcance da resolução do Sendo, instituto que, com a Emenda Constitucional n. 1 de 1969, estava previsto no art. 42, inciso VIII, da Constituição de 1967, explica que:

Em 1970, o Tribunal começou a debater o tema, tendo firmado posição, em 1977, quanto à dispensabilidade de intervenção do Senado Federal nos casos de declaração de inconstitucionalidade de lei proferida na representação de inconstitucionalidade (controle abstrato). Passou-se, assim, a atribuir eficácia geral à decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de controle abstrato, procedendo-se à redução teleológica do disposto no art. 42, VII, da Constituição de 1967/69.[51]

Outorgada por Ernesto Geisel, a Emenda Constitucional n. 07, de 13 de abril de 1977, trouxe a possibilidade de o Supremo Tribunal conceder, a pedido do Procurador-Geral da República, medida cautelar em sede de representação genérica de inconstitucionalidade, sendo esta previsão mantida pela Constituição Federal de 1988[52]. Este dispositivo veio, portanto, a admitir a concessão de cautelar antecipando a suspensão, com eficácia erga omnes, da lei ou ato declarado inconstitucional em controle abstrato.

            Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, manteve-se tanto o controle difuso quanto o controle concentrado de constitucionalidade. Ademais, essa Constituição também manteve, em seu art. 102, inciso I, p, a possibilidade de concessão de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade para suspender de imediato a eficácia das leis e atos considerados inconstitucionais, bem como também recepcionou a ação direta de inconstitucionalidade genérica e ação direta de inconstitucionalidade interventiva. .

            Como novidades, a Lei Fundamental de 1988 ampliou o rol de legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, instituiu o mandado de injunção e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de inconstitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Não se pode olvidar que, com a Emenda Constitucional n. 45/04, outro grande instituto foi inserido na Carta de 1988: a súmula vinculante.

            Essas inovações, segundo entendimento manifestado por Uadi Lammêgo Bulos, acabaram por “reforçar a anatomia do concentrado de constitucionalidade” e, por consequência, atenuar o controle difuso. Este autor ressalta que a ênfase ao controle concentrado, contudo, não implica na extinção do controle difuso, que “está ao dispor para quem desejar obter a decretação de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo”.[53]

Embora também tenha sido mantida pelo art. 52, inciso X, da Constituição Federal de 1988, a competência do Senado Federal para suspender a execução das leis e atos declarados inconstitucionais, a amplitude conferida pela nova Carta ao controle abstrato e a possibilidade se suspensão liminar dos atos considerados inconstitucionais em controle concentrado levaram Gilmar Mendes a concluir que a resolução suspensiva do Senado tem atualmente mero valor histórico. É o que se extrai da seguinte passagem de seu texto, denominado “O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional”:

A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se quebrantasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção de separação de Poderes - hoje necessária e inevitavelmente ultrapassada. Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, de valer tão-somente para as partes?

A única resposta plausível nos leva a crer que o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica.[54]

André Ramos Tavares explica que alguns mecanismos aproximam a eficácia das decisões proferidas em sede de controle difuso daquela observada em relação às declarações proferidas em controle concentrado. Esses mecanismos teriam possibilitando que às declarações de inconstitucionalidade incidenter tantum seja dada eficácia erga omnes, independentemente da resolução do Senado, o que implica na perda de sua relevância.

O clássico papel do Senado Federal, na atribuição de eficácia erga omnes às decisões proferidas pelo STF em controle difuso-concreto, tende a perder relevância diante da criação de novos mecanismos e incorporação de novas concepções, que funcionam como aproximação entre a dimensão concreta de pronunciamentos do STF e a produção de efeitos com caráter geral (abstrativização ou generalização do controle difuso, como parte da “objetivização” desses processos). Assim, é preciso retomar essas inovações para melhor compreender, ao final, a nova proposta acerca do espaço próprio das resoluções do Senado Federal.[55]

Segue o autor dizendo que a súmula vinculante, a flexibilização da regra da reserva de plenário e a viabilidade para que o relator, em sede de recurso extraordinário e especial, decida monocraticamente em caso de inobservância à súmula e a jurisprudência dominante do Supremo, tornam prescindível a atuação do Senado Federal para conferir eficácia geral às declarações de inconstitucionalidade pelo Supremo em controle difuso.

O primeiro instituto a ser referido, nesta linha de considerações, é a súmula vinculante (regulamentada recentemente), que inegavelmente diminuirá o espaço que tradicionalmente tem sido ocupado pelo Senado, no controle de constitucionalidade.

[...]

A flexibilidade na interpretação do art. 97 da CF, admitindo-se a não observância da reserva de plenário na hipótese de lei já declarada inconstitucional, incidentalmente, pelo STF, “marca uma evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, praticamente, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto” (Recl. n. 4.335/AC, j. 1º-2-2007, voto do Ministro GILMAR MENDES, p. 30). É o que se tem chamado de efeito transcendente dessas decisões em controle concreto.

Outrossim, o legislador ordinário também teria contribuído para superar os efeitos clássicos da declaração de inconstitucionalidade, pelo STF, quando em controle difuso. Em relação aos recursos extraordinário e especial, por exemplo, viabilizou-se que o relator decidisse monocraticamente, em caso de contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STF (Lei n. 8.038/90 e art. 557, § 1º-A, do CPC, com a redação dada pela Lei n. 9.756/98). Isso bem prova que a mera decisão do STF, em controle difuso-concreto (classicamente vinculante apenas para o caso concreto em

apreço), contava já com efeitos derivativos, o “efeito transcendente” ao caso concreto, permitindo que outros casos concretos fossem atingidos pela decisão (aparentemente circunscrita) do STF. [56]

            Diante do exposto, é possível concluir que, muito tenha sido mantida pela Constituição Federal de 1988, a competência do Senado Federal para suspender a execução das leis e atos declarados inconstitucionais em controle difuso realizado pelo Supremo Tribunal Federal, não possui a relevância que teve outrora. Destarte, para a atribuição de eficácia geral às decisões proferidas em controle difuso não depende mais da atuação do Senado Federal.

CONCLUSÃO      

A atribuição de competência para o Senado Federal suspender a execução das leis e atos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, quando introduzia no ordenamento jurídico pátrio, em 1934, era a única solução para que se conferisse eficácia erga omnes às decisões do Supremo, que, na época, somente realizava controle difuso de constitucionalidade.

            Até 1977, sua aplicação era necessária não só em relação às decisões em sede de controle difuso. Mesmo as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal reclamavam o ato de suspensão pelo Senado Federal para que sua eficácia atingisse a todos. A partir daquele, entretanto, o Supremo ter firmou posição quanto à dispensabilidade da intervenção do Senado no controle concentrado, restringindo a competência do Senado somente às declarações de inconstitucionalidade em controle difuso.

            A partir da evolução do controle de constitucionalidade no Brasil, foram criados diversos mecanismos que tornam prescindível a resolução suspensiva pelo Senado. Com efeito, a eficácia geral das declarações de constitucionalidade proferidas em controle difuso pelo Supremo não mais está condicionada a uma manifestação do Senado. Observa-se, por exemplo, que pode o Supremo Tribunal, analisando incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e entendendo ser o caso de repercussão geral, editar súmula vinculante.

            Importa destacar que, a conclusão que aqui se chega é que houve uma redução do significado da participação do Senado Federal no controle de constitucionalidade, o que não implica, necessariamente, que se concorde com a opinião de que a função do Senado no controle de constitucionalidade hoje seja a de conferir publicidade às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso. Esse posicionamento, defendido por alguns autores como Uadi, Gilmar Mendes, Eros Grau, não é aqui defendido[57].

            A conclusão a que se chega aqui, a partir de uma análise da evolução do controle de constitucionalidade, é que, atualmente, às declarações de inconstitucionalidade em controle difuso tem-se atribuído efeitos transcendentes independentemente da atuação do Senado, o que não significa dizer que o Senado perdeu a sua competência, em prejuízo do que dispõe a própria Constituição Federal em seu art. 52, inciso X.

REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Cecília Nazareth de Carvalho Brito

Estudante de Direito da Universidade Estadual do Maranhão

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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