4. ANTECIPAÇÃO DA COBRANÇA DO ITBI
Analisado o instituto de antecipação de cobrança do tributo, bem como os seus fundamentos, passa-se à análise da constitucionalidade da cobrança antecipada do ITBI, a qual é determinada para o momento da assinatura da promessa de compra e venda de imóvel para entrega futura.
Na presente pesquisa irá ser utilizada, a título de exemplo, a legislação do Município de Salvador/BA, art. 122, §1º, I, do Código Tributário e de Rendas do Município de Salvador e art. 15 do Decreto Municipal nº 24.058/2013, in verbis:
CTRMS:
Art. 122. O imposto será pago:
I - antecipadamente, até a data da lavratura do instrumento hábil que servir de base à transmissão;
II - até 30 (trinta) dias contados da data da decisão transitada em julgado se o título de transmissão for decorrente de sentença judicial.
§ 1º É atribuída ao sujeito passivo a obrigação de pagamento do imposto, por antecipação, quando ocorrer a:
I – assinatura do contrato de promessa de compra e venda de unidade imobiliária para entrega futura; (grifos aditados)
Decreto Municipal 24.058/2013:
Art. 15. Quando se tratar de aquisição de unidade imobiliária, decorrente de incorporação imobiliária, por meio de contrato de promessa de compra e venda para entrega futura, a incorporadora imobiliária, na qualidade de substituto tributário, fica obrigada ao pagamento do ITIV, devendo o seu recolhimento ocorrer à vista, no prazo de até 30 (trinta) dias da data da assinatura do contrato.
Parágrafo único. Para efeito deste artigo, considera-se a venda de unidade imobiliária para entrega futura quando a aquisição ocorrer antes da concessão do Alvará de Habite-se. (grifos aditados)
4.1 MOMENTO DA COBRANÇA
Conforme demonstrado no capítulo anterior, o primeiro questionamento que se há de fazer para se analisar a constitucionalidade da instituição de uma cobrança antecipada de tributo é se o momento eleito para exigência antecipada é uma fase preliminar idônea, capaz de assegurar com o grau de certeza necessária a ocorrência posterior do fato gerador presumido.
Necessário, portanto, analisar-se novamente a teoria de Marco Aurélio Greco, que disserta sobre a idoneidade (necessidade e adequação) da fase preliminar eleita para cobrança antecipada de um tributo, entendimento que é adotado integralmente pelo Supremo Tribunal Federal, como se pode perceber do trecho do voto condutor proferido no RE 213.396, leading case que julgou constitucional a cobrança antecipada no âmbito do ICMS:
De qualquer modo, sublinhe-se que a criação do modelo da antecipação e a escolha, pelo legislador, da fase preliminar não pode ser aleatória nem arbitrária. A escolha só pode recair em eventos que apresentem no plano fático, algum tipo de vinculação com o fato tributável a prever, com razoável certeza, sua ocorrência (elemento adequação) e na dimensão então prevista (elemento proporcionalidade ou proibição do excesso).
Ou seja, como a relação é entre fase preliminar (momento da antecipação) e fase final (fato tributável) e como aquela deve se apresentar (para ser preliminar) como uma etapa, ou um meio para a obtenção da fase final (fato tributável) pode-se buscar, para analisar o tema no plano dos fatos, o mesmo conjunto de critérios que a Teoria Geral apresenta em se tratando da verificação da compatibilidade entre meios e fins e que também pode ser aplicado ao exame no plano da validade das normas. Este conjunto é formado pela reunião de três conceitos, singelamente designados de necessidade, adequação e proporcionalidade (proibição do excesso). Se bem examinados o tema da antecipação com substituição e esta formulação teórica, veremos que a essência destes três critérios pode ser aplicada à figura...
O primeiro consiste em verificar se aquele evento que foi considerado como fase preliminar para fins de antecipação atende ao requisito da necessidade em relação ao evento final (fato “gerador”); a fase preliminar será necessária se, inexistindo esta, não existirá o fato “gerador”. Note-se que a relação a ser perquirida não é uma relação de causalidade entre ambas, por isso o requisito a ser verificado é da “necessidade” e não da “suficiência”, ou seja, a fase não deixará de ser preliminar, e não perderá sua condição de servir para acarretar o recolhimento antecipado, pela circunstância de não ser suficiente (bastante em si) para acarretar o fato final. Ainda que outros elementos devam ser agregados para a ocorrência do fato “gerador”, o elemento necessidade estará atendido com os requisitos acima.
O segundo consiste na verificação de adequação acima mencionada e por ele caberá verificar se aquele evento que se reputa preliminar já apresenta elementos que permitem prever com certo grau de certeza o evento final (o fato “gerador”). É o que se encontra dentro do tempo “presumido”, utilizado pelo Constituinte no §7º examinado.
(STF, RE 213396, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 02/08/1999, DJ 01-12-2000 PP-00097 EMENT VOL-02014-02 PP-00383, Trecho do voto condutor) (grifos aditados)
Da análise do trecho do voto acima transcrito, pode-se concluir que o Supremo Tribunal Federal, quando apreciou a cobrança antecipada no âmbito do ICMS (leading case) reconheceu a possibilidade da sua instituição desde que o momento eleito para a cobrança antecipada fosse necessário (inexistindo este, não existirá o fato gerador) e adequado (que permita prever com certo grau de certeza o evento final).
Aplicando-se tal raciocínio ao ITBI, observa-se que não se pode admitir a antecipação da sua cobrança para o momento da assinatura da promessa de compra e venda de imóvel para entrega futura, porquanto este instrumento não preenche os requisitos da “adequação” e da “necessidade” exigidos pelo Supremo Tribunal Federal, já que: (i) não garante, com certo grau de certeza, a realização da transferência do imóvel (o qual sequer existe no ato da assinatura do contrato), e (ii) não é indispensável à transmissão do imóvel, o qual pode ser adquirido diretamente, sem a celebração do contrato preliminar de promessa de compra e venda.
Assim, por não preencher os requisitos da necessidade e da adequação, a assinatura do contrato de promessa de compra e venda de imóvel para entrega futura não é meio idôneo para a cobrança antecipada do ITBI. Nesse sentido, são os ensinamentos de Marco Aurélio Greco (1999, p. 58):
Na Rep. 1.211-RJ, discutiu-se a lei do Estado do Rio de Janeiro que previa o recolhimento do imposto no prazo de 90 dias a contar da assinatura do instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão. O tema fundamental foi o da natureza desse contrato preliminar que não reveste de características suficientes para configurar “meio idôneo à transmissão, pelo registro, do domínio sobre imóvel”. A inconstitucionalidade foi reconhecida, pois o evento qualificado pela lei foi um contrato preliminar, e não o contrato principal, e porque, sendo contrato preliminar, não é meio idôneo a viabilizar a transmissão. Sublinhe-se este fundamento! A inconstitucionalidade existe quando o evento escolhido não é meio idôneo, em outras palavras, quando não for atendida a cláusula de vinculação. Fosse o evento um meio hábil para a realização do fato gerador, não haveria inconstitucionalidade. Aliás, não tenho conhecimento de nenhum julgamento de inconstitucionalidade da exigência do imposto ao ensejo da lavratura da escritura de compra e venda, esta também não traslativa de propriedade (pois a transmissão só ocorre com o seu registro no cartório competente); mas a escritura é “meio idôneo” da transmissão; a celebração da escritura é fase preliminar da transmissão imobiliária e, portanto, comporta uma exigência tributária por antecipação do fato gerador... (grifos aditados)
Do trecho citado acima, há de se notar que podemos admitir a exigência antecipada do ITBI no momento da lavratura da escritura de compra e venda, a qual configura um contrato principal, necessário e adequado à transferência de propriedade de imóvel ou de direito real sobre imóvel, que se efetivará quando do registro da escritura.
Assim, admite-se exigir o ITBI antes do seu fato gerador, que só ocorrerá quando do registro da referida escritura, uma vez que a escritura sim representa um momento necessário (sem a sua realização não há transferência de propriedade de imóvel ou direito real sobre imóvel) e adequado (representa grau de certeza suficiente à cobrança antecipada do tributo). Por outro lado, o contrato preliminar de promessa de compra e venda não poderia legitimar a cobrança antecipada por carecer de tais características.
Corroborando o quanto explicitado, o julgado do Supremo Tribunal Federal citado por Marco Aurélio Greco (Rep. 1.211-RJ):
- IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSAO DE BENS IMÓVEIS E DE DIREITOS A ELES RELATIVOS. FATO GERADOR. O COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA E A PROMESSA DE CESSÃO DE DIREITOS AQUISITIVOS, DADA A SUA NATUREZA DE CONTRATOS PRELIMINARES NO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO, NÃO CONSTITUEM MEIOS IDONEOS A TRANSMISSAO, PELO REGISTRO, DO DOMÍNIO SOBRE O IMÓVEL, SENDO, PORTANTO, INCONSTITUCIONAL A NORMA QUE OS ERIGE EM FATO GERADOR DO IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSAO DE BENS IMÓVEIS E DE DIREITOS A ELES RELATIVOS. REPRESENTAÇÃO JULGADA PROCEDENTE, DECLARANDO-SE A INCONSTITUCIONALIDADE DO INCISO VII DO ART. 89 DO DECRETO-LEI N. 5, DE 15 DE MARCO DE 1975,, COM A REDAÇÃO QUE LHE DEU O DECRETO-LEI N. 413, DE 13 DE FEVEREIRO DE 1979, AMBOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
(STF, Rp 1211, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Primeira Turma, julgado em 30/04/1987, DJ 05-06-1987 PP-11112 EMENT VOL-01464-01 PP-00015) (grifos aditados)
Atualmente, o tema a respeito da cobrança antecipada do ITBI no momento da assinatura da promessa de compra e venda de imóvel para entrega futura ainda não foi apreciada pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal, tendo sido julgada monocraticamente algumas vezes pelo Ministro Ricardo Lewandowski (ARE 759.964/RJ e ARE 793.919/RJ), decidindo pela possibilidade da cobrança antecipada. Veja-se trecho da decisão monocrática:
É certo que este Tribunal possui jurisprudência no sentido de que a celebração de contrato de promessa ou de compromisso, seja de compra e venda de imóvel ou de cessão dos direitos relativos a imóvel, não constitui fato gerador para incidência do ITBI, conforme se depreende, por exemplo, dos julgamentos do AI 603.309-AgR/MG, Rel. Min. Eros Grau, e do RE 666.096-AgR/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia. Ocorre que o dispositivo tido como inconstitucional trata, em verdade, do momento em que o imposto deverá ser recolhido e não de seu fato gerador, que é disciplinado em outros artigos da mesma norma municipal. Nesse contexto, observo que essa Corte já concluiu pela constitucionalidade da cobrança antecipada de tributo, por encontrar apoio no art. 150, § 7º, da CF, desde que esteja prevista em lei ordinária. Com essa orientação, destaco os seguintes precedentes, entre outros: ADI 2.044-MC/RS, Rel. Min. Octávio Gallotti; RE 194.382/SP, rel. Min. Maurício Corrêa; RE 213.396/SP e ADI 1.851/AL, Rel. Min. Ilmar Galvão; RE 598.070/RS, Rel. Min. Celso de Mello; RE 499.608-AgR/PI, de minha relatoria.
Contudo, discordamos do entendimento do Ministro, pois consideramos que não se pode transplantar de forma simplória as decisões proferidas sobre a cobrança antecipada no âmbito do ICMS para justificar a cobrança de ITBI no momento da assinatura da promessa de compra e venda de imóvel para entrega futura.
Deste modo, acreditamos que tal análise deva ser feita com mais cuidado, analisando-se todos os elementos que levaram o Supremo Tribunal Federal a concluir pela constitucionalidade da cobrança antecipada no âmbito do ICMS para então se conferir se a mesma conclusão pode ou não ser aplicada ao ITBI. Neste passo, observamos que já se tem notícia de algumas decisões proferidas no sentido de afastar a possibilidade de cobrança[8].
Deve-se frisar que a sistemática do ICMS é totalmente diferente da do ITBI, o que impede que as decisões proferidas no âmbito do ICMS sejam aplicadas automaticamente para os casos do ITBI. Como visto acima, o momento de cobrança antecipada do ICMS (primeira venda da cadeia de circularização de mercadoria) é considerado meio idôneo à cobrança antecipada, já a assinatura da promessa de compra e venda de imóvel para entrega futura (contrato preliminar), ao nosso ver, não é uma fase necessária e adequada à realização do fato gerador presumido.
Portanto, como o colegiado do Supremo Tribunal Federal já exarou o entendimento de que para que seja adotada a cobrança antecipada é imprescindível que o momento eleito para o pagamento seja idôneo, atendendo aos requisitos da necessidade e adequação, o que não é atendido no caso da cobrança antecipada do ITBI, espera-se que esta matéria seja analisada de forma mais cuidadosa por um órgão colegiado da Suprema Corte.
4.2 RESTITUIÇÃO
Conforme demonstrado acima, a imediata restituição do tributo recolhido no caso do fato gerador presumido não se concretizar foi um dos fundamentos para se concluir pela constitucionalidade da cobrança antecipada do ICMS.
Todavia, a “imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido” é totalmente diferente no âmbito do ICMS e no âmbito do ITBI. Isso porque os contribuintes do ICMS são comerciantes que realizam vendas de mercadorias constantemente (contribuintes habituais), e que apuram mensalmente o imposto devido, mediante o regime de conta corrente fiscal (créditos X débitos), assim a restituição para estes contribuintes, no caso de não ocorrência do fato gerador presumido, se dá pela simples escrituração do crédito na conta corrente fiscal para fins de compensação, o que a torna realmente preferencial e imediata.
Por sua vez, no âmbito do ITBI, não existe apuração mediante regime de conta corrente fiscal, e também não há que se falar em contribuinte habitual, que realize vários fatos geradores do imposto no mês. Assim, o contribuinte que antecipar o pagamento do ITBI não poderá utilizar o valor pago antecipadamente em uma compensação tributária como no ICMS, logo, a repetição do indébito somente poderia ser feita em pecúnia, o que seria feita pela morosa via dos precatórios. Portanto, indubitavelmente, a restituição do ITBI em caso de concretização do fato gerador presumido não será imediata e preferencial.
4.3 FISCALIZAÇÃO
Ademais, o princípio da praticidade da fiscalização, que fundamentou as decisões a respeito da cobrança antecipada do ICMS, também não pode ser aplicado da mesma forma aos casos de ITBI. Ressalte-se que tal princípio está limitado pelo princípio da legalidade, assim, como o Supremo Tribunal Federal determinou que somente será legal a cobrança antecipada se o momento eleito para a cobrança atender aos requisitos da necessidade e adequação, não se pode justificar um momento de cobrança ilegal pelo simples fato de que ele traz “praticidade” para a fiscalização.
Não bastasse isso, há de se notar que, no caso do ICMS, a concentração da cobrança antecipada junto aos produtores das mercadorias, no início da cadeia de circulação, justifica-se, sim, pela praticidade, pois, a mercadoria vendida no início da cadeia de circulação se pulveriza nas mãos dos demais comerciantes, podendo ser vendida com ou sem nota fiscal, sem que o Fisco possa ter controle sobre as vendas realizadas. Por outro lado, na sistemática do ITBI, esse risco de evasão fiscal não existe, uma vez que não é possível realizar a venda de um imóvel sem que seja efetuado o registro do título no cartório de imóveis, e o recolhimento do ITBI é requisito indispensável para tal registro, sendo exigido inclusive pelo Tabelião, sob pena de responsabilidade pessoal (arts. 134 e 137 do CTN).
Ora, não se pode admitir que alguém adquira um imóvel e não realize o registro da escritura no cartório de imóveis, haja vista que, conforme determina os arts. 1.245, §1º, e 1.227 do Código Civil, a propriedade imobiliária somente é adquirida com tal registro. Este risco de evasão fiscal é inexistente, pois o adquirente sempre buscará transferir o imóvel para o seu nome, pois, se assim não o fizer, poderá perder o imóvel adquirido, em uma execução contra o vendedor do imóvel, por exemplo.
Portanto, não há que se falar em cobrança antecipada de ITBI em razão de praticidade na fiscalização motivada pela busca de se evitar uma evasão fiscal. O que se demonstra, na verdade, é o intuito meramente arrecadatório dos fiscos municipais, haja vista que a cobrança antecipada lhes garante aumento das receitas.
4.4 CONTRIBUINTE
Por fim, há de se notar que um outro argumento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no leading case a respeito da antecipação do fato gerador foi o de que a capacidade contributiva estaria salvaguardada porque o ônus do financeiro do tributo seria repassado ao consumidor final.
Nota-se, de antemão, que tal argumento não é aplicável ao ITBI, haja vista que não se trata de um tributo indireto, que comporte o repasse do encargo ao contribuinte de fato.
Mais uma vez, resta evidente que a sistemática da cobrança antecipada de tributo é mais afeita aos tributos que incidem em cadeia, os ditos tributos indiretos, que repassam o encargo financeiro a cada etapa de incidência até que seja suportado pelo consumidor final.