3. A PROBLEMÁTICA EM TORNO DO VALOR NA DECISÃO
Para Alexy (2001), a doutrina de Metodologia Jurídica pode solucionar o problema de como justificar plenamente um julgamento jurídico, em face de a doutrina já ter reconhecido que não é possível ao legislador prever toda situação fática possível de modo fechado e perfeito. Um “fetiche pela lei”, tal como se verificou nos primórdios do positivismo (Escola da Exegese) conduz à injustiça na solução conferida a determinados casos e, frequentemente, ao impasse decorrente da ausência de previsão normativa expressa.
Para Cláudia Toledo (2005):
O modelo clássico do silogismo jurídico pelo qual se subsume um fato a uma norma, encontrando-se a decisão jurídica (jurídica, em sentido lato, envolvendo tanto a decisão resultante do desenvolvimento abstrato, teórico, do Direito, como a decisão judicial, na jurisprudência), não se efetiva mediante a utilização apenas dos princípios da lógica deôntica (com a cópula hipotético-condicional ‘deve ser’, diferentemente da lógica apofântica, que tem como cópula ‘é’) e seus modalizadores deônticos é ordenado, é proibido, é permitido. Soma-se à tradicional lógica deôntica a lógica do discurso, que, embora formal, adentra o aspecto pragmático do enunciado jurídico apresentado como argumento da discussão.
Desse modo, intérpretes como juízes e membros da Administração Pública não ordenam e fundamentam suas decisões mediante pura subsunção lógica, mas têm de valorar autonomamente e “decidir como colegisladores” (ALEXY, 2001).
Entende-se, portanto, que uma consideração realista pode vim a afirmar que o julgador poderá se valer de qualquer valor como fundamento de sua decisão, mascarando-o pela argumentação jurídica.
E, neste caso, na medida em que se aplica o Direito não necessariamente terá por fundamento a moral objetiva, mas se pode embasar em uma moral específica, visando à satisfação de um interesse individual específico.
Outrossim, é passível de entendimento, também, que essa constatação não venha significa a existência de um campo livre para convicções morais subjetivas dos aplicadores do direito, mas, sobretudo, de possibilitar uma apreciação racional da argumentação contida na decisão jurídica de conteúdo axiológico, tendo em vista que a teoria do discurso tentou de diversos modos estabelecer mecanismos para limitar a fundamentação dita racional a ordens objetivas de valores.
Em um grande número de casos, a afirmação normativa singular que expressa um julgamento envolvendo uma questão legal não é uma conclusão lógica derivada de formulações de normas pressupostamente válidas, tomadas junto com afirmações de fatos comprovada ou pressupostamente verdadeiras (ALEXY, 2001).
Nesse sentido, Alexy (2001, p. 17) informa que quatro seriam os fatores determinantes quando das bases tomadas a uma interpretação equivocada do texto normativo no momento da sentença, a saber:
a) a imprecisão da linguagem do Direito; b) a possibilidade de existência de conflitos entre as normas integrantes do ordenamento jurídico; c) a possibilidade da criação de uma nova regulamentação jurídica objetivando a complementação do sistema, considerando a falta de previsão do fato a uma norma efetivamente válida; e por fim, d) considerando casos especiais, a possibilidade de contrariedade de decisões ao estatuto vigente.
Como mencionado anteriormente, ter-se-ia, dessa forma, como reguladores de um sistema interpretativo, os denominados cânones da interpretação, que direcionam regras supostamente exaustivas à solução e justificação das sentenças através de elementos gramaticais, históricos, morais, lógico, teleológicos dentre outros aspectos.
Outrossim, vale salientar a existência e o surgimento de problemas, no entanto, não só nos inúmeros cânones destinados a interpretação, mas, sobretudo, à sua ordem hierárquica de utilização dos métodos para justificar as decisões a uma satisfação generalizada, pois impossível a plenitude nesse sentido.
Todavia, existem casos em que tais justificações fogem aos métodos delineados na ordem jurídica, com o quê, impõem-se a quem decide, um juízo de valor diante do fato apresentado objetivando solucionar a problemática para satisfação dos anseios sociais.
E, nesse diapasão, outros questionamentos permeiam a discussão, principalmente porque é necessário responder: Quais os limites entre tais julgamentos de valor e os métodos apresentados? Como dever ser este relacionamento de tal forma a validar uma justificação ou fundamentação como racionais? À questão impõe-se o fato de este julgamento ser de valor moralmente correto.
Alexy (2001), assim, informa algumas tentativas de solução da problemática do julgamento de valor, destacando três de maior importância à necessidade do entendimento de sua tese argumentativa que se exporá posteriormente.
A primeira consiste no aspecto universal ou direcionado a um grupo específico onde se esbarra, de pura evidência, na impossibilidade de satisfação plena quanto à universalidade, uma vez que o juízo de valor não se apresenta suficientemente concreto para servir de base a quem efetivamente há de decidir, ainda que tomando emprestado metodologias da ciência social (ALEXY, 2001).
Entende-se que a aplicabilidade de decisões universalizadas geram certamente juízos de valores não convergentes face a necessidade de inclusão de todos os casos a serem apreciados com a obrigatoriedade do conhecimento de cada caso por todos de forma individual. Ademais, ainda que assim o fosse, é questionável se esta convicção normativa de conhecimento geral seria o sustentáculo de justificação às decisões jurídicas simplesmente porque de conhecimento geral e se quem as decide assim o faz em nome do povo indiferentemente àqueles submetidos à apreciação da decisão.
Dessa observação fica claro que não se pode tratar de uma questão de alternativas estritas, pois Alexy (2001, p. 23) afirma que:
Deve ser orientada pelas próprias convicções ou pelas pessoas em nome de quem é feita a justiça, ou respectivamente pelas daqueles que há muito tempo debatem problemas jurídicos. Necessário é muito mais um modelo que, por um lado, permita as convicções comumente aceitas e os resultados de prévias discussões jurídicas, e, por outro, deixe espaço aberto para os critérios de correção.
Em segundo lugar expressa como recurso a “coerência estimada interior da ordem jurídica” ou o “sentido da ordem jurídica tomado em sua totalidade”, constituindo-se, para Alexy (2001), não obstante atendido a obtenção de uma correção, contudo, inadequado em virtude de nem sempre a coerência jurídica indicar um juízo de valor único e determinado. Isso porque, inúmeras normas originam-se em diferentes perspectivas, dirigindo, por conseguinte, a inúmeros e diferentes valores.
O terceiro plano consiste na obtenção de uma ordem objetiva de valores com base em uma ordem autônoma já existente integrante de todo o ordenamento jurídico, seja na Constituição, seja no aspecto doutrinário etc., aceitas ao final, embora de conteúdo filosófico vago, lhes faltando, por isso, fundamentação satisfatória a sua existência.
Encontra-se, assim, três grupos de proposições para objetivação dos problemas de valores como aqueles que tomam por partida convicções atuais existentes e pontos de consenso realmente válidos ou normas não jurídicas aceitas; a que se refere a valores que de algum modo podem ser extraídos da estrutura existente da lei (inclusive decisões prévias); e finalmente a proposições que envolvam princípios que ultrapassam a lei positiva, na qual a Teoria da Argumentação Jurídica, proposta por Alexy (2001), perpassa por uma passando construção histórica, discurso da argumentação prática geral e discurso jurídico para ao final estabelecer conceito de princípios, diferenciação entre estes e regras e estratégia de solução de seus conflitos.
3.1. Entendimento das Convicções Fáticas
A primeira das estratégias de objetivação do universo de valores a ser utilizado na decisão é a noção de que a argumentação deve ter por fundamento os “valores da coletividade” ou de “círculos determinados” (ALEXY, 2001). Trata-se da regra segundo a qual deve o intérprete fundar-se na moral objetiva que permeia uma sociedade determinada no tempo e no espaço ou nas convicções éticas de um determinado grupo, considerado de autoridade para a solução do problema em análise.
Critica-se essa posição, primeiramente, pelo fato de que os valores da coletividade não podem ser determinados com exatidão. Em verdade, a sociedade contém um emaranhado de valorações divergentes e mesmo contraditórias entre si. Não se poderia, então, aceitar como critério de racionalidade da argumentação a exigência de fundamentação em uma noção que não passa de um conceito ideal.
Por sua vez, os valores de “círculos determinados”, como os doutrinadores do direito e a classe dos juízes, também não raro se mostram sob concepções divergentes. Ademais, uma fundamentação assim, para que se pudesse considerar legítima, teria de demonstrar por que o valor ali representado é decisivo.
Sem embargo desse fato, considerando a atua preocupação com a legitimidade democrática dos julgados, entende-se que deve o juiz, na medida do possível, tomar por base as convicções daqueles em nome de quem decide. Paralelamente, não deve desconsiderar as reflexões realizadas por gerações de juristas antes de si ou pela jurisprudência, tendo em vista que uma metodologia de argumentação apropriada, portanto, deve ser capaz de abarcar ambas essas pretensões.
3.2. A Ordem Jurídica e o Recurso no Sistema de Valores
Uma segunda alternativa seria, citando Franz Wieacker, a consideração de forma racional, a decisão que se fundamentasse no “sistema interno de valorações da ordem jurídica” (ALEXY, 2001). Consiste em julgar válida a argumentação quando realize referência expressa aos valores que se podem extrair do ordenamento.
Formalmente correta, essa concepção traduz o verdadeiro ideal. Os valores que permeiam a ordem jurídica não se encontram perfeitamente determinados a partir dos princípios que os informam. Deve-se isso, em parte à necessária forma abstrata da principiologia jurídica, que se exterioriza por completo somente diante do caso concreto, ante a conformação por que passa um princípio quando tomado em confronto com os demais, pois segundo Alexy (2001, p. 42):
O ponto decisivo para distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo será realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e realidades existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais sendo também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos (grifos nossos).
Entende-se, portanto, que se os princípios jurídicos se cumprem “na maior medida possível”, podem cumprir-se no todo ou em parte, o que acaba por deixar o problema do valor inerente ao seu comando uma questão em aberto. É o aplicador que acabará por o definir.
Outra razão para considerar-se impraticável a tentativa de recurso aos valores da ordem jurídica é que esta é construída a partir de uma “luta” (Jhering) em que são cristalizadas valorações distintas, e, assim, contraditórias. Dessa forma, decidir com base na axiologia do ordenamento, portanto, envolve atribuir um peso aos valores que dela se podem extrair, o que significa julgar subjetivamente.
3.3. Compreendendo os Princípios Suprapositivos
Em relação aos princípios suprapositivos, entende-se que para que a decisão de cunho axiológico seja racionalmente construída, deve se valer de uma ordem objetiva de valores, ainda que não expressa na Constituição, como enunciados de direito natural, objetivamente reconhecíveis. Assim, a tese está sujeita a todas as críticas de cunho filosófico dirigidas às premissas a ela pertinentes: a existência de um direito natural e a legitimidade de um institucionalismo meta-ético, na qual para Alexy (2001, p. 44), tendo em vista que:
Nas últimas décadas, a análise da linguagem normativa em geral, e da linguagem moral em particular, têm sido o tema de numerosas investigações dentro do enquadramento mais amplo da filosofia analítica. O resultado foi o desenvolvimento de uma meta-ética como um campo especial de estudo. Como uma teoria da linguagem normativa forma a base de qualquer teoria da justificação de sentenças normativas, proposições etc. será necessário começar as várias teorias meta-éticas [...].
A par delas, cabe a reflexão de que, ainda que fosse possível falar em uma ordem objetiva de valores, transformá-los em enunciados capazes de solucionar os problemas normativos específicos seria tarefa de cunho subjetivo.
Conforme coloca Cláudia Toledo (2005, p. 3):
A teoria da verdade aristotelicamente formulada é assim superada, pois não mais se considera a verdade como a correspondência da asserção à realidade, mas algo construído discursivamente, o que significa ser científico o resultado do consenso fundado, alcançado em relação ao objeto estudado. A verdade não está no mundo presente, na natureza, mas é produção cultural humana. É subordinada, assim, à refutabilidade, conforme expõe Karl Popper, a qual é necessariamente inerente à ciência, sob pena de suas conclusões tornarem-se dogmas (inquestionáveis, portanto).
A objetividade do discurso, portanto, não está em sua correlação com uma “verdade” no sentido aristotélico, que seria a referida ordem axiológica universal, mas, sobretudo, no respeito sistemático de uma série de condições ou regras de caráter formal. E, dessa forma, a obediência aos critérios lógicos de estruturação do discurso é o que confere a medida da racionalidade para a argumentação.
3.4. O Empirismo como Fundamento da Decisão
De acordo com essa orientação, a decisão pode fazer referência ao conhecimento empírico de mundo para fundamentar os valores que acate.
O empirismo pode ser definido como a asserção de que todo conhecimento sintético é baseado na experiência. Assim, a decisão fundada no saber empírico é basicamente a que se vale de constatações sensoriais. Os sentidos, contudo, não raro contrariam a razão. Desse modo, a decisão que apele à evidência ou a ordens naturais preexistentes utiliza um procedimento no mínimo duvidoso do ponto de vista metódico.
Entende-se que as diferentes estratégias apontadas não solucionam a questão da delimitação racional do conteúdo da decisão. E, muito menos, a mera soma delas alcançaria o desiderato. Não significa isso, contudo, que não é possível estabelecer justificações psicológicas ou sociológicas para a decisão. A tese de Alexy (2001) é no sentido de preencher essa lacuna.