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A Justiça e o Direito da Índia

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13/12/2003 às 00:00
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5 – A JUSTIÇA ESTATAL

Em um contexto institucional de frágil separação de poderes e carência das instituições políticas os Tribunais são os únicos em condições de atender as exigências da sociedade.

(Institut des Hautes Études sur la Justice, França)

O autor que mais subsídios nos deu para este capítulo foi David ANNOUSSAMY, ex-presidente da Corte de Madras, na Índia, e atual presidente da State Consumer Dispute Redressal Commission, de Pondichéry, na Índia, através da sua monografia la Justice en Inde.

5.1 - A FIGURA SIMBÓLICA DO JUIZ

ANNOUSSAMY (1996:3-5) afirma:

Tem-se uma abundante literatura em sânscrito e tamul mostrando o perfil do juiz como era concebido na Índia antiga. É antes de tudo aquele que descobre a verdade.

O erudito autor fala nas lendas do juiz Mariadai Ramane, verdadeiro representante de Deus na Terra, do rei juiz, que modifica a lei para satisfazer a necessidade de justiça, e de Manu Nidi Sojane, considerada como a mais importante de todas.

5.2 - ASPECTOS HISTÓRICOS

Como já dito anteriormente, a Índia era uma multiplicidade de pequenos e grandes divisões administrativas comandadas por nativos ou estrangeiros. Assim é que haviam colônias inglesas, francesas, holandesas e portuguesas no território indiano.

Cada um desses colonizadores disputava com os outros pela ampliação dos seus domínios.

No final prevaleceu o domínio inglês, que teve como principal adversário a França.

No entanto, enquanto cada um dos colonizadores pôde interferir na Índia, manteve vigorantes nas regiões de domínio seu Direito e Justiça peculiares.

Pode-se dizer que a Índia era uma verdadeira "colcha de retalhos" em termos de Direito, no século XVIII e parte do século XIX.

BONNAN (1999) mostra a realidade judiciária da região de Pondichéry no período de 1766 a 1817, quando essa região ainda era colônia francesa.

Trataremos, nesta parte, apenas da Justiça francesa na Índia, deixando de lado as Justiças de Portugal e Holanda, pois, abaixo da britânica, esta teve uma influência maior que as outras duas.

Abordaremos todos os seus aspectos neste ítem do estudo, inclusive os juízes e corpo de funcionários e as regras processuais para não fragmentar as informações que conseguimos na nossa pesquisa, toda ela embasada em Jean-Claude BONNAN, especialista em Indologia.

Vejamos o que informa BONNAN:

Sabe-se que o Conselho Soberano estabelecido em Pondichéry estava incumbido de assegurar a administração geral, política e comercial da sucursal, mas também a polícia e devia também exercer a Justiça para os habitantes. (p. xv)

Mais adiante, historia a vida da instituição, explicando suas fases e vai até sua extinção em 1817:

O Conselho Soberano, tendo como seu chefe o Governador (ou Comandante Geral) e o Intendente (ou Ordenador), somente confirmou o Direito local. Levando em conta um organismo que funcionava, preocupou-se, numa primeira fase, em dar uma Justiça especial para os nativos, segundo as leis destes e conforme as orientações das autoridades francesas, e depois, numa Segunda fase, assegurar uma Justiça de primeiro grau de jurisdição para todos os habitantes. As Portarias do Governador e os acórdãos regulamentadores do Conselho fixaram as regras de funcionamento e da competência dessa jurisdição e uma história processual se desenvolve sob os olhos do observador. A Portaria de 18 de novembro de 1769 (modificada em 2 de setembro de 1775) e em 5 de agostop de 1777, sobre a composição da jurisdição) determina a competência em último grau de jurisdição do Tribunal da "Chaudrie", o "teto da jurisdição", montante abaixo do qual o recurso de apelação era incabível, bem como as modalidades de apelação. Definiu também as condições nas quais as convenções e testamentos deviam ser passados. O tabelião que lhe é adido recebeu atribuições de registrar. Uma outra Portaria, de 30 de dezembro (modificada em 28 de janeiro e 4 de julho de 1778) e a de 5 de abril de 1788 para a polícia organizam o funcionamento da jurisdição e da polícia da cidade. Traçam estruturas de base que não foram modificadas fundamentalmente durante todo o tempo de existência da jurisdição. Algumas outras Portarias de regulamentação tratam das Escrivanias, atos notariais, tabelionato, juros etc. Enfim, a de 27 de janeiro de 1778 institui uma Câmara de Consulta, composta de notáveis, para dar seu parecer às jurisdições em matéria de Direito local.

Essas regulamentações lembram o convencionados pelas autoridades francesas de julgar, nos processos civis, os nativos de acordo com o Direito deles, princípio antigo e que seria enunciado em todas as grandes Declarações (e em último lugar, nessa época, pela Portaria de 16 de janeiro de 1819 determinando a aplicação para as jurisdições francesas das leis e costumes para as pessoas regidas por estatuto pessoal, em oposição àquelas regidas pelo Código Civil). Os processos criminais eram da competência do Lugartenente Geral de Polícia (após separação de suas funções daquelas do Lugartenente Civil), que tinha o encargo de fazer respeitar os regulamentos de polícia e decidia sobre as sanções tradicionais menos graves (chicote, mutilação das orelhas). [...] Encaminhava relatórios ao Conselho Superior quanto aos processos mais graves, notadamente da área criminal. Analisava enfim os processos nos quais as regras de castas estavam em jogo, com recursos eventuais para o Conselho.

Através da Ordenança Real de 23 de dezembro de 1827, a "Chaudrie" foi extinta, sua jurisdição passando a ser exercida por um tribunal de Primeira Instância, organizado segundo os padrões metropolitanos. Os processos de estatuto pessoal seriam então julgados pelas jurisdições francesas, salvo em matéria de castas. Os processos "intracastas" eram ajuizados através de petição junto ao juiz de polícia que os enviana ao Comitê Consultativo de Jurisprudência Indiana, que era uma assembléia de sábios-árbitros indianos instituída pela Ordenança local de 30 de outubro de 1827, encarregada também da redação dos costumes, ou das assembléias de casta ou de família. As decisões eram homologadas pelo juiz de paz ou eram avocadas pelo Conselho. Os processos "intercastas" eram solucionados diretamente pelo Governador, que decidia em primeira e última instância. (pp. xvi-xvii).

Quanto aos juízes, diz BONNAN:

A "Chaudrie" não dispunha de pessoal próprio e exclusivo de juízes, pois estes pertenciam ao conselho (em que eles exerciam suas funções principais) e sendo somente comissionados ou afetos a ele para ocupar os postos nesse Tribunal e ali fazer justiça como presidente ou vogal. As deliberações do referido Conselho nos mostram que a "Chaudrie" era formada por três membros do conselho, um como presidente assistido por dois vogais. Eles são confirmados nessa situação pelo acórdão de 17 de fevereiro de 1707 e outros que se seguirão. Tratam-se de vendedores, negociantes e notáveis nomeados ou agregados pela Companhia para garantir o funcionamento das instituições e os serviços do comércio. Essa estrutura manter-se-á até a Portaria de 30 de dezembro de 1769, editada para a organização da "Chaudrie" e da polícia da cidade. Ela retoma essa composição e a formaliza. A presidência é atribuída ao membro do Conselho que tinha função de Lugartenente civil. Sob o regime do edito de fevereiro de 1776, que criou um novo Conselho, a presidência é atribuida ao primeiro Conselheiro, que tinha o cargo de Lugartenente civil, acompanhado de dois vogais. Posteriormente, sob o regime do edito de 1784, o Conselho passou a ser composto por dois Administradores (o Governador ou o Comandante geral e o Intendente ou Comissário ordenador), pelo mais antigo oficial da administração, negociantes e notáveis maiores franceses, retomando-se o sistema do edito de 1701.

As disposições de 1776 eram, todavia, renovadoras e garantiam uma Justiça mais independente e mais profissional. Com efeito, o Conselho se compunha, entre outros membros, de sete Conselheiros titulares, indicados pelo rei e nomeados por ele. Esses asseguravam, com garantia de permanência, as funções da Justiça tanto civil quanto criminal e tinham voto deliberativo no Conselho. Servia como contrapeso à autoridade dos Administradores, que se tornavam assim autoridades executivas e os instrumentos de relação com a coroa. Não é exagerado pensar que o Conselho se situava então dentro da tradição dos Parlamentos [franceses]. No edito do mesmo dia previa também que pelo menos três desses Conselheiros deviam ser advogados, maiores de 27 anos e que estivessem exercendo a profissão há pelo menos quatro anos em alguma Corte ou judicatura do Reino. Esses profissionais deviam apresentar seus títulos e comprovante de exercício da advocacia. Sabemos que o Conselho de 1776 funcionou quase nada, e que a atividade da "Chaudrie" parou em 1778, para ser retomada após o Edito de 1784. A "Chaudrie" passou então a funcionar com um pessoal de qualidade, permanente e independente, na pessoa desses Conselheiros. Alguns deles eram provavelmente aptos, levando-se em conta sua formação jurídica anterior, para informarem-se sobre o Direito local, aplicá-lo e estudá-lo. Essa hipótese não tem nada de gratuita, porque os trabalhos de que dispomos atualmente sobre o Direito de Pondichéry são obra de magistrados profissionais, os da Monarquia, do Segundo Império e da República notadamente, que ali exerceram suas funções a partir do século IXX. Isso não é pretender também que os juízes da "Chaudrie" estivessem aquém da sua capacidade, pelo contrário, o exame dos processos revela seu senso de equidade, sua inteligência para analisar as situações jurídicas e sua vontade de respeitar os usos locais. Mas levando-se em conta seu modo de recrutamento à discrição dos Administradores, suas funções essencialmente administrativas, como os órgãos da Companhia, sua formação originária comercial na maioria dos casos, e suas ocupações codidianas nos negócios, na verdade eles não eram tão bem preparados para exercer as funções de jurisdição e redigir os julgamentos. [...] O julgamento de 24 de fevereiro de 1792 documenta que a comissão de Bernard Magdeleine Fanthome que substitui N. Marcilly, nomeado escrivão chefe do Conselho. Esses atos são realizados na ausência das autoridades, notadamente do governador e do entendente geral, durante a ocupação inglesa [...] Desde então, a autoridade britânica se substitui aos administradores para designar a título precário os membros da "Chaudrie" [...] A resolução do Conselho de Madras de 30 de maio de 1797 reforma a Justiça de Pondichéry, mudando o número de Conselheiros para cinco "os quais para um tempo indeterminado serão nomeados e cumprirão seus encargos respectivos enquanto assim o entender este governo e não mais". A competência da jurisdição fica conservada sobre as outras feitorias e sobre os ingleses, com exceção da execução das penas de morte.

A portaria de 15 de fevereiro de 1817 que organiza a "Chaudrie" nas bases de 1778 (nota: é também criado um Tribunal de Revisão, composto de quatro pessoas, dentre as quais o Comandante ou o Presidente do Conselho, seu membro mais antigo e dois notáveis, oficiando em última instância, seja em apelação, cassação ou "requête" civil. (pp. xxiii-xxix)

BONNAN refere-se aos funcionários:

Os juízes da "Chaudrie" não dispuseram em época alguma de um "Código de Processo" e a própria jurisdição somente foi regulamentada muito depois do início do seu funcionamento (após a metade do século XVIII) visando a organizar alguns aspectos do seu funcionamento e a reger o curso dos processos. Quanto ao Direito, as partes, bem como os juízes, deviam referir-se ora à tradição jurídica local (brâmane ou islâmica), aos costumes dos grupos sociais, aos regulamentos das autoridades (indianas ou francesas, e mesmo inglesas) e às instituições reais francesas. Resultava daí uma variabilidade, senão uma impresição, mas também uma flexibilidade extrema de soluções adotadas, bem como de mudanças verificadas no funcionamento e nas próprias instituições. (p. xxxvii)

Logo adiante o ilustrado autor fala da situação da "Chaudrie" dentro do sistema judiciário:

O sistema judiciário aplicado a Pondichéry era extremamente simples e, no início, quase gratuito para os jurisdicionados. Existiam dois órgãos jurisdicionais, respectivamente para os colonos e para os nativos, transformados em seguida em dois graus de jurisdição, tanto na área cível quanto na criminal, com recursos para o Conselho do Rei. Não havia instâncias senhoriais, eclesiásticas, fiscais e outras, e a circunscrição era unitária (se bem que funcionando em seções) e pouco extensa. O Tribunal do Almirantado, competente para o pessoal e os processos do mar, criado em 1717; o Conselho de Guerra, que julgava os militares (desde 1729); o Tribunal do Tenente, que conhecia das matérias administrativas e dominiais; o Tribunal dos Administradores, estabelecido para os estrangeiros; a Câmara Municipal, a partir de 1790; a Corte de Judicatura, substituindo o Conselho em 1805; o Tribunal de Revisão, julgando em cassação as decisões do Conselho ou da Corte; o Conselho de Madras; o Conselho Privado; diversas instâncias arbitrais etc, somente surgiram tardiamente para solucionar situações específicas e limitadas dentro da organização cujo estilo permanecia ainda muito vivo.

A "Chaudrie" se encontrava, no entanto, desde que os franceses ficaram em uma situação paradoxal sob mais de um ponto-de-vista. Sua existência era nessa época contrária à legislação real, que somente previa um tipo de jurisdição, aquela do Conselho, e, mais tarde, dos Conselhos Provinciais nas outras feitorias, para todos as pessoas provenientes da Colônia [...] Em outras palavras, esse Tribunal não tinha nenhuma razão legal além da intenção do Conselho de conservá-lo e organizá-lo. Funcionava como jurisdição pessoal, a dos nativos, depois se transformando em jurisdição mista, a das relações entre esses nativos e os europeus, e enfim transformou-se em jurisdição de primeira instância em muitos processos. Sua finalidade era de julgar em concorrência com o Conselho quando indianos eram partes, inicialmente na prática depois de Direito quando eles eram partes. Enfim, era sobretudo uma jurisdição francesa decidindo com base no Direito indiano e subsidiariamente no Direito francês, enquanto que o Conselho mesmo julgando em grau de apelação as sentenças da "Chaudrie" não era obrigado a aplicar, pelo menos no início do século XVIII o Direito indiano. Essa competência híbrida, que não era excepcional para aquela época, afirmar-se-á progressivamente, à medida que se fortalecia a jurisprudência desse Tribunal. (pp. xxxviii-xxxix)

Quanto ao Direito aplicável aos processos:

O procedimento que era aplicável à "Chaudrie" apresentava particularidades absolutamente excepcionais do ponto de vista da adaptação das práticas às necessidades locais. No plano dos princípios, as jurisdições francesas instaladas na Índia deviam aplicar o Direito da metrópole (o que era lembrado no edito de fevereiro de 1776 e no de agosto de 1784), ou seja, notadamente nas ordenanças reais, como afirmado na Declaração de agosto de 1664. [...] A competência do Tribunal da "Chaudrie" e o procedimento que era seguido são definidos ora segundo a tradição indiana, ora conforme a prática anterior. Era a própria jurisdição, sob o controle do Conselho, que determinava a extensão das suas atribuições, elaborava suas próprias regras internas durante o exame dos processos, formando um tipo de estilo próprio. Surge um estilo de Direito, formado pelos Direitos indiano, francês e pondicheriano (aquele das autoridades diligentes da feitoria). [...] É provável que, comparado às jurisdições tradicionais, tinha-se um procedimento oral, mesmo se a sociedade jurídica indiana tinha conhecimento dos documentos escritos, atos de autoridade pública ou contratos escritos. As fontes antigas (tratados de dharma, epigrafia) confirmam isso, mas, sobretudo, em época mais recente, as partes apresentavam, na "Chaudrie", para sustentarem suas pretensões, documentos públicos, atestações, contratos, títulos diversos, contas etc. dos quais alguns eram manifestamente independentes da intervenção dos europeus. [...] O procedimento junto à "Chaudrie" se tornou escrito (sobretudo após a Declaração de fevereiro de 1777), mas com possibilidade de ser ordenado o comparecimento pessoal, contraditório e dilatório, enfim, sendo de iniciativa das partes, com a intervenção importante do juiz e outras autoridades. (pp. xxxix-xl)

Fala da estrutura da sentença e do procedimento:

A sentença, redigida como uma menção de todos os atos que foram efetuados, com indicação das respectivas datas, origem e conteúdo, comprova a observância de todas as fases do processo, a última das quais contém a decisão propriamente dita. Essa parte começava em geral pela menção "Tout (vu et) considere lê tribunal (declare, condamme, homologue, etc.)...", constitui o último ato do processo, aquele que é contemporâneo da data da sentença, e segue e conclui a lista dos atos precedentes, sem motivação explícita e separada. [...] Compete às partes (mas também aos operadores do Direito e comentadores) reconstituir os motivos que levaram às decisões das sentenças. Esta maneira de proceder está completamente dentro da linha adotada pelas jurisdições do Antigo Regime, que não se diziam obrigadas a justificar suas decisões. [...] A ação é invariavelmente apresentada através de petição, redigida pela parte interessada (o autor) ou seu representante (procurador) ou eventualmente pelo oficial de justiça encarregado. Entregue ao cartório do Tribunal, a petição era encaminhada à parte contrária (o réu) e continha os elementos de fato e, em princípio, os fundamentos jurídicos visando sustentar a pretensão. [...] A contestação era encaminhada ao autor e expunha os fundamentos de fato e de Direito da defesa. Uma novapetição era geralmente admitida para replicar a contestação, a qual podia ser objeto de tréplica. Todos os outros atos do processo, as novas falas das partes e também (réplicas, falas de resposta ou incidentes etc), as injunções de produção de peças ou de comparecimento, submetiam-se também aos procedimentos de remessa, indiretas e oficiais. A determinação do conteúdo dos atos processuais no momento de sua elaboração pertenciam naturalmente às partes, mas o juiz (provavelmente o presidente, ou seja, o Tenente civil) intervinha para presidir o processo desde o início [...] o juiz exercia um poder soberano sobre a admissão ou rejeição das petições, com vistas à filtrar o contencioso. Desde esse instante, o juiz controlava a admissão dos pedidos, ou, pelo menos, os critérios de admissão das pretensões, analisava sua competência a título provisório ou definitivo e organizava a pauta das audiências repartindo os processos sucessivamente ou em função da natureza dos processos (notadamente penal ou civil). Os autos eram acrescentados de novas peças, sendo elas (títulos e escritos em geral) produzidos em apoio das falas das partes sendo apresentados ao cartório e eventualmente analisadas. [...] Esses elementos reunidos, era designado um juiz relator para fazer a síntese do processo e apresentar um relatório, oral ou escrito aos julgadores. [...] Antes de qualquer decisão de mérito, o réu devia ser intimado. [...] A oitiva de testemunhas era confiada a um juiz ou aos intérpretes juramentados do Conselho e ocorria antes dos debates propriamente ditos. Os depoimentos eram documentados num termo escrito, submetido aos juízes. As perícias, mais raramente utilizadas e que não obrigavam os juízes, existiam também, notadamente em matéria imobiliária para a delimitação de terrenos ou avaliação de colheitas ou de bens mobiliários ou imobiliários. [...] Quanto ao juramento, era raro e as formalidades que obedeciam não são explicadas pelo Tribunal. (pp. xl- xliii)

5.3 - A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA

A Justiça indiana é eminentemente estadual, tendo cada um dos 26 Estados sua estrutura judiciária própria, mas existe uma Corte federal, que é a Suprema Corte.

A organização judiciária indiana atual é uma herança britânica, no dizer de ANNOUSSAMY.

Verificamos uma certa complexidade no estudo de desse autor (1996:6-9) e preferimos dividir as jurisdições indianas de uma forma que acreditamos mais didática:

  • I) Tribunais de Direito Comum;

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  • II) Tribunais Especializados.

(I) TRIBUNAIS DE DIREITO COMUM

Quanto aos Tribunais de Direito Comum subdividem-se em dois grupos:

  • A) Tribunais Inferiores;

  • B) Tribunais Superiores.

Os Tribunais Inferiores (A) se ramificam em:

  • a) Tribunais compostos por leigos;

  • b) Tribunais compostos por juízes profissionais.

Os Tribunais compostos por leigos existem somente no 1º grau de jurisdição e são opcionais:

  • 1) Tribunais Rurais tradicionais (competentes para todas as matérias, existem somente nas pequemas cidades ou vilas, são compostos por 5 habitantes de maior destaque na comunidade);

  • 2) Tribunais para processos criminais de menor gravidade.

(Considerando que mais de 70% da população do país vive nas pequenas cidades e vilas, pode-se facilmente concluir que é ainda muito grande a procura pelos juízes leigos, quais sejam os dos Tribunais Rurais tradicionais, apesar da tendência ser no sentido da valorização da figura dos juízes profissionais.)

Os Tribunais compostos por juízes profissionais são todos os demais:

  • 1) no 1º grau de jurisdição: os Tribunais separados para os processos civis e criminais de menor importância;

  • 2) no 2º grau de jurisdição: Tribunais Civis de Jurisdição Plena (competentes para processos civis e criminais menos os crimes contra a vida e apelações nos processos julgados pelas jurisdições de 1º grau, ou sejam, Tribunais Rurais tradicionais, Tribunais para processos criminais de menor gravidade e Tribunais separados para os processos civis e criminais de menor importância);

  • 3) no 3º grau de jurisdição: Tribunais de Distrito (competentes para os processos criminais por crimes graves; apelações nos processos dos Tribunais de 2º grau de jurisdição, ou sejam, Tribunais Civis de Jurisdição Plena; apelações civis nos processos de valor inferior a um determinado teto; recurso de provimento de cassação nos processos de competência dos juízos de 1º grau, ou sejam, Tribunais Rurais tradicionais, Tribunais para processos criminais de menor gravidade e Tribunais separados para os processos civis e criminais de menor importância, sejam esses processos não submetidos a apelação sejam após apelação pelos Tribunais Civis de Jurisdição Plena).

Deve-se acrescentar que todos esses Tribunais (1º, 2º e 3º graus) atuam no sistema de juiz singular (juiz único).

Os Tribunais Superiores (B) se ramificam em:

  • a) Altas Cortes [10] de Justiça de cada Estado;

  • b) Suprema Corte.

As Altas Cortes de Justiça de cada Estado são competentes para as apelações nos processos julgados em primeira instância pelos tribunais de Distrito; apelações julgadas em primeira instância pelos Tribunais Civis de Jurisdição Plena não sujeitas a apelação frente aos Tribunais de distrito; recurso de provimento de cassação contra decisões de qualquer Tribunal inferior.

As Altas Cortes de Justiça de cada Estado também podem agir "ex officio" quando detectam alguma irregularidade grave a ser corrigida em qualquer área da comunidade, seja a nivel estatal, seja a nivel dos particulares. Também decidem requerimentos formulados por particulares ou entidades versando sobre atentados às liberdades fundamentais previstas na Constituição.

As Altas Cortes de Justiça são os Tribunais mais graduados de cada Estado.

Acima delas existe a Suprema Corte, que é competente para apelações nos processos julgados pelas Altas Cortes de Justiça de cada Estado.

A Suprema Corte também conhece, em primeira instância, de casos delicados, em que se alega violação aos direitos fundamentais previstos na Constituição.

Deve-se acrescentar que os Tribunais Superiores são sempre colegiados.

Deve-se observar que, nos recursos, antes de seu recebimento tanto pelas Altas Cortes de Justiça de cada Estado como pela Suprema Corte, os recorrentes são ouvidos em audiência pública e se o Tribunal entente descabidos, são rejeitados liminarmente, acontecendo mais casos dessa natureza sobretudo na Suprema Corte.

(II) TRIBUNAIS ESPECIALIZADOS

ANNOUSSAMY fala da extrema especialização de alguns Tribunais e enumera alguns deles, especializados em:

  • Reforma Agrária;

  • Locação de Imóveis;

  • Proteção do Domínio Público;

  • Desapropriação;

  • Seguro;

  • Cooperativas;

  • Cadastro;

  • Florestas;

  • Irrigação;

  • Minas;

  • Plantações;

  • Patentes;

  • Imprensa;

  • Refugiados;

  • Família;

  • Contencioso de Funcionários;

  • Consumidores [11];

  • cada categoria de Impostos e Taxas;

  • Trabalho;

  • etc.

O renomado jurista indiano afirma que somente na área trabalhista há vários Tribunais especializados, quer levando em conta a natureza do contencioso, quer a categoria do trabalhador.

Essa variadade enorme de Tribunais se deve ao fato de no período da colonização inglesa, que só terminou em 1947 com a independência do país, os ingleses tinham criado poucos Tribunais de Direito Comum enquanto que existiam Tribunais especializados, cujo número só foi aumentando e, mesmo quando criados Tribunais de Direito Comum para todo o país, ficava mais fácil para os jurisdicionados procurar os Tribunais especializados.

ANNOUSSAMY menciona as vantagens dos Tribunais especializados:

  • ter uma decisão definitiva de maneira pronta (determinados processos podem passar por cinco graus de jurisdição nos Tribunais de Direito Comum);

  • ter juízes com a visão desejada ou conhecimentos especializados para esses processos;

  • uma certa desconfiança quanto às Altas Cortes dos Estados, as quais divergem dos poderes políticos.

A seguir ele enumera as desvantagens desses Tribunais:

  • somente existem nos grandes centros urbanos, pois é relativamente pequeno o número de processos de cada um;

  • os jurisdicionados têm dificuldade em saber qual o Tribunal especializado competente para conhecer do seu problema específico.

Em 1976 o governo distinguiu determinados Tribunais especializados: Contencioso de Funcionários; cada categoria de Impostos e Taxas; Comércio Exterior; Moedas Estrangeiras e Alfândega; Trabalho; Desapropriação; Limite da Propriedade Urbana; Eleições e Abastecimento dos Alimentos Essenciais. Criou para eles, na Constituição, uma hierarquia diferenciada, não mais os subordinando às Altas Cortes dos Estados mas sim a Cortes Superiores de hierarquia equivalente, naturalmente que tendo como instância mais graduada a Suprema Corte. No entanto, na realidade, somente foram implantados Tribunais Superiores em duas ou três dessas especializações, o restante continuando a subordinar-se às Altas Cortes dos Estados.

DAVID (1996:465-467) fala na organização judiciária indiana, na Suprema Corte e na obrigatoriedade do precedente:

A Índia, consideradas sua extensão e sua população, não pode ter uma justiça centralizada como a da Inglaterra. A organização judiciária que ela adotou é, contudo, muito diferente da dos Estados Unidos da América. Na Índia não existem jurisdições federais à exceção de um Supremo Tribunal Federal, com sede em Nova Delhi, composto pelo Chief Justice of India e treze juízes. Os juízes do Supremo Tribunal são designados pelo Presidente da República, após ter recebido diversos pareceres consultivos, sem que seja necessária a aprovação do Senado.

OSupremo Tribunal tem por função essencial zelar pelo cumprimento da Constituição. Pronuncia-se sobre a validade das leis da União ou dos Estados quando a constitucionalidade destas leis é contestada. Pode ser chamado a pronunciar-se, por outro lado, nos casos em que é alegada a violação de um "direito fundamental" garantido pela Constituição. Além disso, o Supremo Tribunal tem igualmente uma competência extensa: pode, por exemplo, ser chamado a pronunciar-se pela via de um recurso contra qualquer decisão proferida por um High Court em matéria civil, se o interesse em jogo ultrapassa as 20.000 rúpias, e pode, por outro lado, admitir um "apelo especial" contra qualquer decisão proferida por qualquer tribunal da Índia, exceção feita aos tribunais militares.

OSupremo Tribunal estabelece, ele próprio, o seu regulamento do processo, que deve, contudo, ser aprovado pelo Presidente da República; a Constituição obriga-o a prever que pelo menos cinco juízes devam participar no julgamento dos processos nos dois primeiros casos supracitados; igualmente cinco juízes se devem pronunciar quando é pedido ao tribunal um parecer meramente consultivo por parte do Presidente da República, conforme autoriza a Constituição.

O Supremo Tribunal da Índia, como o dos Estados Unidos, pode operar mudanças de jurisprudência. Isto verifica-se raramente, dada a grande facilidade com que o parlamento pode modificar a Constituição. Um caso notável veio pôr em relevo esta possibilidade. O Supremo Tribunal, revendo sua jurisprudência, decidiu, em 1967, num acórdão muito contestado, que somente uma Assembléia Constituinte poderia, eventualmente, restringir os direitos fundamentais garantidos pela Constituição; o parlamento não tinha, segundo ele, este poder.

No que respeita a outras jurisdições, que não o Supremo Tribunal, a própria Constituição (art. 141) define que estas jurisdições devem seguir os precedentes estabelecidos pelo Supremo Tribunal. E quanto às decisões proferidas por jurisdições diferentes do Supremo Tribunal? A questão coloca-se, neste aspecto, tal como nos Estados Unidos da América. Pode perguntar-se perfeitamente se, para simplificar a administração da justiça e para assegurar a uniformidade do Direito nos diversos Estados, não conviria antes abandonar, ou pelo menos tornar mais flexível, a regra do precedente, tal como ela pôde funcionar na época do domínio britânico. Uma comissão constituída em 1955 considerou a prática anterior tão ligada à psicologia dos juristas que não era possível colocá-la em causa, mesmo que isso parecesse desejável. O importante papel atribuído à lei e os progressos da idéia da codificação poderão levar, na Índia como nos outros países de common law, a significativas mudanças nesta matéria.

5.4 - OS JUÍZES

ANNOUSSAMY (1996:9-11) informa quanto ao aspecto histórico do estatuto da magistratura:

O estatuto atual dos juízes resulta da administração colonial com algumas modificações trazidas pela Constituição. [...] Apesar das garantias inegáveis, há muitos riscos para a independência dos juízes. Mas os casos em que os juízes sacrificaram sua independência são raros. No conjunto eles procuram preservar a tradição de independência legada pelos ingleses.

Abordemos os diversos itens.

  • concurso para juízes de 1º grau: prova oral para candidatos provenientes da advocacia;

  • nomeação: feitas pelo governo, geralmente com indicações do Tribunal Superior (Alta Corte ou Suprema Corte, de acordo com o caso);

  • promoções para o cargo de juiz de Tribunal de Distrito: um terço de advogados e dois terços de juízes de Tribunais menos graduados (os primeiros normalmente têm mais chance na carreira que os segundos);

  • promoções para as Altas Cortes: mediante indicação do primeiro presidente das respectivas Cortes, sendo um terço de juízes de Tribunais de distritos e dois terços de advogados, sobretudo aqueles que prestam serviço à administração pública;

  • promoções para a Suprema Corte: geralmente escolhidos entre os primeiros presidentes ou juízes mais antigos das Altas Cortes;

  • há uma distinção acentuada entre juízes de Tribunais Inferiores e de Tribunais Superiores, inclusive pela valorização da posse dos segundos através de uma solenidade pomposa e recebimento de complemento de vencimentos "in natura", o que não acontece com os primeiros;

  • remuneração: os vencimentos encontram-se defasados por causa da inflação;

  • rotatividade: os juízes de Tribunais Inferiores não podem ser nomeados para Tribunais de seu local de origem e não podem permanecer mais de três anos em um mesmo Tribunal; quanto às Altas Cortes um terço de seus juízes têm de ser provenientes de outros Estados;

  • disciplina: as punições disciplinares dos juízes de Tribunais Inferiores são feitas pelo governo sob proposição da respectiva Alta Corte; quanto aos juízes de Tribunais Superiores somente podem ser demitidos por ato do presidente após processo de iniciativa de pelo menos dois terços de cada uma das duas câmaras do Parlamento central sob argumento de incapacidade ou mau procedimento. Um ponto importante para ser mencionado é que os juízes das Altas Cortes podem censurar os juízes de Tribunais Inferiores nos próprios autos dos processos que lhes chegam pela via recursal.

Os juízes são provenientes das classes média e alta, conforme diz ANNOUSSAMY (1996:22). Parece não haver oportunidade real para os "intocáveis" (párias).

O Departamento de Justiça do Ministério do Direito e da Justiça, no endereço de Internet http://lawmin.nic.in/Just.htm fornece dados atualizados:

Quanto à Suprema Corte (federal):

O número de juízes da Suprema Corte (incluindo o Presidente desse Tribunal) é de 26, sendo que 25 ocupam seus cargos desde 17.12.1996, havendo 1 vaga a ser preenchida.

Quanto às Altas Cortes (estaduais):

O Governo da Índia adotou a política de designar Presidentes das Altas Cortes dos Estados que não sejam profissionais desses Estados. De 1.12.1995 a 17.12.1996, foram feitas transferências e designações de 11 Presidentes de Altas Cortes Justiça para Altas Cortes de outros Estados. Desde 17.12.1996, só a Alta Corte de Sikkim tem um Presidente nativo.

Desde 17.116.1996, o número de juízes e juízes adicionais das várias Altas Cortes era de 568. Em acréscimo, foi estabelecida a criação de cargos de 9 juízes permanentes e 38 juízes adicionais em diferentes Altas Cortes.

De 1.12.1995 a 17.12.1996, 93 recentes designações de juízes permanentes e adicionais juízes foram feitas e, em acréscimo, 17 juízes adicionais foram designados como juízes permanentes.

5.5 - O JUIZ E A LEI

ANNOUSSAMY (1996:13-16) descreve a evolução da mentalidade dos juízes indianos frente às leis.

Fala numa primeira fase, anterior à chegada dos britânicos à Índia.

Prevalecia então o sistema multimilenar de os juízes decidirem levando em conta primeiramente os costumes e, na sua ausência, é que eram aplicadas as leis. E, mesmo assim, as leis podiam ser desconsideradas se levavam à injustiça. Assim, nessa época reconhecia-se uma latitude muito grande para o arbítrio judicial.

Explica ANNOUSSAMY (1996) essa mentalidade:

Os Códigos antigos da Índia não são Códigos de leis positivas, são "Códigos modelos". Deve-se procurar a aproximação máxima possível, mas não se tem a obrigação de ser abolutamente conforme a eles. (p. 13)

Numa segunda fase, quando os britânicos passaram a influenciar a Índia, eles não editaram leis para esse país justamente por causa de sua adesão à common law.

E como os juízes indianos não conheciam o Direito inglês, o plano de Warren Hastings estabeleceu em 1772 que os juízes indianos deveriam julgar de acordo com a justiça, a eqüidade e a consciência, o que, na verdade, fez continuar a situação que já existia, em nada alterando a forma de julgar.

Quando Jeremy Benthan iniciou na Inglaterra um movimento em favor da codificação do Direito inglês, não obteve sucesso, procurando então transplantar seus planos para a Índia, daí sendo editado um Código em 1859.

Já em 1882 a maior parte das leis inglesas prevalentes na Índia foi codificada.

Após esse Código os juízes indianos ficaram obrigados a decidir com base na lei, sem poder sequer de interpretá-la e passou a não reconhecer nenhuma outra forma de julgar.

No entanto, mesmo assim, os juízes indianos insistiam em aplicar a jurisprudência sempre que visualizavam alguma lacuna na lei até porque não queriam renunciar ao seu privilégio de criar regras de Direito a que tinham se habituado.

Dessa forma, criou-se um sério impasse: enquanto o chamado Conselho Privado da Índia afirmava que os juízes não poderiam decidir contra os princípios jurídicos formulados por ele, as Altas Cortes ameaçavam de punições esses mesmos juízes se decidissem contrariamente à jurisprudência.

Uma solução temporária surgiu através da legislação indiana de 1935, que estabeleceu que os parâmetros do Conselho Privado e da Corte Federal deveriam ser seguidos obrigatoriamente por todos os Tribunais do país.

E a Constituição (1950) endossou esse entendimento em relação à nova Suprema Corte.

Quanto às Altas Cortes sua jurisprudência passou a obrigar os juízes dos respectivos Estados, mas não de outros.

A força das leis com isso foi minimizada pela jurisprudência, no entanto, para novo prestígio das leis, são elas sucessivamente reeditadas acompanhadas da jurisprudência, e, assim, os juízes se baseiam em dispositivos legais sem maiores problemas.

Duas situações peculiares passaram a ocorrer: as sentenças dadas com base exclusivamente na jurisprudência são mantidas em grau de recurso somente se não há texto de lei expresso sobre a matéria, e a lei é aplicada isolada da tendência jurisprudencial se o caso ocorrente é uma situação completamente nova, não adequável a nenhuma jurisprudência. E nesses casos os juízes de primeira instância ficam na difícil situação de decidir.

De alguma forma minimizou-se também a força do stare decisis, utilizando-se a técnica da distinção para deixar-se de aplicar a jurisprudência nos casos que apresentam aspectos diferenciados em relação ao molde jurisprudencial.

E foi a própria jurisprudência que mostrou o caminho a ser seguido para bem julgar os processos:

O exemplo e as diretivas que as Cortes Superiores dão é de fazer prevalecer a Justiça e de não se deixar entravar pelas regras técnicas e um juridismo escrupuloso. (p. 15)

Conclui ANNOUSSAMY (1996) que os juízes indianos atuais estão voltando a ter a liberdade de decisão que tiveram até uma parte do século XVIII, apenas que, diferentemente dos juízes ingleses, devem expor nas sentenças sua fundamentação:

Assim pouco a pouco os juízes indianos recuperam um pouco sua tradição após um intervalo de rigorismo da administração judiciária à moda inglesa. A grande diferença é que eles devem explicitar sua fundamentação de forma convincente. [...] A lei está a serviço da Justiça em que o juiz é o oficiante ativo. Tal é a filosofia que parece emergir. (p. 16)

5.6 - O PAPEL POLÍTICO DOS JUÍZES

ANNOUSSAMY (1996:16-22) menciona algumas situações que fazem o Judiciário indiano desempenhar um papel político relevante:

  • sua atuação em processos que têm envolvimento político importante, como no caso de eleições etc.;

  • sua atuação no controle de constitucionalidade, que pode ocorrer no curso dos processos;

  • a Suprema Corte estabeleceu "cláusulas pétreas" para a Constituição, que não podem ser objeto de revisão constitucional;

  • a Suprema Corte acaba invadindo a área do Poder Legislativo quando este se omite na elaboração de leis que politicamente não lhe interessam;

  • a Justiça é procurada pelos cidadãos que vèm seus direitos relegados ao descaso pela classe política;

  • em muitas situações os juízes acabam estabelecendo regulamentações para casos em que o legislador não o faz, como ocorreu com relação à adoção internacional de crianças indianas, quando o próprio governo comunica aos serviços competentes essas decisões do Judiciário.

ANNOUSSAMY (2001), depois de afirmar que a atividade legislativa é desbordante depois da independência (p. 21), fala da disputa entre o Judiciário e o Legislativo:

Quando a Suprema Corte anula uma disposição legislativa, o Parlamento a ressuscita sob outra forma; algumas vezes a situação se repete e degenera em verdadeiro duelo. Assim, a lei se torna agressiva em determinados casos, deturpa a realidade e se macula. (10-11)

Essa disputa realmente é grave, segundo ANNOUSSAMY (2001:22):

... as leis somente sobrevivem se estão conformes à constituição: se elas não recebem a afirmação de validade pela suprema Corte, no bojo de um recurso processual de provimento, a insegurança paira sobre elas.

5.7 - AS DISTORÇÕES

ANNOUSSAMY (1996:25-29) fala dos problemas da máquina judiciária antes dizendo dos primeiros felizes tempos após a independência:

Os britânicos tinham deixado à sua partida um sistema bem organizado de tal forma que todos estavam satisfeitos. Após a independência as cortes superiores receberam a admiração e a gratidão da população por sua pronta intervenção na salvaguarda dos direitos fundamentais. De uns quinze anos para cá surgiu uma sombra nesse cenário. (p. 25)

Enumera os problemas, que seriam os seguintes:

  • a causa principal foi o crescimento populacional, que mais que dobrou nos últimos quarenta anos;

  • o desenvolvimento da atividade econômica aumentou o número de litígios, gerando o aumento do número de processos;

  • a legislação indiana não está preparada para evitar os litígios nem lhes dar solução rápida, sendo de notar-se que as provas escritas não são utilizadas nos processos, sendo regra a oralidade;

  • o rito dos processos disciplinares é complicado e acabam sendo esses processos questionados perante a Justiça;

  • as leis sócio-econômicas são em número avultado, não são editadas com o consenso de todos os interessados e acabam gerando resistência daqueles a quem desagradam;

  • a prática administrativa nem sempre coincide com as leis;

  • por falta de recursos financeiros as leis mais bem intencionadas deixam de ser colocadas em prática;

  • os recursos financeiros para custeio de pessoal e meios materiais não são ideais;

  • o aumento do número de Tribunais especializados gera o aumento de serviço para os Tribunais Superiores, sendo que a Suprema Corte contava em 1996 mais ou menos 39.000 em andamento, dos quais cerca de 20.000 em andamento há mais de cinco anos, e essa é a situação das Altas Cortes;

  • a indulgência dos juízes e a pressão dos advogados contribuem para que ações sejam apresentadas diretamente aos Tribunais Superiores forçando-se alegações de violações a direitos fundamentais, sendo essa prática utilizada principalmente pelos que residem nas capitais, fazendo com que casos complexos sejam julgados dentro de um rito simplificado;

  • em virtude das dificuldades existentes há processos em andamento há mais de vinte anos nos casos em que começaram em Tribunais de primeira instância e o vencido resolve recorrer sempre;

  • as decisões provisórias nos processos acabam perdurando muitas vezes por anos seguidos, prejudicando as partes;

  • políticos têm procurado usurpar as funções judiciárias, através do que ANNOUSSAMY chama de "depravação da democracia", quando a classe política procura exercer verdadeira ditadura em todos os domínios;

  • há uma tendência de certos juízes a hipotecar sua imparcialidade em favor dos poderosos do dia ou por amor ao dinheiro, observando-se como fatores facilitadores o sistema de juiz único como regra quase geral, há possibilidade de fraude na distribuição de processos, as leis são um tanto fluidas e o controle dos Tribunais Superiores sobre os juízes de Tribunais Inferiores é cada vez menor. As acusações ao Judiciário são de corrupção e morosidade;

  • os advogados têm contribuído para agravar a situação da Justiça em geral, pois os princípios de deontologia nem sempre são seguidos, gerando desconfiança nos eventuais clientes; as relações entre advogados e juízes nem sempre são cordiais, muitas representações sendo formuladas contra juízes, que acabam removidos compulsoriamente ou demitidos;

  • a polícia também tem colaborado para os desacertos quando da elaboração de inquéritos policiais embasadores de processos criminais e inclusive já se registrou a ocorrência de ofensa pública de policial a juiz, o que, felizmente, ocorreu poucas vezes;

  • os próprios Tribunais Superiores atrapalham a estabilidade da estrutura quando, ao invés de manterem a uniformidade da jurisprudência (stare decisis), resolvem decidir de forma diversa, gerando a insegurança jurídica, o aumento do número de processos e outros efeitos danosos;

  • as sentenças são por demais extensas, algumas vezes com centenas de páginas;

  • as publicações de jurisprudência estão nas mãos de advogados, que procuram mencionar apenas as que lhes interessam, principalmente nos casos criminais, as que favorecem os acusados;

  • há uma certa precariedade nos estudos mais aprofundados, gerando afoiteza e risco de decisões injustas;

  • apesar de o idioma dos processos nos Tribunais Superiores ser o inglês, muitos advogados não o conhecem suficientemente e muito menos as partes e pessoas em geral num país onde há uma diversidade enorme de línguas e dialetos.

ANNOUSSAMY (1996:26) diz que, devido ao assoberbamento dos Tribunais, o governo pensou em duas soluções alternativas: uma incentivando a conciliação e outra a arbitragem, esta última baseada no modelo de 1985 da ONU, o que, aliás, são opções muito úteis, praticadas por muitos outros países, com excelentes resultados.

5.8 - PERPECTIVAS PARA O FUTURO

ANNOUSSAMY (1996:29-34) sugere algumas medidas para melhorar a Justiça indiana, quais sejam:

  • aumento dos vencimentos dos juízes, inclusive para evitar a corrupção;

  • implantação do sistema de colegialidade nos Tribunais pelo menos na hora da prolação das sentenças (em lugar do sistema de juiz único);

  • redefinição das competências principalmente para desobstruir os Tribunais Superiors, que encontram-se assoberbados por processos em que se alega agressão aos direitos fundamentais;

  • limitar os fundamentos para reforma dos julgamentos a um ou dois;

  • designação de juízes de excelente nível profissional para os Tribunais de primeira instância mais importantes, que apresentam causas mais complexas;

  • limitação do número de advogados, exigindo maior qualificação moral e técnica;

  • reagrupamento de forma mais racional os Tribunais Especializados, visando melhor atendimento aos jurisdicionados e diminuição das despesas;

  • revisão das regras processuais, principalmente no que pertine às provas;

  • redução da extensão das sentenças e acórdãos.

  • O estudioso doutrinador enumera cinco tendências que parece inclinarem o governo indiano quanto à Justiça sob inspiração dos estudiosos das leis sociais:

  • inserção nos textos de lei de regras de interpretação das leis (devido à relativa indefinição que existe quanto à prevalência das leis ou da jurisprudência);

  • informatização (para facilitação inclusive do conhecimento da jurisprudência);

  • utilização de meios alternativos como a conciliação e a arbitragem (já tendo sido criados Cortes Populares - compostas de juízes e advogados aposentados - junto aos Tribunais de todas as instâncias, em que, quando há acordo entre as partes, redige-se compromisso, que é título executivo);

  • incentivo à Justiça paralela no interior de cada comunidade religiosa (faltando apenas a partifipação dos hinduístas, uma vez que musulnanos e cristãos são mais simpáticos a essa sugestão);

  • formação dos juízes (que não passam por nenhum curso após aprovação no concurso de ingresso na profissão, havendo somente cursos de reciclagem), devendo-se observar quatro ítens:

  • conhecimento jurídico;

  • qualidade intelectual;

  • caráter;

  • moralidade.

Quanto ao números de processos em andamento, causas do acúmulo de processos na primeira instância e soluções adotadas, foram divulgados pela Internet (http://mha.nic.in/justi.htm) os seguintes dados:

  • na Suprema Corte: redução do número de processos: de 104.936 (1991) para 19.806 (1998)

  • nas Altas Cortes: aumento do número de processos: de 2,65 milhões (1993) para 2,98 milhões (1995) e 3,18 milhões (1997). Observa-se mais de 50% desse total centralizado em apenas 4 Altas Cortes: Allahabad (0,86 milhões), Madras/Chennai (0,32 milhões), Calcutá (0,28 milhões) e Kerala (0,25 milhões)

  • nosTribunais inferiores: números oscilantes: de 21,8 milhões (1995) diminuindo para 19,9 milhões (1996) e aumentando para 20 milhões (1997).

Pesquisadas as razões dessa situação, concluiu-se que múltiplas são elas: a) falta de responsabilidade e transparência na administração, b) aumento no acesso à informação e no ajuizamento de processos, c) aumento da população, d) radicais mudanças na causação dos litígios, e) variedade de tipos de litígios, f) ineficiência de juízes e funcionários da Justiça, g) adiamentos e demoras etc.

Foram adotadas as seguintes soluções: a) classificação e agrupamento de processos, b) identificação e listagem de processos julgados definitivamente pela Suprema Corte e pelas Altas Cortes, c) uso de moderna tecnologia de informação no arquivamento e gerenciamento dos processos, d) aumento no número de cargos de juízes e funcionários da Justiça, e) simplificação dos procedimentos civil e criminal, f) supressão de leis arcaicas, g) adoção de formas alternativas de solução de litígios, h) transparência e responsabilidade na administração através de meios eletrônicos etc.

5.9 - MAGISTRATURA CORAJOSA

MEHTA (1998:143-144) fala da firmeza dos juízes indianos mesmo quando as partes interessadas são os poderosos do dia:

Um juiz da Suprema Corte, homem cuja posição e salário dependiam do governo, teve a coragem de enfrentar a pessoa mais poderosa da Índia e condenar a primeira-ministra Indira Gandhi por corrupçãoeleitoral. Durante o julgamento, quando alvo de todas as pressões imagináveis, de dinheiro a intimidações, o juiz Sinhua advertiu repetidamente a primeira-ministra no sentido de que não cometesse perjúrio, e informou a uma sala apinhada de sicofantas e pessoal de segurança que ninguém deveria levantar-se quando a primeira-ministra entrasse.

- Neste tribunal - observou, severamente - as pessoas só se levantam diante da lei.

Nos anos que se passaram desde o julgamento do juiz Sinhua, o conjunto de pressões exercidas pela sociedade indiana transformou lentamente a política da Índia - e os resultados estã começando a aparecer.

Hoje, a Suprema Corte condena por corrupção líderes de todos os quadrantes do aspecto político - primeiros-ministros, ministros de Estado, líderes de todos os grandes partidos políticos.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marques

juiz de Direito em Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Luiz Guilherme. A Justiça e o Direito da Índia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 164, 13 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4552. Acesso em: 26 abr. 2024.

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