O amor como pecúnia: a responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental no direito das famílias contemporâneo

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28/12/2015 às 10:19
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Afeto e pecúnia

A família na atualidade é estabelecida segundo os preceitos do carinho, amor e do afeto. Os laços afetivos se sobrepõem aos biológicos e são eles que amarram a convivência familiar e a estrutura da sociedade. Dessa maneira, as relações afetivas devem ser estabelecidas de maneira livres e espontâneas. A ideia de afetividade deve ser construída, ela representa um processo dinâmico e dialético, em que o relacionamento entre pais e filhos é estabelecido com o decorrer da vida.

Nesse sentido a responsabilidade civil não seria apta a sanar os problemas decorrentes do abandono, como dispõe Farias e Rosenvald (2008) a indenização decorrente da negativa de afeto produziria uma verdadeira “patrimonialização” de algo que não possui característica econômica, seria subverter a evolução natural da ciência jurídica, retrocedendo a um período em que o ter valia mais que o ser.

Observa-se também que o medo da possível ação de responsabilidade civil por abandono, levaria os pais que não possuem qualquer tipo de relação afetiva com seus filhos, buscarem uma convivência forçada com receio de futuras sanções do judiciário.   Entretanto, a mera presença física, não é capaz de suprir os danos ocasionados pelo desinteresse demonstrado nesses encontros impostos pelo medo e poderiam ser muito mais danosos para os filhos, que esperam o apoio de seus pais e uma convivência afetiva espontânea.

Além desse aspecto, a busca judicial pelo “afeto”, ocasionará danos ao filho queixoso, visto que é uma situação humilhante, reclamar publicamente, por um amor negado, enquanto o pai ou mãe omisso declara também  publicamente a falta de amor.  

Com o posicionamento favorável a condenação pecuniária pelo abandono aos filhos, o judiciário terá uma quantidade exacerbada de ações indenizatórias com intuito meramente patrimonial, interesses visando apenas à vingança, o que descaracterizaria a relação familiar.

Outro aspecto a ser observado, é que a indenização não seria aplicável ao caso de abandono afetivo, visto a impossibilidade de comprovação do dano moral, como dispõe o desembargador relator José Flávio de Almeida, da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao negar recurso n°70050203751 :

O tardio reconhecimento de paternidade, se não estabelecido vínculo e convivência entre pai biológico e filho, depois de muitos anos de vida distanciados no tempo e espaço, ainda que essa situação de fato possa ser cunhada de abandono afetivo, não configura ato ilícito passível de reparação por danos morais. Mesmo que possa ser moralmente reprovável a conduta do apelado.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgou improcedente a apelação civil N0 70050203751de responsabilidade por abandono afetivo, o relator da apelação do TJRS, o desembargador Alzir Felippe Schmitz afirmou que ‘‘mesmo os abalos ao psicológico, à moral, ao espírito e, de forma mais ampla, à dignidade da pessoa humana, em razão da falta de afetividade, não são indenizáveis por impossibilidade de aferição da culpa’’, requisito determinante para a fixação da responsabilidade civil.

Segundo o desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, da 7 ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no recurso n° 70029347036 , dispõe que a busca pelo perdão seria mais benéfica no desenvolvimento das relações afetivas entre filhos e pais, pois a reaproximação ou a cura dos danos decorrentes do abandono seriam impossíveis por meios exclusivamente patrimoniais: 

 Se tanto o pai quanto a filha tiverem a grandeza de perdoarem as faltas que um e outro possam ter cometido, se cada um conseguir superar as suas dificuldades pessoais e minimizar ou sublimar as mágoas porventura existentes, certamente terão ganhos afetivos e serão mais felizes. Mas o certo é que esse conflito, que ainda persiste, não poderá ser resolvido com qualquer indenização, pelo contrário.

Assim, é possível compreender que tratar o afeto segundo os preceitos pecuniários iria contra o próprio princípio da afetividade vigente no Direito das Famílias. Sendo possível dispor que a utilização da responsabilidade civil com escopo na indenização por abandono afetivo representa um verdadeiro atraso nas relações familiares. A intromissão do judiciário nas questões de carinho, afeto e amor de maneira coativa pode representar perigo ou abuso de poder, visto que o afeto é sentido, construído, não imposto.


Considerações finais  

De acordo com o exposto é possível inferir que a indenização por abandono afetivo parental representa um verdadeiro retrocesso no Direito das Famílias. Pois, admitir a aplicação do instituto da responsabilidade civil limitaria as relações subjetivas do afeto e amor ao campo patrimonial e, como disposto o direito evoluiu e não são as relações econômicas que o norteiam na atualidade.  

 A indenização pelo abandono não são aptas a sanar os danos causados ao filho e muito menos propiciaria melhora nas relações familiares. Poderia, no entanto, aumentar as desavenças e solidificar a ausência de relações salutares entre genitores e filhos.

 Tratar o amor como simples pecúnia não representaria nenhuma finalidade social benéfica. O afeto é que regula as famílias, é dele que decorrem todas as relações pessoais, não pode ser imposto.

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Como dispõem os aspectos normativos, os pais possuem a obrigação de cumprir os deveres inerentes à maternidade e paternidade, entretanto buscar a obrigatoriedade do amor é algo perigoso e a monetarização do afeto pode levar a uma convivência forçada  não benéfica a qualquer das partes.

Pensar em Direito das Famílias contemporâneo é pensar em relações afetivas, portanto quando o amor é transformado em simples pecúnia é retroceder no tempo,  limitando a estagnação de reduzir as relações interpessoais ao campo do patrimônio. O afeto é algo que nasce naturalmente, fruto de aproximação espontânea, é recíproco e não pode ser criado pela força do Poder Judiciário.


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Sobre a autora
Betânia Gusmão Mendes

Advogada sócia do escritório Mota & Gusmão. Graduada em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho, Montes Claros- MG.

Informações sobre o texto

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