O debate teórico sobre liberdade, seu exercício e sua positivação, é sempre possível, a oscilar entre o sonho poético da liberdade absoluta – encarnada pelos “gênios” da humanidade, capazes de muito realizar -, e o plano antípoda dos escravos nas galés medievais, tão somente a remar enquanto suas forças resistissem.
A máxima da Revolução Francesa – “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” – até hoje insculpida nos mais variados portais, escolas e prefeituras da França -, entroniza a ideia de uma liberdade relativa e não absoluta, a ser distribuída e relativizada entre os agentes da sociedade, teoricamente “iguais” entre si perante a lei, e que poderiam até mesmo exercer algum tipo de fraternidade, conceito emprestado às antigas corporações de ofício e posteriormente à fraternidade maçônica do século XVIII.
Mas, independentemente de sua concepção sobre a liberdade, e de seu alcance, ao buscar materializá-la ou concretizá-la, deverá o homem insculpi-la nos textos constitucionais, cuja inserção, e consequente cadeia de transmissão, haverá de comunicá-la, gradualmente, às diversas leis elaboradas para regê-lo.
Mas no limite do exercício de sua liberdade individual, sempre colidirá o indivíduo, com o exercício de liberdade com os demais – incluindo instituições diversas – todo um universo coletivo a exigir a afirmação individual.
Tensão entre liberdade individual e coletiva é germe de pactos sociais materializados jurídica e legalmente através de assembleias legislativas – especialmente as constituintes – em cujo bojo os diversos representantes da sociedade traduzem sua imensa gama de valores éticos e sociais, de um determinado momento histórico.
Ampliando a trilogia instauradora do Direito na visão de Miguel Reale – fato/valor/norma – ao se analisar o conceito do valor como indutor da norma, ocorre, na referida assembleia constituinte, a apresentação de uma pluralidade de valores, ali negociados e escolhidos, para só depois serem, ou alguns ou sua síntese, positivados como norma, que, por não lograr muitas vezes expressar sua clareza seminal, passam a demandar exegese jurídica.
A trilogia de Reale permite que se abra espaço em sua dimensão de valor, para duas fases que o integram: a escolha e negociação dos valores a serem adotados na elaboração da norma e, depois, a exegese interpretativa posterior para seu eventual entendimento.
Surge uma quadrilogia, ao invés da trilogia inicial: (1) o fato – (2) a escolha/negociação do valor – (3) a norma positivada, e (4) sua posterior interpretação, ampliando-se a dimensão “realiana” da trilogia para acrescentar ao conceito do valor – rígido em seu teorema inicial – o debate no Legislativo para sua escolha, e o debate exegético posterior, no Judiciário, para sua compreensão. No debate legislativo se elegem os valores a serem corporificados na norma, os quais, por maior que seja o empenho dos legisladores/redatores, nem sempre se fixam como desejado em sua redação final. Por tal razão, e mais adiante, debate e exegese jurídica buscam resgatá-los ou até atualizar valores inicialmente propostos, ancorados em farta jurisprudência e/ou doutrina interpretativa. Algumas vezes ocorre mesmo que tais valores possam ser reatualizados e alterados, como por exemplo ocorreu no Supremo Tribunal Federal quando reinterpretou norma sobre casamento, para além do que permitiria uma análise histórica de seus debates no bojo da Constituinte.
Em resumo: dois planos de reflexão interferem e ampliam a trilogia de Miguel Reale com relação ao conceito do valor: sua escolha inicial, e sua rememoração posterior, resgate exegético que pode até mesmo conter uma alteração com relação às premissas iniciais, conforme o exemplo acima.
Dito isto, vejamos como dois conceitos singelos - liberdade e livre -têm acompanhado a evolução do homem e da sociedade nos séculos posteriores à Revolução Francesa e como foram catapultados para dentro das Constituições do Brasil.
O que oferecem os textos constitucionais brasileiros, apenas sobre os verbetes “liberdade” e “livre” de 1824 até 1988, ao longo de 154 anos de construção das liberdades individuais face à sociedade?
No quadro a seguir identifica-se a quantidade de vezes que cada um destes conceitos aparece nas Constituições, podendo-se medir o progresso histórico que se tem logrado até hoje, em direito constitucional.
CONSTITUIÇÃO LIBERDADE LIVRE TOTAL
1824 3 2 5
1891 2 9 11
1934 12 12 24
1937 7 12 19
1946 11 10 21
1967 11 8 19
1969 12 11 23
1988 17 28 45
O quadro mostra este avanço histórico na utilização dos dois conceitos - “liberdade” e “livre” – somando 5 citações em 1824 (3+2=5) e 45 em 1988 (17+28=45), alvissareira evolução da sociedade, cuja população evoluiu de menos de 10 milhões para os atuais 200 milhões de habitantes.
Mas a evolução não é linear, pois condicionadores diversos surgem para alterar o alcance e a aplicação deste conceito.
Um exercício gradual e histórico de amadurecimento na compreensão do fenômeno da liberdade, valor que exige esforço para enfrentar tabus e objeções de toda a sorte, ancorados em hábitos e costumes culturais que embora se modifiquem ao longo do tempo, solicitam, a cada momento constitucional, que representantes da sociedade convocados a escrevê-la, exibam valores pessoais e de seus grupos de origem; desde os mais conservadores, advindos em geral de áreas rurais, debatendo e negociando pontos de equilíbrio com valores que representem o pensamento de vanguarda das áreas urbanas. Arbitram-se valores e se elegem denominadores comuns, negociados no âmbito de uma Assembleia Constituinte. Exemplo recente deste modelo de debate e de materialização constitucional foi o grupo político chamado “Centrão” que apresentou a redação final do projeto da Constituição de 1988.
Vamos considerar apenas o conceito de “liberdade” através das Constituições acima mencionadas.
1. Constituição de 1824.
Na Constituição de 1824, o conceito de liberdade integra os seguintes três artigos:
- Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis: ... V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos.
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. ...
XXXV. Nos casos de rebelião, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado, que se dispensem por tempo determinado algumas das formalidades, que garantem a liberdade individual, poder-se-á fazer por ato especial do Poder Legislativo. Não se achando porém a esse tempo reunida a Assembleia, e correndo a Pátria perigo iminente, poderá o Governo exercer esta mesma providência, como medida provisória, e indispensável, suspendendo-a imediatamente que cesse a necessidade urgente, que a motivou; devendo num, e outro caso remeter á Assembléia, logo que reunida fôr, uma relação motivada das prisões, e d'outras medidas de prevenção tomadas; e quaisquer Autoridades, que tiverem mandado proceder a elas, serão responsáveis pelos abusos, que tiverem praticado a esse respeito.
Os diversos incisos deste artigo 179 identificam a aplicabilidade destes princípios fundamentais – direitos civis e políticos -, a saber: “comunicação dos pensamentos por palavras e escritos” (IV); a limitada liberdade religiosa respeitada “a do Estado” (V); liberdade de movimentação - “conservar-se ou sair do Império”; a limitada inviolabilidade do lar, em função da lei(VII); independência do Poder Judicial (XII); igualdade perante a lei, excluídos os escravos (XIII); à admissão aos cargos públicos (XIV); direito de propriedade (XXII); liberdade de trabalho, excluindo-se os escravos e mulheres (XXIV); inviolabilidade da correspondência e garantia dos direitos individuais (XXXIV) suspensão de direitos individuais (XXXV).
2. Constituição de 1891
Já a Constituição de 1891, embora só apresente duas vezes o conceito da “liberdade”, nos artigos 70 e 72, avança em diversos aspectos por correlação à anterior, com cuja ordem social rompe radicalmente, a dos poderes religioso e nobiliárquico, traduzindo, no artigo 72, ampla “Declaração de Direitos” humanos, um esboço de futura “cláusula pétrea”.
Com relação à propriedade, interessante observar a ampla liberdade de movimentação dos bens, conforme dispõe o § 10 do art. 72:
“§ 10 - Em tempo de paz qualquer pessoa pode entrar no território nacional ou dele sair com a sua fortuna e bens, quando e como lhe convier, independentemente de passaporte.”
A ruptura da ordem histórica anterior é uma ruptura de valor, ou de valores, ingressando o país na ordem social dita democrática e burguesa.
Deste artigo 72, merecem atenção, quanto a construção deste novo estágio de liberdade individual, os seguintes parágrafos: 2º - abolição dos privilégios de nascimento e de foros de nobreza; 3º - instalação da liberdade religiosa; 4º - reconhecimento apenas do casamento civil; 5º - instituição do caráter e da administração secular aos cemitérios; 6º - fixação do ensino leigo nos estabelecimentos públicos; 7º - extinção de subvenções do Estado a cultos ou a igrejas; 11º - assentamento da inviolabilidade do lar; 12º – fixação da livre manifestação de pensamento; artigos 13º ao 16º - fixação de princípios penais: prisão, flagrante delito, defesa e sentença; 17º - fixação do amplo direito de propriedade, inclusive das minas, salvo desapropriação por interesse público; 20º - abolição de pena em galés e 21º da pena de morte; 22º - instauração do ‘habeas-corpus’; 24º - fixação do livre exercício profissional e 25º, 26º e 27º: da propriedade intelectual; 28º e 29º - crença religiosa não exime do cumprimento de direitos civis e públicos.
Diversos valores da nova ordem burguesa que ascende ao poder estão insculpidos nesta nova Constituição de 1991, como os da ampla propriedade, incluindo a do subsolo, (§ 17º), além da extinção dos privilégios da nobreza e da Igreja, - representantes da ordem anterior- entre os principais.
Afirmam-se valores das liberdades individuais que permanecerão soberanos, até que novos valores sociais, limitando-os, se expressem constitucionalmente, advindos da cultura voltada para o campo social, de fins do século XIX, e da nova ordem que ascendeu ao poder em 1930 – com a Revolução de Vargas – materializando-os na Constituição de 1934.
Assim, seu Capítulo IV estatui, mas não aprofunda, novos limites à liberdade anterior: demandas e “necessidades da vida nacional” e de uma “existência digna a todos”, uma preocupação com a sobrevivência da população de menor renda. (37,4 milhões de almas e 2,5 milhões de eleitores)
3. Constituição de 1934
A Constituição de 1934, ao lado dos “Direitos e Garantias Individuais” - Capítulo II, com 38 incisos -, vai enfatizar o verbete “liberdade” através de 12 itens, justapondo-os a pontos específicos, a saber: Preâmbulo – “... regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico,...”; art. 113: “... direitos concernentes à liberdade...”; 113, 5º: “...liberdade de consciência e de crença...”; 12º - “...liberdade de associação para fins lícitos...”; 23º - “... habeas corpus na ameaça à liberdade; 115: “...liberdade econômica, dentro de limites”; 150: “liberdade de ensino”; 155: “liberdade de cátedra”; 165: “...pena restritiva de liberdade por tempo superior a dois anos...” e respectiva perda da patente militar; 175: “...suspensão da liberdade de reunião e de tribuna durante estado de sítio”; § 3º: necessária apresentação ao Juiz de “pessoas atingidas pelas medidas restritivas da liberdade de locomoção”; § 4º: autoridades públicas imunes a “... medidas restritivas da liberdade de locomoção (não atingem...)”.
A Constituição de 1934 por primeiro, no conjunto das Leis Maiores do país, introduz no Título IV o novo capítulo “Da Ordem Econômica e Social”, um anseio tardio respondendo a tais demandas, num momento histórico em que a Europa, referência cultural de até então, experimentava revoluções voltadas para implantação do domínio do “econômico e social”, como a República Socialista soviética, e as estruturas sociais do facismo e do nazismo.
Doravante, num país pobre e carente como o Brasil, com baixa renda per capita, tais valores vão-se afirmar e se manifestar de forma crescente nos demais textos constitucionais, alterando a percepção da extrema liberdade individual positivada na Constituição liberal de 1921.
4. Constituição de 1937
Já a Constituição de 1937, outorgada pelo Presidente da República na mesma data em que institui a ditadura do Estado Novo - 10 de novembro -, vê reduzir-se o uso do verbete “liberdade” das 12 citações anteriores para apenas 7, das quais duas são justamente limitações a seu uso e gozo, através do art. 168, que postula, no estado de emergência a “privação da liberdade de ir e de vir” e a “suspensão da liberdade de reunião”.
Dos demais cinco artigos ou itens em que o verbete “liberdade” é citado, quatro deles integram o artigo 122, referente a “Direitos e Garantias Individuais”: “Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:”; 8º - “liberdade de escolha de profissão..., observadas as restrições impostas pelo bem público nos termos da lei;”; 9º - “liberdade de associação...”; 16º - “habeas corpus” e “liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”; e por fim, o artigo 160, mantém texto da CF anterior quanto à possibilidade de “... pena restritiva de liberdade por tempo superior a dois anos...” ao militar, com perda consecutiva de sua patente.
Em capítulo próprio, a Constituição apresenta sua concepção da Ordem Econômica, através de 20 artigos.