A necessidade da cultura de liberdade

06/01/2016 às 12:35
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Uma resposta ao artigo "A necessidade da cultura de paz", de autoria do presidente nacional da OAB.

Errou a OAB ao colocar no seu site o artigo de seu presidente, o Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho, publicado originalmente no blog do jornalista Matheus Leitão, no portal de notícias G1, demonstrando sua postura desarmamentista. Errou porque, em que pese o legítimo direito de manifestação do seu presidente nacional, a OAB é uma instituição que deve primar pelo pluralismo de ideias e não servir de instrumento para a inculcação de conceitos ideológicos.

Não se justifica a preocupação de que se está pretendendo uma “legalização generalizada do porte de armas de fogo” e que isso visa, no final, a ampliação dos lucros da indústria de armas, como se todos aqueles que lutam pelo direito do cidadão de possuir e portar armas estivessem a soldo dessa indústria.

De nenhuma forma o PL 3722/2012 pretende uma “legalização generalizada do porte de armas de fogo”. De uma singela leitura do artigo 30, do referido projeto de lei, exsurge a constatação de que muito pouco mudou em relação ao atual Estatuto do Desarmamento; basicamente se pretende eliminar a discricionariedade que atualmente permite que a autoridade concedente negue a licença para porte de arma, mesmo que todos os critérios objetivos tenham sido atendidos pelo cidadão, sob a alegação de que “não há efetiva necessidade”.

Outrossim, o PL 3722/2012 ainda exige, para a aquisição de arma de fogo, que o cidadão não possua antecedentes criminais pela prática de infração penal dolosa, nas esferas estadual, federal, militar e eleitoral e que não esteja sendo investigado em inquérito policial por crime doloso contra a vida ou mediante coação, ameaça ou qualquer forma de violência. O PL também reduz de 25 para 21 anos a idade mínima exigida para que alguém compre armas e munições, mas convenhamos, já não é exigida idade mínima de 25 anos para agentes de segurança e militares.

Ademais, armas não geram violência. O relatório da ONU, de 2011, tratando de homicídios, demonstra que, sob uma perspectiva global, a enorme diferença entre as estimativas de proprietários de armas de fogo (centenas de milhões, de acordo com estimativas da Small Arms Survey, 2007) e o número anual de homicídios (centenas de milhares) indica que menos de 1% das armas dos cidadãos é utilizada nesses crimes.

A raiz da criminalidade no Brasil, assim como na América do Sul, de modo geral, tem origem na realidade social fragmentada, desigual, com graves ausências do Estado, que se mostra geralmente débil no enfrentamento ao crime organizado, e permite que grandes segmentos de população marginalizada fiquem submetidos ao jugo de facções criminosas. Se o crime organizado age no atacado, no varejo o crime comum atormenta a população, sem que haja uma resposta adequada por parte da polícia ou da justiça, pelas mais variadas razões, normalmente justificadas pela estrutura deficiente do aparato policial e pelo esgotamento do sistema prisional.

Retrocesso é não dar acesso ao cidadão de uma possibilidade efetiva de defesa ante a crescente criminalidade; retrocesso é pretender criminalizar cidadãos de bem que, diante desta crescente insegurança, e em razão da impossibilidade de obtenção de uma autorização legal para o porte de arma, ainda preferem ser surpreendidos pelas autoridades em vez de pelos criminosos.

Não é compatível com o Estado Democrático de Direito um Direito Penal que criminaliza a posse e o porte de armas sem respeitar os princípios da necessidade ou da economia do direito penal, da lesividade ou da ofensividade, da materialidade ou da exterioridade da ação e da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal. Pelo contrário, neste caso, se está diante de um modelo de Direito Penal Autoritário. Este modelo alcança a forma mais perversa de direito penal, que é o chamado tipo de autor, onde o tipo penal é simultaneamente “sem ação” e “sem ato ofensivo”.

Retrocesso é a infiltração, no nosso Direito, dos crimes de perigo abstrato, sendo o caso mais notável deste gênero o crime de porte de arma desmuniciada, cuja ofensividade não é maior do que a de um martelo. A criminalização do porte de arma desmuniciada implica uma inaceitável incoerência dogmática, pois se não é punível a tentativa manifesta de homicídio com uma arma descarregada, com base no artigo 17, do Código Penal, por ser considerado isto crime impossível, não poderia ser punido o simples porte, sem nenhum dolo de causar dano a outrem, pela simples razão que não é do bom direito punir o menos quando não se pune o mais.

A respeito dos crimes de perigo abstrato, aliás, eles deveriam ser todos considerados inconstitucionais, pois no âmbito do Direito Penal de um Estado Democrático de Direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado.

Não é possível concordar com a afirmação de que “A OAB é contra que advogados ganhem o direito de andar armados pelo fato de terem essa condição profissional.” Afinal de contas, foram consultados os profissionais inscritos sobre este tema? Sobre o assunto, os advogados estão melhor representados pelo colega Dr. Christian Mirkos Santos Pereira, que teve publicado no site da OAB/SC as razões porque advogados, assim como magistrados e membros do ministério público, fazem jus ao direito a porte de arma. Na realidade, todo cidadão de bem deveria ter assegurado seu direito de defesa, haja vista, apenas para ilustrar, que 19 das 50 cidades mais violentas do mundo estão no Brasil, e nosso país tem mais do que cinco vezes mais homicídios por 100 mil habitantes do que os Estados Unidos, que é considerado um paradigma de “cultura das armas”.

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Se o objetivo principal do Estatuto do Desarmamento era disseminar uma “cultura da paz”, até se poderia compreender o fato desta norma ser tão ineficaz em relação a aspectos práticos. Seria o caso de uma norma simbólica. Tal tipo de norma teria o propósito de dar uma mensagem sobre as intenções políticas do legislador, para satisfazer os anseios de uma parte da população ou para exercer uma função pedagógica, destacando determinados valores e sensibilizando a sociedade. No entanto, normas jurídicas, em especial as de natureza penal, devem regular as relações sociais e não fazer propaganda moral ou marketing político. Além disso, os 5% de brasileiros proprietários de armas legais não podem nem levar a pecha de seguidores da “cultura da guerra” nem ser responsabilizados pela violência que assola o país; pelo contrário, esses cidadãos raramente se envolvem em crimes relacionados às suas armas e não podem ser criminalizados para o fim de se impor uma filosofia de vida supostamente superior.

Em relação à intenção de reduzir a violência no país, é desnecessário repisar os estudos empíricos que já demonstraram que o Estatuto do Desarmamento não atingiu esse objetivo. Foram desarmadas as pessoas erradas e os homicídios, que ocorrem diuturnamente, têm causas em fatores que longe estão de ser enfrentados: é o fraco Estado de Direito brasileiro, que não assegura as expectativas normativas mínimas para uma sociedade estável; é o fato já apontado pela ONU de que os crimes não decorrem da disponibilidade de armas, mas do seu emprego pela criminalidade.

Não nos enganemos. Um povo que coloca a sua liberdade acima mesmo da paz é capaz de lutar para impedir que sua liberdade lhe seja tirada; um povo que queira colocar a paz acima de sua liberdade é bem capaz de abrir mão desta, em troca da promessa de segurança, para no final ficar sem nenhuma delas.

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Sobre o autor
Alex Menezes

Advogado e autor do livro "Do Direito do Cidadão de Possuir e Portar Armas".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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