Artigo Destaque dos editores

Afeto: o novo dogma do Direito da Família

Exibindo página 1 de 3
Leia nesta página:

A família no século XX sofreu transformações axiológicas, de maneira que cada integrante passou a ter seus direitos individualizados e protegidos pelo Estado, que passou a reconhecê-la como um instituto mantido por laços de afetividade.

INTRODUÇÃO

São vários os sentimentos que os seres humanos podem ter uns com os outros. Dentre estes, o amor é o principal sentimento capaz de motivar uma pessoa a conviver com outra, a dar assistência a seus filhos e, por fim, constituir uma família.

O amor, figurado como relações de afeto entre pessoas, é considerado como o principal elemento que originou a atual concepção de família.

A família passou por mudanças radicais no século XX. Estas mudanças tiveram como fruto a valorização do individualismo nos integrantes da família, fazendo com que antigas diretrizes sucumbissem com o advento do afeto no seio familiar.

A família contemporânea provocou a necessidade de transformações legais no Direito da Família, que, em consequência, originou novos princípios para orientá-la. Dentre estes princípios, há o princípio da afetividade, o qual tornou-se o principal fundamento de aferição das lides de família.

Para chegar a este entendimento, nada melhor do que conhecer a instituição da família contemporânea no Brasil e seus efeitos no ordenamento jurídico.


1. FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA E SUAS GARANTIAS LEGAIS

1.1 A FAMÍLIA NO SÉCULO XX

Singly (2007) divide a história da família contemporânea em dois períodos, primeira modernidade, do séc. XIX até o ano de 1960, e segunda modernidade, de 1960 em diante.

 Na primeira, a família se forma a partir de um casamento baseado no amor e o casal se voltava para os cuidados com a criança, envolvendo os aspectos afetivos, de saúde e de educação. A divisão do trabalho entre marido e mulher era clara: ele provia o lar e ela se incumbia da casa e dos filhos. Predominava a visão de que a família composta por pais casados e seus filhos eram famílias estruturadas enquanto as outra eram desestruturadas.

Apenas era considerada como família as uniões estabelecidas pelo do matrimônio. Isto ocorreu com a influência que a Igreja exerceu com o Direito Canônico, “ordenamento jurídico da Igreja católica Apostólica Romana [...] a denominação ‘canônico’ deriva da palavra kánon (regra, norma), com a qual originariamente se indicava qualquer prescrição relativa a fé ou à ação cristã [...]”( Wald, p.46).

Em consequência, apenas eram legítimas as uniões monogâmicas constituídas pelo casamento, instituto sacralizado pela igreja católica imprescindível para a criação da família. Desta maneira, o homem e a mulher apenas poderiam manter relações íntimas apenas com o fim de procriar e com apenas uma pessoa de sexo distinto, devendo a esta ser fiel até à dissolução do casamento, com a morte.

Quanto as uniões que fugiam à regra, não eram, portanto, consideradas como famílias. Desta maneira, as famílias poderiam ser consideradas formal e informal.

A família formal era a composta por união matrimonial e heterossexual junto com seus filhos. Nesta vigorava o sistema patriarcal, no qual o poder familiar se concentrava nas mãos do pai onde seu desejo prevalecia sobre a da mãe e de seus filhos. O homem, administrador do lar, era quem mantinha financeiramente a família, enquanto a mulher era quem cumpria os deveres domésticos e de criação dos filhos, cuja filiação apenas era reconhecida quando consanguínea.

Em relação à família informal, com o objetivo de elevar a família ao status divino, a igreja passou a se dedicar na luta com tudo que a pudesse pôr em risco. O que tornou as uniões livres, o aborto, o adultério, os filhos adulterinos e os relacionamentos homoafetivos como problemas sociais a serem combatidas ferozmente pela igreja por serem contrárias aos seus dogmas.

Em contrapartida, na segunda modernidade, o modelo anterior começa a ser combatido, por influências do feminismo e da lei do divórcio, e o trabalho assalariado feminino ganha importância na perspectiva de realização social as relações se fundamentam na felicidade individual.

Singly (2007) destaca que a partir dos anos sessenta, foram evidenciadas mudanças da família: diminuição no número de casamentos, aumento das uniões livres, aumento dos divórcios, das separações, crescimento de famílias monoparentais e de famílias recompostas, diminuição do número de nascimentos, aumento de nascimentos fora do casamento, aumento do trabalho assalariado das mulheres e aumento do número de casais inseridos no mercado de trabalho.

Roudinesco (2003) aponta que a concepção de família se transformou com o advento das novas ciências humanas, sociologia, antropologia e psicologia, introduzindo uma nova realidade estrutural aos sistemas de parentesco.

O processo de industrialização trouxe às mulheres a oportunidade de adentrar no ambiente de trabalho, até então de domínio exclusivo dos homens. Esta mudança propiciou a melhoria nas condições de vida, expansão do trabalho assalariado para ambos os sexos. O casamento se tornou um pacto consentindo onde prevalece uma vida afetiva no cotidiano familiar.

A valoração do filho também foi modificada. Este deixou ser uma coisa submissa à vontade de seus pais (Roudinesco, 2003) e tornou-se um integrante da família merecedor de educação, saúde e afeto. O privilegio entre irmão desaparece, e instala-se a preocupação da igualde entre irmãos, mesmo quando não forem do mesmo sangue.

Giddens (2007) aponta uma mudança nas relações em direção à busca de um “relacionamento puro”, não estando ligado ao sentido de pureza sexual, mas a um vínculo emocional próximo e continuado com outra pessoa, que teria como pressuposto a manutenção da relação enquanto estivessem satisfeitas as necessidades pessoais. A sexualidade, já desvinculada da reprodução, teria agora a qualidade de proporcionar a felicidade, numa perspectiva de amor e respeito.

Quanto à sexualidade, houve uma revolução também. Para alcance da felicidade as relações de afeto e as concepções de união também deveriam ser modificadas. A criação de métodos contraceptivos permitiu que o sexo não fosse mais considerado como um ato de procriação, mas sim, como um ato de afeto a ser praticado por duas pessoas que se amam. À mulher também foi permitido a escolha de quando engravidar e com quem quer te filho, tornando a autônoma para decidir sobre a própria vida. Em relação à família, além do exposto, os métodos contraceptivos permitiram o livre planejamento, desta forma, o casal poderia escolher quantos filhos quer de acordo com a situação financeira da família.

Em relação à identidade sexual, a buscas pela felicidade afetiva encorajou a pretensão de casais homossexuais a estabelecer uma união considerada como família. Giddens (2007, p. 197) aponta que o processo de emancipação sexual da sociedade levou a reconhecer que a “sexualidade normal”, até então atribuída à heterossexualidade, seja apenas uma escolha de vida, “ O reconhecimento de diversas tendências sexuais corresponde à aceitação de uma pluralidade de possíveis estilos de vida, o que vem a ser uma atitude política. ”

A qualificação da família contemporânea, em virtude da complexidade alcançada, é difícil. No entanto, Rodrigo da Cunha Pereira com sabias palavras, qualifica a família contemporânea:

A família é vista não como um bloco, mas um agrupamento de individualidades. E o que sustenta não é mais o patrimônio, mas sim o amor. Especificamente em alguns institutos jurídicos que eu considero que evoluíram, estão evoluindo e que tem muito ainda a amadurecer, que são notadamente a paternidade socioafetiva - que podemos ampliar a expressão para parentalidade socioafetiva -; a concepção de famílias formadas por pessoas do mesmo sexo; e também a idéia de famílias unipessoais, além da criação de novas expressões como relações homoafetivas, famílias binucleares, família pluriparentais, mosaicos... todas estas expressões são conseqüências e inovações dessas mudanças paradigmáticas. (2005 apud Antunes, 2010, p. 31).

Destarte, a família contemporânea se tornou “individualista”. Para Singly (2007, p.35), “ a família moderna é uma instituição na qual os membros têm uma individualidade maior dos que nas famílias existentes anteriormente”. Todas as pessoas que constituem a família possuem liberdade de pensar, tendem a procurar a satisfação no ambiente familiar, se preocupa com os outros integrantes da família e os respeita.

1.2 DIREITO DA FAMÍLIA E SEUS AVANÇOS

1.2.1 EVOLUÇÃO LEGAL DA FAMÍLIA ANTES DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Código Civil de 1916 é lembrado como patrimonialista e discriminatório pois, conforme exposto anteriormente no início do século XX, prevalecia a influência do Direito Canônico que interferia em nossa cultura e ordenamento jurídico.

Fachin (2003), afirma que ser sujeito de direito significava ser “sujeito de patrimônio”, ou seja, ter muitos bens. Valoriza mais o “ter” do que o “ser” e direcionava-se aos grandes proprietários. Sendo assim, não foram codificados institutos que a sociedade da época não dava importância, como o modo de apropriação de bens e a vida em comunhão.

Àquela época, para ser legítima, a família teria que ser constituída através casamento, sua dissolução ocorria apenas com a morte, vigorava o sistema patriarcal, capacidade da mulher era relativa e os vínculos extramatrimoniais, como também os filhos ilegítimos, não recebiam a tutela protetiva do Estado.

Prova disso é a presença de dispositivos que designava o marido como o único chefe da sociedade conjugal[1] e a função de colaboradora dos encargos familiares a mulher.[2]

Quanto a filiação, havia a clara distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos, naturais e adotivos no meio familiar e sucessório. De tal maneira, o filho ilegítimo reconhecido por um cônjuge apenas poderia viver no mesmo teto que este com o consentimento do outro cônjuge[3] e os filhos adotados não participava da sucessão hereditária.[4]

A guarda foi outro instituto que carregou os ideais conservadores àqueles que não respeitavam as diretrizes matrimoniais. A culpa era o elemento norteador que definia o cônjuge sucumbente. Maria Berenice Dias (2011, p. 439) enfatiza:

Para a identificação da guarda, identificava-se o cônjuge culpado, não ficava ele com os filhos. Eram entregues como prêmio, verdadeira recompensa ao cônjuge “inocente”, punindo-se o culpado pela separação com a pena da perda da guarda da prole.

Felizmente, com o passar do tempo, aos poucos o legislador passou a dar atenção as mudanças sociais que ocorreram na metade do século XX, e passou a legislar em favor destes.

Em 1949 entrou em vigor a Lei n° 883, que trata sobre o reconhecimento de filhos ilegítimos. A lei permitiu o reconhecimento dos filhos através de ação de reconhecimento de filiação, possibilitando o pedido de alimentos provisionais e inclusive o direito à herança, o que gerou a igualdade de direitos entre os filhos independente da natureza da filiação.

Em relação a mulher e seus direitos na família, em 1962, foi publicada a Lei n° 4.121, o Estatuto da Mulher Casada, que versava sobre a situação jurídica da mulher casada. Este devolveu a plena capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a propriedade exclusiva com os bens adquiridos com o seu trabalho.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Quanto ao casamento, houve um avanço importante no que concerne ao instituto do matrimônio e seu sacramento. Em 1977, o divórcio virou realidade no Brasil através da EC 9/77 e da Lei 6.515/77. A primeira terminou com a indissolubilidade do casamento, extinguindo a ideia da família como instituição sacralizada (Dias, 2011, p.30), e a segunda viabilizou o divórcio, desde completados 5 anos da separação de fato, concedeu à mulher o direito de optar ou não pelo uso do nome de família do seu cônjuge e a comunhão parcial de bens status de regime legal.

Outra novidade foi a Lei n° 6.697/79, que regulou a assistência proteção e vigilância de menores, denominada como Código de Menores. Com essa lei, foi criada a adoção plena, reconhecendo os direitos sucessórios ao adotado, deferindo a este a metade dos bens que cabe ao filho legítimo.

Verifica-se que, pela metade do século, o estado passou a reconhecer, diante das variedades de fatos intocados pelo estado, direitos em favor de uma parcela grande da população que necessitava de assistência, qual seja a mulher e o filho. Embora fossem poucas as mudanças legislativas na época, estas representaram o início para formar um ideal mais liberal e protetivo do estado, que se constituirá com a Constituição de 1988.

1.2.2 A FAMÍLIA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a vigente Constituição Federal, o texto supremo que até então disciplina os princípios, direito e garantias fundamentais em nossa República, quais sejam a proteção dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade solidária e a igualdade entre as pessoas a serem aplicados no âmbito familiar.

Na segunda metade do século XX, em virtude da individualização dos integrantes na família contemporânea que ocorreu, o constituinte decidiu modificar antigos ideais normativos no que se refere à família, de forma que, nas palavras de Veloso (1999), num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito.

O dito dispositivo é o Art. 226 do Capítulo VII - Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. 

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Destarte, passaram a ser consideradas como família, além das uniões firmadas com o casamento, a união estável e a família monoparental.

Sendo união estável, a comunhão de vida entre duas pessoas com a intensão pública e notória de constituir uma família fora do regime matrimonial, e família monoparental, “ O enlaçamento dos vínculos familiares constituídos por um dos genitores com seus filhos [...]” (Dias, 2011, p. 48).

Em relação ao antigo sistema patriarcal e a indissolubilidade do casamento, estes ficaram de lado com a constitucionalização do dever igualitário entre o homem e a mulher na sociedade conjugal e do divórcio, no qual não é mais necessário haver separação antes do divórcio.

Quanto aos menores de idade, estes ganharam atenção constitucional no que se refere à sua proteção e filiação. A CF/88, em seu Art. 227, caput, responsabiliza a família, a sociedade e o Estado com o dever de assegurar àqueles o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Estas garantias foram posteriormente regulamentadas pelo Estatuto da Criança e Adolescente, Lei n° 8.069/90.

No que tange à filiação, a Carta Magna deixa bem claro que não há diferença entre os filhos, havidos ou não no casamento, ou por adoção, de forma que ambos possuem os mesmos direitos.[5]

Os idosos também não ficaram de fora e receberam especial proteção do Estado. Nos artigos 229 e 230, respectivamente, aos filhos maiores foram impostos o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade, e para a família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, ao idoso, a participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar, bem como garantindo o direito à vida. Para regularizar estas garantidos, foi editado a Lei 10.741/2003, o Estatuto do Idoso.

A constitucionalização da família foi um feito muito importante, pois permitiu que as referidas garantias sejam aplicadas de imediato no âmbito social e jurídico. A lei maior demonstra que os princípios do direito das famílias foram se modificando de acordo com a evolução social da família, de forma que novos princípios emergiram para orientar judicialmente o instituto da família, sendo o principal destes o Princípio da Afetividade.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Lima e Leitão Advocacia e Consultoria

Graduado em Direito pela Universidade da Amazônia. Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Lima Leitão Advocacia Consultoria. Afeto: o novo dogma do Direito da Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4586, 21 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45907. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos