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Afeto: o novo dogma do Direito da Família

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2. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E SUA EFICÁCIA JURÍDICA

2.1 NOÇÕES DE PRINCÍPIO

Para Reale (2002, p. 303), “os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis”. Portanto, os princípios são elementos abstratos, fruto da experiência científica, histórico, social ou jurídica, com a função de orientar o caminho para a prática.

No direito, os princípios cumprem a função de orientar a incorporação das exigências de justiça e de valores éticos que constituem o suporte axiológico, conferindo coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. Desta forma, os princípios encontram-se hierarquicamente acima das regras, pois estas devem ser regidas por aqueles.[6]

Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, o constituinte teve que fazer um levantamento da experiência histórica brasileira e internacional através do direito comparado, de forma que a nova Carta Magna acompanhasse o desenvolvimento social, científico, filosófico e histórico de todas as instituições que esta posteriormente iria reger, o que levou à criação de princípios constitucionais.

Os princípios constitucionais dispõem de primazia diante da lei, sendo a primeira regra a ser invocada em qualquer processo hermenêutico, tornaram-se a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do direito e para a elaboração de leis infraconstitucionais.

Além dos princípios constitucionais, há os princípios gerais de direito, enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Esta função orientadora é notada no Art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil, ao disciplinar que quando a norma jurídica for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (Reale, 2002, p. 304). Sendo assim, na prática, o juiz jamais poderá se eximir da sua função resolutiva pois, na dúvida ou na falta, os princípios sempre estarão presentes para socorre-lo.

Na CF/88, para a construção dos princípios gerais do direito, são extraídos os princípios constitucionais explícitos[7] e implícitos. Sendo estes últimos extraídos através de um processo de indução e abstração pela doutrina e jurisprudência, o que acabou por originar o princípio da afetividade.

2.2 AFETIVIDADE E SEU CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS

O afeto é o laço abstrato que vinculam as pessoas em razão da comunhão de vários sentimentos. Sentimentos de amor, de felicidade, de proteção, dentre outros que originam a vontade de uma pessoa querer sempre estar junto a outra, de querer manter uma união a fim de conviverem entre si.

Tomado como o princípio norteador do direito da família (Dias, 2011, p. 69), embora não tenha sido citado pelo Direito Pátrio como princípio ou fundamento, as conquistas alcançadas pela família, no que se refere à constitucionalização da união estável, da igualdade de filiação independente de sua origem, do dever de amparo e auxílio ao filho e ao idoso pelos familiares, por fim, da dignidade da pessoa humana, demonstrando a intensão do constituinte a elevar a afetividade em princípio jurídico.

O princípio da afetividade é o símbolo de reconhecimento da família contemporânea, esta que segue um modelo eudemonista[8] e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual (Carbonera, 1999). Desta feita, o princípio da afetividade é importantíssimo, pois quebra paradigmas, trazendo a concepção da família de acordo com o meio social (Tartuce, 2006, p. 11).

Entretanto, o problema do conflito de princípios dificulta os efeitos do princípio da afetividade. Não há hierarquia entre princípios, e muitas vezes sobre o mesmo caso, mais de um são aplicáveis. É o que ocorre constantemente com o conflito entre o princípio da afetividade e os princípios da monogamia e da legalidade.

O Princípio da Monogamia proíbe o matrimônio com mais de uma pessoa e determina que haja fidelidade recíproca do homem com a esposa e vice-versa. Dessa forma, é imposto que todas as relações de afeto, comunhão, carnais, de deveres e obrigações sejam realizadas com apenas um cônjuge.

No ordenamento jurídico brasileiro, o preceito monogâmico influenciou o Estado a considerar a bigamia como crime[9], da mesma forma, o Código Civil de 2002, impede o casamento de mais de duas pessoas[10], anula a doação feita pelo adúltero a seu cúmplice[11], a infidelidade servia de fundamento para ação de separação[12] e às uniões paralelas, ou concubinas, não eram emprestados efeitos jurídicos[13].

Embora não esteja explícito pela norma, era considerado como dogma no direito da família no período em que o Estado determinava que a família apenas poderia ser constituída através do casamento. Hoje, este princípio não passa de um sistema de regras morais que vem perdendo a força com o passar do tempo.

Já o princípio da legalidade, diferente do princípio da monogamia, encontra-se explícito em nossa Carta Magna ao disciplinar que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Art. 5°, II). Desta maneira, presume-se estar em lei todos os fundamentos e garantias sociais em nosso ordenamento jurídico, que devem ser seguidos por todos os cidadãos e utilizada como fonte de direito pelos juízes.

Entretanto, diante de omissões e inconstitucionalidades na norma, esta acaba por se tornar objeto de conflito entre princípios. É o que ocorre, por exemplo, com a não regularização da união homoafetiva no Código Civil, ou quanto à diferenciação entre a sucessão do casamento e união estável, tornando uma mais benéfica que a outra quando a constituição fixa a isonomia entre os dois institutos.

Para a resolução destes conflitos, é imperioso buscar auxílio junto ao princípio da razoabilidade. Quando dois princípios incidem sobre determinado fato, o conflito é solucionado levando-se em consideração o peso relativo de cada um. E se ao final, não for possível alcançar a solução, outro princípio emergirá, o da dignidade da pessoa humana (Dias, 2011, p. 59).

2.3 A EFICÁCIA DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE.

Para verificar a eficácia do princípio em contexto, imperioso é estudar as decisões dos tribunais.

A chamada “adoção à brasileira” ocorre quando o companheiro “adota” o filho da companheira registrando-o como se fosse seu descendente. Tal ato caracteriza a filiação socioafetiva, por não diferenciar a filiação biológica pela afetiva, e é irreversível por ser constituído através de registro público, salvo ser houver vício de consentimento[14]. É o que ocorre no seguinte caso julgado:

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. A chamada "adoção à brasileira", muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico vulgar sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva consistente no término do relacionamento com a genitora. 2. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 3. No caso, ficou claro que o autor reconheceu a paternidade do recorrido voluntariamente, mesmo sabendo que não era seu filho biológico, e desse reconhecimento estabeleceu-se vínculo afetivo que só cessou com o término da relação com a genitora da criança reconhecida. De tudo que consta nas decisões anteriormente proferidas, dessume-se que o autor, imbuído de propósito manifestamente nobre na origem, por ocasião do registro de nascimento, pretende negá-lo agora, por razões patrimoniais declaradas. 4. Com efeito, tal providência ofende, na letra e no espírito, o art. 1.604 do Código Civil, segundo o qual não se pode "vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro", do que efetivamente não se cuida no caso em apreço. Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. 5. A a manutenção do registro de nascimento não retira da criança o direito de buscar sua identidade biológica e de ter, em seus assentos civis, o nome do verdadeiro pai. É sempre possível o desfazimento da adoção à brasileira mesmo nos casos de vínculo socioafetivo, se assim decidir o menor por ocasião da maioridade; assim como não decai seu direito de buscar a identidade biológica em qualquer caso, mesmo na hipótese de adoção regular. Precedentes. 6. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1352529 SP 2012/0211809-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 24/02/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/04/2015)

No que se refere à guarda, a jurisprudência já decidiu que, no sentido de observar o melhor interesse da criança no que ser refere à assistência material e afetiva, é possível a concessão de guarda de menor aos avós, provando que o instituto não se limita apenas aos genitores:

DIREITO DE FAMÍLIA. GUARDA DE MENOR PLEITEADA POR AVÓS. POSSIBILIDADE. PREVALÊNCIA ABSOLUTA DO INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE OBSERVADA. 1. É sólido o entendimento segundo qual mesmo para fins de prequestionamento, a oposição de embargos de declaração não prescinde de demonstração da existência de uma das causas listadas no art. 535 do CPC, inocorrentes, no caso. 2. No caso em exame, não se trata de pedido de guarda unicamente para fins previdenciários, que é repudiada pela jurisprudência. Ao reverso, o pedido de guarda visa à regularização de situação de fato consolidada desde o nascimento do infante (16.01.1991), situação essa qualificada pela assistência material e afetiva prestada pelos avós, como se pais fossem. Nesse passo, conforme delineado no acórdão recorrido, verifica-se uma convivência entre os autores e o menor perfeitamente apta a assegurar o seu bem estar físico e espiritual, não havendo, por outro lado, nenhum fato que sirva de empecilho ao seu pleno desenvolvimento psicológico e social. 3. Em casos como o dos autos, em que os avós pleiteiam a regularização de uma situação de fato, não se tratando de “guarda previdenciária”, o Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser aplicado tendo em vista mais os princípios protetivos dos interesses da criança. Notadamente porque o art. 33 está localizado em seção intitulada “Da Família Substituta”, e, diante da expansão conceitual que hoje se opera sobre o termo “família”, não se pode afirmar que, no caso dos autos, há, verdadeiramente, uma substituição familiar. 4. O que deve balizar o conceito de “família” é, sobretudo, o princípio da afetividade, que “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”. (STJ , Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 15/09/2009, T4 - QUARTA TURMA)

O princípio da afetividade vai além da área cível. O Estatuto da Criança e do Adolescente sofreu recente reforma, através da Lei 12.962/2014, para incluir a garantia de visitas periódicas ao pai ou mãe presos, independentemente de autorização judicial[15]. Desta forma, com o objetivo de garantir a convivência familiar entre a apenada e o filho com o filho, foi decidida que aquela não fosse transferida para outro presídio:

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AGRAVO EM EXECUÇÃO. TRANSFERÊNCIA DE PRESÍDIO. DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR. Ainda que o direito de visita ao preso não seja absoluto, deve ser considerada a importância da convivência entre pais e filhos, a fim de concretizar o princípio da afetividade, seja para desenvolvimento da criança, bem como para facilitar a ressocialização da condenada. Embora a transferência ou a permanência de presos dependam da conveniência da Administração Pública, no caso, não há demonstrativos de que a medida adotada pelo Juízo singular seja imprescindível para manutenção da segurança no estabelecimento prisional. Assim, em juízo de ponderação, mais razoável a permanência da agravante na casa prisional em que cumpre pena, a fim de evitar obstaculização ao direito da infante de conviver com sua genitora, mormente a considerar que se trata de prisão cautelar. AGRAVO PROVIDO. POR MAIORIA. (Agravo Nº 70064864432, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 24/06/2015).

Caso interessante que faz referência à existência de uniões paralelas, ou seja, comunhão de vida existente com duas pessoas com o objetivo de constituir família. Na presença de duas ou mais uniões estáveis constituídas em períodos diferentes, sem saber se há prevalência entre elas, cabe a divisão do acervo patrimonial adquirido na constância do convívio em partes iguais, o que resultado no que o desembargador Rui Portanova denomina de “triação”. O seguinte julgado demonstra a possibilidade de efeito proporcional entre o princípio da afetividade e monogamia:

APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. PARTILHA. "TRIAÇÃO". ALIMENTOS PARA EX-COMPANHEIRA E PARA O FILHO COMUM. Viável reconhecer união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que restou cabalmente demonstrada a existência de união estável entre as partes, consubstanciada em contrato particular assinado pelos companheiros e por 03 testemunhas; e ratificada pela existência de filho comum, por inúmeras fotografias do casal junto ao longo dos anos, por bilhetes e mensagens trocadas, por existência de patrimônio e conta bancária conjunta, tudo a demonstrar relação pública, contínua e duradoura, com claro e inequívoco intento de constituir famílias e vida em comum. Reconhecimento de união dúplice que impõe partilha de bens na forma de "triação", em sede de liquidação de sentença, com a participação obrigatória da esposa formal. Precedente jurisprudenciais. Ex- companheira que está afastada há muitos anos do mercado de trabalho, e que tem evidente dependência econômica, inclusive com reconhecimento expresso disso no contrato particular de união estável firmado entra as partes. De rigor a fixação de alimentos em prol dela. Adequado o valor fixado a título de alimentos em prol do filho comum, porquanto não comprovada a alegada impossibilidade econômica do alimentante, que inclusive apresenta evidentes sinais exteriores de riqueza. Apelo do réu desprovido. Apelo da autora provido. Em monocrática (TJ-RS - AC: 70039284542 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 23/12/2010, Oitava Câmara Cível).

O afeto também prevaleceu no julgamento do Recurso Especial n° Nº. 1.183.378/RS, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão. A decisão foi um divisor de águas ao possibilitar a habilitação para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, fundamentando-a com a atual concepção de família, restando definitivamente superada a questão quanto à possibilidade de reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.[16]

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Sobre o autor
Lima e Leitão Advocacia e Consultoria

Graduado em Direito pela Universidade da Amazônia. Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Lima Leitão Advocacia Consultoria. Afeto: o novo dogma do Direito da Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4586, 21 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45907. Acesso em: 24 abr. 2024.

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