Artigo Destaque dos editores

Um caso em que a interpretação deve ser restrita

20/01/2016 às 07:38
Leia nesta página:

A defesa de Cunha apresentou pedido fundado em mera expectativa de direito. Analisaremos, neste texto, a pertinência da demanda segundo a melhor doutrina e jurisprudência.

A defesa do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), solicitou ao STF (Supremo Tribunal Federal) que paralise o andamento de um dos inquéritos abertos em decorrência da Operação Lava Jato até que o parlamentar deixe o comando da Casa. Seu mandato na presidência vai até fevereiro de 2017.

O pedido tem 107 páginas e foi protocolado no último dia 18 de dezembro no inquérito que tramita sob segredo de Justiça com a relatoria do ministro Teori Zavascki.

Os advogados de Cunha pedem ao Supremo que aplique "por analogia" o parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição, segundo o qual, o ocupante do cargo de presidente da República não pode ser responsabilizado, na vigência de seu mandato, por atos estranhos ao exercício de suas funções. Os advogados citam que Cunha é "o terceiro na linha da sucessão presidencial, na hipótese de impedimento ou vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República".

Em denúncia protocolada em agosto passado, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, acusa Cunha de ter recebido US$ 5 milhões em propina após o fechamento de contratos entre a Petrobras e a empresa coreana Samsung Heavy Industries para fornecimento de navios-sondas.

Segundo a denúncia da PGR, as irregularidades no contrato ocorreram entre 2006 e 2007, e os pagamentos a Cunha foram feitos a partir de 2011. Cunha assumiu a presidência da Câmara em fevereiro de 2015.

Além de solicitar a suspensão das investigações, os advogados de Cunha também pedem ao STF que não autorize o uso, no inquérito, de nenhuma prova coletada na Operação Catilinárias, deflagrada pela PGR e pela Polícia Federal no dia 15 de dezembro, "sob pena de nulidade". Eles alegam suposta "violação ao devido processo legal", pois as buscas e apreensões teriam sido desencadeadas "no curso do prazo para a sua defesa [de Cunha]" no STF.

Os advogados também solicitam que seja reconhecida a nulidade dos depoimentos complementares prestados pelo executivo Julio Camargo, que acusou Cunha de receber propinas após tê-lo eximido de responsabilidade, em seus primeiros depoimentos prestados no acordo de delação premiada. Pedem, também, que seja anulado um termo de acareação entre Camargo e o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa.

Ora, o Presidente da Câmara dos Deputados não tem os direitos e prerrogativas próprias do Presidente da República, mas, sim, uma verdadeira expectativa de direito a eles. É o segundo na ordem de sucessão do Presidente da República, e é, acima de tudo, um parlamentar que tem foro privativo de julgamento no Supremo Tribunal Federal pelos crimes que vier a praticar, à luz do artigo 102, I, b,  da Constituição Federal.

As meras expectativas são as esperanças de aquisição de um direito fundado em norma vigente e ainda não convertidas em direito por falta de algum dos requisitos objetivos.

O Presidente da Câmara dos Deputados não é Chefe de Estado e de governo. Essas prerrogativas são inerentes ao Presidente da República e só a ele devem ser aplicadas.

Dir-se-á que a matéria constitui-se em prerrogativa por parte do Presidente da República.

As prerrogativas não são privilégios.

São atributos do órgão ou do agente público, inerentes ao cargo ou à função que desempenha na estrutura da organização administrativa, como revelou Hely Lopes Meirelles (Justitia, 123:188, n. 17). As prerrogativas dizem respeito ao cargo, enquanto as garantias, por outro lado, são da pessoa, do órgão, do oficio, da instituição.

A norma prevista no artigo 86, §4º, da Constituição Federal, como norma de ordem pública, deve ter uma intepretação restrita. Afinal, como se tem das lições de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito), as normas de ordem pública têm aplicação restrita.

O intérprete deve eliminar a amplitude das palavras.

Nessa linha de pensar, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 305/QO, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 18 de dezembro de 1992, acentuou que o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao Presidente da República, exclui-o, durante a vigência de seu mandato – e por atos estranhos a seu exercício -, da possibilidade de ser ele submetido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado.

Sendo assim, a cláusula de exclusão inscrita no preceito constitucional, no artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição Federal, ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judicial, alcança as infrações penais comuns praticadas em momento anterior ao da investidura no cargo de Chefe do Poder Executivo da União, bem assim aqueles praticados durante a vigência do mandato, desde que estranhas ao oficio presidencial. Será hipótese de imunidade processual temporária.

Ficou acentuado que a norma constitucional, consubstanciada no artigo 86, § 4º, reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese restrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.

Como conclusão, tem-se que a Constituição, no artigo 86, § 4º, não consagrou o princípio da irresponsabilidade penal absoluta do Presidente da República. O Chefe de Estado, nos delitos penais praticados ¨in officio¨ ou cometidos ¨propter officium¨, poderá, ainda que vigente o mandato presidencial, sofrer a ¨persecutio criminis¨, desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câmara dos Deputados.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Tal se dá em decorrência do princípio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.

Em posição que merece ser considerada como atual, Paulino Ignácio Jacques (Curso de direito constitucional, 7ª edição, Rio de Janeiro, pág. 254) concluiu que vigorava, em tema de crime de responsabilidade, impeachment, a tese de que, se a causa do processo não deixa de ser puramente política, o meio – o processo e julgamento – e o fim – a pena – são tipicamente criminais, uma vez que o Presidente da República sofre a imposição de uma pena (perda do cargo, com incapacidade para exercer outro, ou sem ela). Adotamos a tese do impeachment europeu, um processo misto (político-criminal), como notaram Duguit, Esmein, Bryce e Tocqueville, dentre outros, ao passo que o impeachment americano só inflige pena administrativa, pois há um processo meramente político.

Salvo melhor juízo, será caso, pois, de ser indeferido o pedido da defesa de Cunha, uma vez que o fundamento constitucional pronunciado não se aplica ao caso em discussão. 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um caso em que a interpretação deve ser restrita. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4585, 20 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45938. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos