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A remessa necessária no novo CPC

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08/03/2016 às 11:23
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O reexame necessário incorporou novos elementos, como a possibilidade de sua não ocorrência todas as vezes em que na matéria houver um posicionamento oficial do seu órgão de consultoria jurídica, dando um destaque maior às decisões das procuradorias.

Resumo: visa o presente artigo estudar uma nova conceituação processual para a remessa necessária no CPC/15, bem como estudar as suas origens, analisar as suas principais inovações e disciplinar o conflito de leis no tempo.


1 – INTRODUÇÃO 

O novo CPC trouxe inúmeras mudanças significativas no processo civil brasileiro, indo muito além do que uma simples atualização legislativa – não seria ousado dizer que há uma mudança estrutural no processo brasileiro. Questões relativas aos IRDR (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas), alterações no sistema recursal, inclusão de novos tipos de tutela (urgência e evidência), dentre outros, mostram que o novo CPC emprestará uma nova alma ao sistema jurisdicional brasileiro.

A remessa necessária foi um dos institutos repaginados pelo novo Código. Na doutrina, ela possui vários sinônimos, como reexame necessário, apelação ou remessa ex officio, duplo grau de jurisdição obrigatório, dentre outros. No CPC/15, seu nome oficial é remessa necessária.

Na reforma, foi-se discutido inclusive a sua exclusão do sistema processual. Entretanto, como diria Tobias Barreto, “o direito não é filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade”. E, como tal, deve ser interpretada a reforma do reexame necessário, destacando-se ab initio a alteração dos valores de seu piso a patamares bem superiores aos valores que se encontravam no então vigente art. 475 do CPC/73.

De outro turno, o reexame necessário incorporou novos elementos, como a possibilidade de sua não ocorrência todas as vezes em que na matéria houver um posicionamento oficial de seu órgão de consultoria jurídica, dando um destaque maior às decisões das procuradorias.

Adiante vamos tecer algumas considerações sobre os principais pontos da reforma.


2 – ASPECTOS RELEVANTES EM TORNO DA IDEIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Algumas considerações prévias se fazem necessárias, antes de se adentrar com profundidade na reforma processual.

Para um melhor estudo da matéria, precisamos saber qual a conceituação do que venha a ser duplo grau de jurisdição, pois desta premissa é que parte o resto do trabalho, onde iremos centrá-lo no duplo grau de jurisdição obrigatório.

Por grau de jurisdição, conceito normalmente não analisado pelos processualistas, devemos entender todo o esforço e poder de investigação que são outorgados constitucionalmente ao Poder Judiciário para o julgamento de uma causa na sua acepção mais ampla.

A Constituição Federal, em quatro incisos do artigo 5º, outorga algumas diretrizes onde será realizado o grau de jurisdição. São eles:

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. 

Assim, ocorrerá um grau de jurisdição toda vez que o juiz for competente, houver um devido processo legal que oferte aos acusados o contraditório e a ampla defesa e com provas obtidas através de meios lícitos.

Logo, conclui-se que ocorrerá um grau de jurisdição toda vez que o órgão dotado de competência constitucional para a análise da causa puder analisar as matérias pertinentes a direito e fatos.

Por sua vez, o artigo 108 da Constituição traz a seguinte regra:

Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:

(...)

II - julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.

Apesar da regra constitucional prever apenas institucionalização do duplo grau para os tribunais federais, em nome do princípio da simetria o constituinte estadual deve “seguir fielmente as opções de organização e de relacionamento entre os poderes acolhidas pelo constituinte federal” (MENDES : 2008, p. 814). Noutras palavras, as constituições estaduais devem prever a mesma regra.

O segundo grau de jurisdição já parte de uma restrição, de regra, da análise da situação fática do processo, posto que receberão os fatos arrecadados e analisados pelo juiz de primeiro grau para, em segundo grau de jurisdição, analisá-los novamente e aplicar o direito que entenderem ser o mais acertado. São raras as vezes em que o tribunal determina a realização de novas provas e anula o julgamento a quo.

Este segundo grau de jurisdição nem sempre ocorrerá no processo brasileiro, mesmo no CPC/15. Cito, como exemplos, os casos dos mandados de segurança de competência original de tribunais julgados procedentes ou os casos dos recursos extraordinários lato sensu. Partindo-se do pressuposto que o segundo grau de jurisdição tem sempre que reanalisar matéria de fato e de direito, sob pena de não se celebrar uma jurisdição completa, não haverá segundo grau nestas hipóteses; haverá, isto sim, uma instância superior, extraordinária, de análise unicamente do direito. No processo civil, não existe terceira instância ou terceiro grau de jurisdição, coisa que de forma explícita os Tribunais Superiores refutam[1].

A remessa necessária consiste em uma espécie de duplo grau de jurisdição obrigatório em casos específicos.


3 – AS ORIGENS DA REMESSA NECESSÁRIA 

As origens da remessa necessária advém do direito português. Segundo lições da abalizada doutrina (CUNHA : 2015, p. 124),

O estudo histórico do reexame necessário – originariamente denominado recurso de ofício – denota seu surgimento no Direito Medieval ostentando matizes mais fortes e acentuados em Portugal, mais especificamente no processo penal, como uma proteção ao réu, condenado à pena de morte. Nas Ordenações Afonsinas, o recurso de ofício era interposto, pelo próprio juiz, contra as sentenças que julgavam crimes de natureza pública ou cuja apuração se iniciasse por devassa, tendo como finalidade corrigir o rigor do princípio dominante e os exageros introduzidos no processo inquisitório.

Para Nelson Nery Jr, “no direito brasileiro, a primeira notícia que se tem da ‘apelação ex officio’ parece haver surgido com a Lei de 4.10.1831, art. 90, que determinava ao juiz a remessa necessária ao tribunal superior de sua sentença proferida contra a Fazenda Nacional. O CPC/1939 822 manteve o instituto” (NERY JR : 2014, p. 91).

No CPC de 73, em sua redação originária houve a preocupação cultural com a manutenção do casamento – algo para a época sagrado e de vínculo indissociável (apenas pela morte), afirmando que era caso de reexame necessário a sentença que declarasse a nulidade do casamento. Assim, ao invés dos processos de divórcio atuais, tentava-se buscar as anulações de casamento, o que devolvia os cônjuges para a condição de solteiros. Como isso “agredia” o senso comum/religioso dos parlamentares da época, a sentença que declarasse a nulidade do casamento teria que, obrigatoriamente, ser submetida a reexame necessário.

Tal dispositivo perdeu sua razão de ser com o advento do desquite anos depois, até que veio a ser totalmente retirado do CPC/73 em 2001 por desuso. Permaneceu, entretanto, a remessa necessária nas hipóteses em que a Fazenda Pública fosse condenada.

Neste mesmo ano, tivemos a primeira grande reforma da remessa necessária. Como forma de evitar que os tribunais tivessem que julgar toda e qualquer sentença proferida contra a Fazenda Pública, criou-se duas situações em que a mesma não ocorreria:

a)     na primeira hipótese, estipulou-se um piso de 60 salários mínimos para que o reexame ocorresse. Tal piso seria calculado sobre a condenação proferida contra a Fazenda Pública;

b)    na segunda hipótese, criou-se uma regra de flexibilização de acordo com o fundamento utilizado na sentença. Todas as vezes em que a sentença se fundasse em jurisprudência do plenário do STF, suas súmulas ou súmulas de Tribunal Superior o reexame não ocorreria.

Posteriormente, o CPC/15 trouxe novas evoluções para a remessa necessária, incluindo novos patamares de pisos para que o mesmo ocorra, desafogando as pautas dos tribunais, bem como erigindo outros paradigmas para que a remessa necessária não ocorra quando há alto grau de certeza jurídica na sentença proferida contra a Fazenda Pública.


4 – NATUREZA JURÍDICA DA REMESSA NECESSÁRIA 

Celeuma antiga no direito processual brasileiro era saber qual era a natureza jurídica do reexame necessário: se era classificado como recurso ou condição de eficácia da sentença. Essa discussão ainda persiste no CPC/15.

4.1 – A remessa necessária como “recurso” 

Vários doutrinadores encaram a remessa necessária como sendo um recurso interposto pelo próprio juiz da causa. Para Fred Didier e Leonardo Carneiro da Cunha (CUNHA : 2015, p. 129-130),

Na maioria dos países, os recursos caracterizam-se por conter (a) provocação ao reexame da matéria e (b) impugnação da decisão recorrida. Pode-se dizer que, no Brasil, a definição de recurso só pode apegar-se a (a) e não a (a) + (b), pois a remessa necessária é recurso não impugnativo: o juiz recorre oficiosamente da própria sentença, provocando-lhe o exame sem contra ela insurgir-se.

No CPC de 39, era nominada de “apelação ex officio” e tinha ainda várias semelhanças com os recursos cíveis. Estas consequências e semelhanças continuaram no CPC/73 e persistem ainda no CPC/15. Como o recurso de apelação cível, a remessa necessária possui as seguintes características em comum:

a)     processamento: seu processamento nos tribunais é o mesmo da apelação cível normal; 

b)    efeito devolutivo: a condenação, in totum, é devolvida para a apreciação do tribunal competente, independentemente de haver recurso de apelação cível e de sua extensão;

c)     efeito translativo: no julgamento de uma apelação cível, o tribunal está autorizado a analisar as questões de ordem pública incidentes na causa, mesmo que não tenham sido arguidas pelas partes, quer seja na apelação ou nas contrarrazões. Adaptada a situação para a remessa necessária, o tribunal está autorizado a analisar questões de ordem pública não arguidas pelas partes no curso do processo[2]. 

d)    efeito suspensivo: uma vez incidindo a regra do reexame necessário, a causa não rende ensejo à execução provisória, tendo efeitos semelhantes ao recurso de apelação cível do julgado de primeiro grau;

e)     efeito substitutivo: o acórdão do Tribunal substituiria a decisão do juízo de primeiro grau, mesmo que o fosse pela confirmação do julgamento a quo. 

4.2 – Remessa necessária como condição de eficácia de uma decisão proferida contra a Fazenda Pública

A doutrina majoritária concorda que o reexame necessário não é um recurso. Para Teresa Arruda Alvim Wambier, “não se trata, aqui, de recurso, mas de condição de eficácia da sentença e para que se opere o trânsito em julgado. Falta-lhe a característica, típica dos recursos, que é a voluntariedade” (WAMBIER : 2015, p. 808).

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Segundo Nelson Nery Jr, mais preciso, “Faltam-lhe a voluntariedade, a tipicidade, a dialeticidade, o interesse em recorrer, a legitimidade, a tempestividade e o preparo, características e pressupostos de admissibilidade dos recursos” (NERY JR : 2014, p. 91).

No que tange especificamente quanto ao preparo, este seria incabível de ser exigido contra a Fazenda Pública, pois ela está dispensada do pagamento das custas judiciais. Acresço às razões expostas por Nelson Nery Jr a ausência do contraditório (contrarrazões) na remessa necessária.

Assim, em suma, a remessa necessária não pode ser considerada recurso por:

a)     inexistência de voluntariedade: de fato, não existe a voluntariedade porque não é a Fazenda Pública quem recorre: é o próprio juiz quem determina a subida do processo e o faz de forma independente de qualquer requerimento das partes, sob pena de avocação por parte do Presidente do Tribunal;

b)    faltar-lhe tipicidade, não por inexistência de lei federal prevendo a sua existência – posto que está regrado no art. 496 do CPC/15 - mas por não estar previsto em lei federal como recurso;

c)     faltar-lhe interesse em recorrer: nas vezes em que a própria Fazenda Pública não recorre da decisão, por que razão o magistrado deveria substituir a procuradoria e, no lugar dela, interpor um recurso, quando o próprio magistrado tem interesse em que a decisão seja mantida, pois foi por ele proferida?

d)    faltar-lhe dialeticidade,  posto que o magistrado não vai encaminhar, junto com o reexame necessário, as razões pelas quais a decisão deva ser reformada, o que seria um contrassenso. Ressalte-se que a ausência de dialeticidade nos recursos importa no seu não conhecimento;

e)     faltar-lhe a legitimidade: não sendo parte nem terceiro interessado, não tem o magistrado legitimidade nem interesse em recorrer;

f)     faltar-lhe tempestividade: não importa quanto tempo a decisão do juiz foi proferida e publicada; o reexame necessário ocorrerá a qualquer tempo, desde que estejam preenchidos os seus pressupostos. A consequência da não ocorrência do duplo grau de jurisdição nos casos legais é que a decisão não transita em julgado, independentemente do tempo da sentença de primeiro grau;

g)     inexistência de contraditório: na remessa necessária, o juiz não abre prazo para a outra parte apresentar suas razões pelas quais o tribunal deverá manter a sentença[3].

Importante salientar também a posição de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini quando afirmam:

Enfim, tal como no caso dos recursos, a função do reexame necessário é a de tentar assegurar um maior controle da qualidade da sentença proferida. Mas o mecanismo empregado para tanto não é um instrumento de emprego voluntário – como é o recurso -, e sim a estipulação, pela própria lei, de uma condição para que a sentença possa transitar em julgado. Merece ser enquadrado entre os instrumentos de revisão das decisões judiciais. Mas não é propriamente um meio de impugnação das decisões e tampouco um recurso.  (WAMBIER, TALAMINI : 2015, p. 886).

Destaco também que no nosso sistema recursal inexistem recursos não impugnativos. Todo e qualquer recurso está submetido, minimamente, a todos os requisitos supra, o que demonstra que o sistema de recursal brasileiro tem como pressuposto ser impugnativo e, como consequência da impugnação, tem-se o reexame da matéria.

Lembro, outrossim, que nos casos dos recursos não conhecidos, há impugnação sem reexame da matéria. A impugnação é pressuposto; o reexame da matéria pode ocorrer ou não. Logo, nossos sistema recursal jamais poderia ser classificado como de reexame da matéria, pois esta nem sempre ocorrerá.

4.3 – Características do duplo grau de jurisdição obrigatório e a necessidade de uma nova conceituação

Já traçada a baliza mestra de que o duplo grau obrigatório não é recurso, passa-se agora a definir o que vem a sê-lo. Para tanto, é necessário fazermos um breve estudo de sua potencialidade face ao processo.

A priori, cumpre ressaltar um ponto de partida que toda a doutrina tem em comum quando disserta sobre o duplo grau de jurisdição obrigatório. Sintetizando-a, Nelson Nery Jr. afirma que: “em nosso sentir esse instituto tem a natureza jurídica de condição de eficácia da sentença” (NERY JR : 2014, p. 93).

Os casos tratados pelo art. 496 do CPC tiram a possibilidade da sentença de primeiro grau de ser uma sentença definitiva, por si própria. Precisará ser reexaminada no Tribunal, para a partir daí a decisão do Poder Judiciário produzir seus efeitos.

A ausência de prazo para provocar o reexame necessário provoca outro tipo de conseqüência necessária. Os prazos são previstos no sistema recursal como forma de fixação do dia de início do trânsito em julgado da sentença ou acórdão.

Na sentença cível, seu prazo para o trânsito em julgado começa, de regra, após o término do prazo para o recurso de apelação (15 dias). Ou seja, apenas após o décimo sexto dia da publicação da sentença é que começa a ter efeito a sentença civil, a depender de sua carga de eficácia e de se o recurso tem efeito suspensivo.

Sem o reexame necessário nos casos previstos em lei, a decisão não transita em julgado. E, na práxis forense, isto pode acarretar um problema sério para as partes processuais.

Um dos problemas atuais é o caso da apelação parcial da Fazenda Pública. Às vezes, a apelação se cinge apenas a um dos itens do comando normativo da sentença.

Para tornar as coisas mais claras, vamos supor, então, que a Fazenda Pública foi condenada nos capítulos de sentença “A” e “B” e decide apelar apenas de “A”. Com a atual sistemática do duplo grau obrigatório, “B” não transitará em julgado até que seja apreciado pelo Tribunal competente via reexame necessário.

Nesta situação, a atenção dos desembargadores há de ser redobrada, sob pena do trabalho de apreciação da causa ter de ser refeito de forma complementar, provocando um retardamento injustificado na entrega da prestação jurisdicional[4]. Vale ressaltar que as próprias partes podem, uma vez publicada a decisão e ainda dentro do prazo, embargar de declaração para que a omissão seja sanada.

Este retardamento possui, atualmente, contornos mais sérios, ainda não devidamente apreciados pelos Tribunais. Com o advento da EC 37/02, é vedado o fracionamento de pedidos de formação de precatórios da Fazenda decorrentes do mesmo processo, desde que uma das parcelas fracionadas ingresse na dispensa de precatório[5].

A conseqüência imediata do comando constitucional é que, faltando reexame de um dos itens do comando normativo da sentença, não se poderá dividir o processo de execução em duas etapas, salvo se as duas parcelas forem pagas exclusivamente por precatórios, causando graves riscos para a parte ex adversa da Fazenda Pública.

Ademais, não vige nas apelações estatais sujeitas a reexame necessário o princípio do tantum devolutum quantum apellatum.

Isto se dá porque a matéria eventualmente não apelada pela Fazenda Pública subirá via reexame se estiverem preenchidos os seus requisitos. Não sendo apreciada pelo Tribunal, aquela parcela não reexaminada não transitará em julgado.

A apelação da Fazenda Pública não tem o condão de restringir o alcance do reexame necessário.  Para Sérgio Gilberto Porto, “pode-se, de logo, aduzir que tanto a extensão quanto a profundidade da devolução não sofrem limites, sendo, pois, a matéria integralmente devolvida à análise do juízo ad quem, tenha havido ou não apelo voluntário, uma vez coloridas as hipóteses elencadas no dispositivo aqui analisado” (PORTO : 2000, p. 239)[6].

Sob outra ótica, vários doutrinadores afirmam ser o reexame necessário um ato complexo realizado pelo Poder Judiciário.

A conceituação de ato complexo advém do direito administrativo. Para Hely Lopes Meirelles, o ato complexo é “aquele que se forma pela conjugação de vontades de mais de um órgão administrativo. O essencial, nesta categoria de atos, é o concurso de vontades de órgãos diferentes para a formação de um ato único. (...) No ato complexo integram-se as vontades de vários órgãos para a obtenção de um mesmo ato” (MEIRELLES : 1999, p. 154).

De acordo com o magistério de Seabra Fagundes,

Ao estipular a lei que de determinada sentença caberá recurso necessário, condiciona a integração, e, conseqüentemente, a validez do pronunciamento jurisdicional ao dúplice exame da relação jurídica. Por imposição do seu texto, não haverá sentença, como ato estatal de composição da lide, antes que a segunda instância confirme ou reforme o que na primeira se decidiu. Haverá um pronunciamento jurisdicional em elaboração, por ultimar, pendente de ato posterior necessário. O julgado estará incompleto, como se diz em acórdão do Supremo Tribunal Federal. É o que se infere da natureza e finalidade desse recurso de exceção. (FAGUNDES : 1957, p. 205)

No mesmo sentido, Juarez Rogério Félix,

Que fique, pois, fixado o entendimento neste trabalho de que o reexame necessário é condição de existência da sentença, pois o segundo julgamento é constitutivo integrativo do título, como o é a sentença de liquidação em relação ao seu aspecto quantitativo (FELIX : 1999, p. 429)[7].

Concessa maxima venia, ousamos discordar da posição dos insignes doutrinadores. A sentença, enquanto não for passada pelo Tribunal, não será eficaz. Na realidade, sentença que não possui ainda a possibilidade de eficácia não é sentença, é mera possibilidade de sentença.

Enquanto que no ato administrativo complexo o ataque à sua validade se faz com a indicação dos dois atos, que passam a ser considerados um só após a sua validação pela autoridade competente, no processo civil basta a indicação da decisão revista pelo Tribunal, mesmo que seja pela confirmação da sentença. Se o acórdão substitui a decisão revisada, ele atrai, para dentro de si, toda a motivação da decisão do juiz que foi agora transladada para ser considerada motivação da decisão do Tribunal.

No direito administrativo, o ato complexo é realizado com o encadeamento de dois atos, que são considerados no conjunto para a validade do ato final. No reexame necessário, um ato, para ter validade, precisa ser substituído (ou sacrificado) por outro, sendo um verdadeiro fenômeno processual que não tem paralelo no direito administrativo.

Ou seja, para ter validade a decisão do juiz de primeiro grau, ela precisa ser sacrificada para dar lugar a uma nova decisão, desta feita do tribunal imediatamente superior. Por essa razão, entendemos que não há como considerar o fenômeno do reexame necessário como sendo um ato complexo aos moldes do direito administrativo.

Ao se investigar a subsunção de institutos administrativos para o direito processual, verifica-se que há, em certos casos, uma impropriedade latente. Nem sempre os conceitos de direito administrativo são aplicáveis ao processo civil sem sofrer solavancos, uma alteração em sua substância. E esta mudança de roupagem altera o rumo da nova definição, a ponto de desconfigurá-la na origem[8]. É o caso do reexame necessário.

O conceito de ato complexo do direito administrativo não se amolda com perfeições ao reexame necessário porque existem os efeitos suspensivo e substitutivo operados na decisão do juiz de primeiro grau e no julgamento por acórdão pelo Tribunal com relação à decisão reexaminada, respectivamente. Enquanto que no direito administrativo o ato anterior possui validade e é elemento do futuro ato complexo final, no processo civil o reexame necessário substitui, in totum, a decisão não recorrida.

E tanto é substituição, e não pura e simples confirmação, que eventual recurso interposto será da decisão do Tribunal; a ação rescisória também será oposta contra a decisão do Tribunal, e não do juiz de primeiro grau; os embargos de declaração serão destinados à decisão do Tribunal, e não à decisão do juiz de primeiro grau, mesmo a que confirmou a sentença de primeiro grau, sob pena de intempestividade[9].

Assim sendo, a remessa necessária consiste no fenômeno processual que sujeita a sentença de primeiro grau, nos casos previstos em lei, a condição substitutiva obrigatória para a produção de eficácia.

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Sobre o autor
Pedro Dias Araújo Júnior

Mestre em direito processual civil pela UFS.Pós-graduado em direito constitucional e processual civil pela UFS.Extensão em Common Law no Iuslaw/George Washington Law Scholl. Graduado em direito pela UFPE.Professor universitário.Procurador do Estado de Sergipe.Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO JÚNIOR, Pedro Dias. A remessa necessária no novo CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4633, 8 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46222. Acesso em: 20 abr. 2024.

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