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Estrito cumprimento do dever legal: natureza jurídica e tipicidade conglobante

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3 TIPICIDADE 

O tipo legal é um dos postulados básicos do princípio da legalidade. A Constituição brasileira de 1988 consagra expressamente o princípio em seu art. 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Assim, a teoria do tipo, concebida no ano de 1906 pelo alemão Ernst von Beling foi de grande importância para as teorias adotadas atualmente. É o tipo legal que realiza e garante o princípio da legalidade. Também, a definição atual da tipicidade deriva das ideias do autor.

Antes de Beling[10], o crime se dividia em dois blocos: ilicitude, de ordem objetiva, e culpabilidade, de natureza subjetiva. Não se falava em tipicidade. Posteriormente, o delito passou a ter três partes: tipicidade e ilicitude, sendo ambas objetivas e culpabilidade, sendo subjetiva.

Entretanto, não se deve confundir o tipo legal com a tipicidade. O tipo é a fórmula que pertence à lei, ou seja, é o próprio artigo de lei, enquanto a tipicidade pertence à conduta. Um fato típico é uma conduta humana, por isso prevista na norma penal. Tipicidade é a qualidade que se dá a esse fato.

Para o autor Cleber Masson, fato típico é:

O fato humano que se enquadra com perfeição aos elementos descritos pelo tipo penal. A conduta de subtrair dolosamente, para si, coisa alheia móvel, caracteriza o crime de furto, uma vez que se amolda ao modelo delineado pelo art. 155, caput, do Código Penal. Em sentido contrário, fato atípico é a conduta que não encontra correspondência em nenhum tipo penal. Por exemplo, a ação do pai consistente em manter relação sexual consentida com sua filha maior de idade e plenamente capaz é atípica, pois o incesto, ainda que imoral, não é crime.[11] 

Ainda, o autor mencionado, ao tratar sobre a tipicidade explica que:

Tipicidade é o juízo de subsunção entre a conduta praticada pelo agente no mundo real e o modelo descrito pelo tipo penal (“adequação ao catálogo”). É a operação pela qual se analisa se o fato praticado pelo agente encontra correspondência em uma conduta prevista em lei como crime ou contravenção penal.[12]

O autor Fernando Capez assim descreve a tipicidade:

É a subsunção, justaposição, enquadramento, amoldamento ou integral correspondência de uma conduta praticada no mundo real ao modelo descritivo constante da lei (tipo legal). Para que a conduta humana seja considerada crime, é necessário que se ajuste a um tipo legal. Temos, pois, de um lado, uma conduta da vida real e, de outro, o tipo legal de crime constante da lei penal. A tipicidade consiste na correspondência entre ambos.[13]

O fato típico é composto pela conduta do agente, dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, pelo resultado, bem como pelo nexo de causalidade entre aquela e este. Mas isso não basta. É preciso que a conduta também se amolde, subsuma-se a um modelo abstrato previsto na lei.

Tipicidade quer dizer, assim, a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador.

Nas palavras de Muñoz Conde:

Tipicidade é adequação de um fato cometido à descrição que dele se faz na lei penal. Por imperativo do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimen sine lege, só os fatos tipificados na lei penal como delitos podem ser considerados como tal.[14]

A tipicidade ainda é dividida em formal e material. A tipicidade formal é a adequação do fato à norma. A tipicidade material é a conduta que provoca uma lesão ou ameaça de lesão intolerável ao bem jurídico protegido (condições mínimas de convivência). A fórmula poderia assim ser sintetizada: tipicidade formal = adequação do fato ao tipo penal incriminador; tipicidade material = a materialização do tipo formal, entendida como a concretização da conduta prevista na norma penal incriminadora que provoca uma lesão ou ameaça de lesão ao bem juridicamente tutelado.

O capítulo a seguir tratará da tipicidade conglobante, uma das várias teorias acerca da tipicidade.


4 TIPICIDADE CONGLOBANTE

4.1 Conceito

De acordo com a teoria da tipicidade conglobante, criada pelo penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, o fato típico pressupõe que a conduta esteja proibida pelo ordenamento jurídico como um todo, globalmente considerado. Assim, quando algum ramo do direito, civil, trabalhista, administrativo, processual ou qualquer outro, permitir o comportamento, o fato será considerado atípico. O direito é um só e deve ser considerado como um todo, um bloco monolítico, não importando sua esfera; a ordem é conglobante. Seria contraditório autorizar a prática de uma conduta por considerá-la lícita e, ao mesmo tempo, descrevê-la em um tipo como crime.

Para a teoria, a fórmula adequada seria: tipicidade penal = tipicidade legal ou formal + tipicidade conglobante.

Pode-se, assim, afirmar que a tipicidade legal consiste apenas no enquadramento formal da conduta no tipo, o que é insuficiente para a existência do fato típico. Assim, para a tipicidade legal, a exemplo do art. 155 do Código Penal, aquele que simplesmente subtrai coisa alheia móvel não com o fim de tê-la para si ou para outrem, mas para usá-la, não comete o crime de furto, sendo atípico, portanto, o “furto de uso”.

A conglobante exige que a conduta seja anormal perante o ordenamento como um todo. O nome conglobante decorre da necessidade de que a conduta seja contrária ao ordenamento jurídico em geral (conglobado) e não apenas ao ordenamento penal. Os principais defensores desta teoria são: o já falado Eugenio Raúl Zaffaroni e, também, José Henrique Pierangelli.

Nos sábios dizeres dos autores acima, tem-se que:

A norma proibitiva que dá lugar ao tipo não está isolada, mas permanece junto com outras normas também proibitivas, formando uma ordem normativa, onde não se concebe que uma norma proíba o que outra ordena ou aquela que outra fomenta. Se isso fosse admitido, não se poderia falar de “ordem normativa”, e sim de um amontoado caprichoso de normas arbitrariamente reunidas.[15]

Nesse mesmo sentido são as lições de Bobbio, quando assevera:

Um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, “sistema” equivale a validade do princípio, que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vem a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento tem um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento de compatibilidade, que implica na exclusão da incompatibilidade.[16]

A ideia geral dessa teoria, portanto, é que não há como admitir dentro de um mesmo ordenamento jurídico a existência de normas que proíbem determinadas condutas ao passo em que outras a incentivem ou vice-versa

4.2 Elementos

A teoria da tipicidade conglobante exige para a ocorrência do fato típico: (a) a correspondência formal entre o que está escrito no tipo e o que foi praticado pelo agente no caso concreto (tipicidade legal ou formal), (b) que haja tipicidade material, e (c) que a conduta seja anormal, ou seja, violadora da norma, entendida esta como o ordenamento jurídico como um todo, ou seja, o civil, o administrativo, o trabalhista, etc. (tipicidade conglobante).

Quanto ao primeiro requisito correspondência formal entre o que está no tipo e o que foi praticado pelo agente, a tipicidade conglobante surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material).

É preciso verificar, também, a chamada tipicidade material. A finalidade do direito penal é a proteção dos bens mais importantes para a sociedade. O princípio da intervenção mínima assevera que nem todos os bens são passíveis de ser por ele protegido, mas somente os que gozem de certa importância. O legislador abrigou, por exemplo, o direito à vida, à integridade física, o patrimônio, a honra, a liberdade, etc.

Ao iniciar-se o estudo da tipicidade material, verificar-se-á que excluem-se dos tipos penais os fatos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem aplicação o princípio da insignificância.

Ou seja, pelo critério da tipicidade material é que se afere a importância do bem no caso concreto, a fim de concluir se determinado bem merece ou não ser protegido pelo direito penal.

No que tange à conduta violadora do ordenamento jurídico como um todo, não basta que uma conduta seja apenas prevista como ilícita no Código Civil ou no Código Penal. A conduta será tida como violadora do conjunto de normas de todo o ordenamento brasileiro.

Vale a pena citar a explicação de Zaffaroni e Pierangeli acerca do assunto:

Suponhamos que somos juízes e que é levada a nosso conhecimento a conduta de uma pessoa que, na qualidade de oficial de justiça, recebeu uma ordem, emanada por juiz competente, de penhora e sequestro de um quadro, de propriedade de um devedor a quem se executa em processo regular, por seu legítimo credor, para a cobrança de um crédito vencido, e que, em cumprimento desta ordem judicial e das funções que por lei lhe competem, solicita o auxílio de força pública, e, com todas as formalidades requeridas, efetivamente sequestra a obra, colocando-a à disposição do Juízo. O mais elementar senso comum indica que esta conduta não pode ter qualquer relevância penal, que de modo algum pode ser delito, mas por quê? Receberemos a resposta de que essa conduta enquadra-se nas previsões do art. 23, III, do CP: “Não há crime quando o agente pratica o fato...em estrito cumprimento de dever legal...”. é indiscutível que ela aí se enquadra, mas que caráter do delito desaparece quando um sujeito age em cumprimento de um dever? Para boa parte da doutrina, o oficial de justiça teria atuado ao amparo de uma causa de justificação, isto é, que faltaria a antijuridicidade da conduta, mas que ela seria típica. Para nós, esta resposta é inadmissível, porque tipicidade implica antinormatividade (contrariedade à norma) e não podemos admitir que na ordem normativa uma ordena o que a outra proíbe. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma “desordem” arbitrária. [17] 

Portanto, a tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal. Dessa forma, o autor muda a forma como a tipicidade penal deve ser analisada, havendo fusão entre a tipicidade legal e a conglobante.

Concluindo, para que se possa falar em tipicidade penal, tem que haver a fusão dos elementos: tipicidade formal ou legal com a tipicidade conglobante (que é formada pela antinormatividade e pela tipicidade material). 

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5 A NATUREZA JURÍDICA DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL À LUZ DA TIPICIDADE CONGLOBANTE

Como anteriormente explanado, a tipicidade é a relação de adequação da conduta do agente com o tipo penal. Ela é formada pela tipicidade formal e a tipicidade conglobante, que por sua vez engloba a tipicidade conglobante material e a tipicidade conglobante antinormativa. Pela tipicidade conglobante antinormativa, não é típica a conduta daquele que pratica uma conduta que, embora seja formalmente típica, seja imposta ou fomentada pelo direito. 

Os doutrinadores, ao lecionar sobre o tema, apresentam o exemplo do oficial de justiça que, cumprindo uma ordem de penhora e sequestro de bens, toma do executado um quadro valioso. Vê-se que se trata exatamente da mesma situação prevista para a excludente do estrito cumprimento do dever legal. Se tanto essa excludente como a tipicidade conglobante antinormativa tem a mesma conceituação, a conduta do agente que atua em exemplos como a do policial e a do oficial de justiça deve ser examinada à luz do “fato típico” ou à luz da “antijuridicidade”? 

Na atualidade, como o Código Penal brasileiro adotou o estrito cumprimento de dever legal como causa de exclusão de ilicitude, condutas como as dos exemplos devem ser examinadas ainda sob a ótica da ilicitude.

Porém, os casos de estrito cumprimento de dever legal deveriam ser analisados quando da verificação da tipicidade penal, sob a ótica da tipicidade conglobante antinormativa, pois isso evita que coexistam dentro do ordenamento jurídico uma norma que ordena que se faça uma coisa, enquanto outra norma proíbe essa mesma conduta. Em outras palavras, deve-se buscar evitar que condutas impostas pelo ordenamento jurídico sejam consideradas típicas pelo próprio ordenamento jurídico, tornando este mais harmônico.

Para que se possa falar em tipicidade penal não basta a mera adequação da conduta ao modelo abstrato previsto na lei penal. Isso é características da tipicidade reconhecida como legal ou formal. É preciso, para reconhecer a tipicidade penal, dar mais um passo. Deverá o agente indagar sobre uma outra espécie de tipicidade, qual seja, a conglobante.

Para que o raciocínio possa ser desenvolvido com clareza, necessário trazer à baila mais uma vez a fórmula: tipicidade penal = tipicidade legal + tipicidade conglobante.

Exigindo-se a tipicidade conglobante, juntamente com a tipicidade formal, para a existência da tipicidade penal, alguns problemas são resolvidos quando da análise do fato típico. Para que haja o crime é preciso que a conduta praticada pelo agente seja típica, ilícita e culpável, Cada um desses elementos, como asseverou Welzel[18], nessa divisão tripartida do conceito analítico do crime, é um elemento de estudo necessário, lógico e antecedente do estudo do elemento seguinte. O intérprete, portanto, quando chega ao seu conhecimento um determinado acontecimento, deve analisar o estudo pelo fato típico. Concluindo pela tipicidade, parte-se para a ilicitude. Concluindo-se pela ilicitude, parte-se para a culpabilidade.

Com a tipicidade conglobante, quer-se encurtar o estudo do crime, resolvendo, em algumas hipóteses, problemas que seriam analisados fora do estudo do tipo. Isso se dá, por exemplo, nos casos em que o agente atua amparado pelo estrito cumprimento do dever legal.

No caso do carrasco, já comentado, este cumpre uma função que lhe é imposta pela norma. Teria o carrasco, no caso, praticado uma conduta típica? Para aqueles que não adotam o conceito de tipicidade conglobante, a conduta seria típica, mas não antijurídica, pois estaria acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal. Mas pela tipicidade conglobante, a teoria limita o âmbito de abrangência do tipo penal, para excluir dele condutar que não sejam antinormativas, ou seja, contrárias à norma, mas que, na verdade, são impostas pela própria norma. O fato de o carrasco matar alguém não deve ser resolvido quando da análise da ilicitude, mas, sim, quando se for verificar a tipicidade penal, mais especificamente na tipicidade conglobante.

Após afirmarem que as normas jurídicas não são e nem vivem isoladas, preceituam que:

A lógica mais elementar nos diz que o tipo não pode proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta. Pode ocorrer que o tipo legal pareça incluir estes casos na tipicidade, como sucede com o oficial de justiça, e no entanto, quando penetramos um pouco mais no alcance da norma que está anteposta ao tipo, nos apercebemos que, interpretada como parte da ordem normativa, a conduta que se adequa ao tipo legal não pode estar proibida, porque a própria ordem normativa a ordena e a incentiva.[19]

Deve ser ressaltado que o Código Penal pátrio adotou o estrito cumprimento do dever legal como causa de exclusão da ilicitude, mas sendo adotada no futuro a tipicidade conglobante, ocorrerá um esvaziamento das causas de exclusão da ilicitude, vez que o atuação do agente não será antinormativa e, como consequência, afastará a tipicidade penal por ausência de tipicidade conglobante.

Para os autores, portanto, o estrito cumprimento do dever legal é uma causa de atipicidade penal e, não, uma causa de exclusão de ilicitude.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Kerinne Maria Freitas. Estrito cumprimento do dever legal: natureza jurídica e tipicidade conglobante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4605, 9 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46287. Acesso em: 26 abr. 2024.

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