Há algum tempo três questões relativas ao procedimento previsto na Lei nº. 11.343/06, especialmente a partir das modificações introduzidas no Código de Processo Penal em 2008, causam-me alguma inquietação, ora pela tergiversação jurisprudencial, ora pela ausência de posicionamento doutrinário. São elas:
1) A obrigatoriedade da fundamentação da decisão que recebe a denúncia;
2) A necessidade do Juiz em observar se é o caso de absolvição sumária;
3) O momento para a realização do interrogatório.
De logo, saliente-se que tais questões não são "meramente procedimentais" como se costuma, depreciativamente e de forma covarde e simplista, afirmar-se em algumas decisões judiciais (muitas vezes para fugir da responsabilidade de enfrentamento da matéria suscitada) que ainda teimam em invocar uma nociva "instrumentalidade do processo" para relativizar o rito processual em detrimento da garantia que ele representa para o acusado no processo penal.
Aliás, Calmon de Passos, há quase duas décadas, já desvelava esta farsa, afirmando que "falar-se em instrumentalidade do processo é incorrer-se, mesmo que inconsciente e involuntariamente, em um equívoco de graves consequências, porque indutor do falso e perigoso entendimento de que é possível dissociar-se o ser do direito do dizer sobre o direito, o ser do direito do processo de sua produção, o direito material do direito processual." Para ele, a instrumentalidade foi uma resposta dada "para o problema do sufoco em que vive o Poder Judiciário, dado o inadequado, antidemocrático e burocratizante modelo de sua institucionalização constitucional. A pergunta que cumpria fosse feita - quais as causas reais dessa crise - jamais foi formulada. E a resposta foi dada pela palavra mágica da 'instrumentalidade', a que se casaram outras palavras mágicas - 'celeridade', 'efetividade', 'deformalização' etc. E assim, de palavra mágica em palavra mágica, ingressamos num processo de produção do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitação. Não nos esqueçamos, entretanto, que todo espetáculo de mágica tem um tempo de duração e a hora do desencantamento"[1]
Pois que, desgraçadamente, até hoje como nunca antes, despreza-se a forma com argumentos utilitaristas, eficientistas e consequencialistas, como se um procedimento em matéria penal fosse apenas um "simples detalhe", um arremate, digamos assim..., perfeitamente dispensável, esquecendo-se que a sua observância é, sobretudo, uma garantia que o acusado será processado, julgado e (se for o caso) condenado sob o manto do devido processo legal, sem manipulações de qualquer natureza.
(Veja-se, por exemplo, o recente episódio dos documentos enviados desde a Suiça para o processo da chamada Operação Lava-Jato, quando não se observou o procedimento devido, fato ignorado pelo Juiz da respectiva ação penal. Na decisão, o Tribunal Federal Penal da Suíça deixou consignado que: "Face às circunstâncias do caso atual, pode até ser lícito transmitir a mera informação de caráter sigiloso, no âmbito do processo rogatório ativo. Porém, o fornecimento de provas caracteriza uma forma da “entraide sauvage” repudiada. O apelo presente mostra - se, assim, consubstanciado e justificado quanto a este item. Através de seu procedimento, o Apelado privou o Apelante do direito de se pronunciar, quanto à transmissão de seus documentos bancários, ao decorrer do processo rogatório. Uma aprovação de tal procedimento impediria a possibilidade de uma avaliação judicial da transmissão efetuada dos documentos bancários e inviabilizaria a proteção jurídica individual, prevista, contudo, no direito rogatório." O Tribunal Suiço reconheceu que "a disponibilização de documentos bancários aos órgãos judiciais penais brasileiros resultou ilegal" e que houve "uma transmissão espontânea de provas e informações de forma ilegal."[2] Nada obstante, o procedimento continua em trâmite, como se tivesse ocorrido apenas uma mera irregularidade. Mas, como se diz também, o processo é uma marcha adiante...
Toda relativização nesta seara deve ser denunciada, pois incorrerá em flagrante inconstitucionalidade, não havendo que se cogitar em aplicação do (inaplicável) art. 563 do Código de Processo Penal, onde se consagra o princípio do prejuízo ou do pas de nullité sans grief, expressão pernóstica cunhada pela doutrina francesa e estabelecida normativamente pelo Direito francês (apesar de ser um Princípio de Direito mais antigo do que os meus antepassados mais remotos).
No Processo Penal, cujo conteúdo difere substancialmente do Processo Civil[3], o prejuízo decorrente da inobservância do rito deve ser presumido e não provado pela defesa (isso é de uma obviedade...). Aliás, como ensina Cordero ao estudar a etimologia da palavra "rito", ela surge a partir de "palabras que traen a la mente la idea de evolución o desarrollo conforme a lo prescrito en cuanto a la forma, y de consecuencia o de tiempo".[4]
Feitas tais considerações, vejamos então as três questões em particular, acima indicadas, começando pela imperiosa necessidade de fundamentação da decisão que recebe a denúncia, nos termos do art. 55 da Lei de Drogas e do art. 93, IX da Constituição Federal.
O procedimento na Lei de Drogas prevê, como se sabe, uma fase prévia em que se permite ao denunciado responder à acusação no prazo de dez dias, por escrito, oferecendo uma defesa prévia, antes mesmo do juízo de admissibilidade da peça acusatória. Nesta resposta preliminar (anterior àquela prevista no art. 396 do Código de Processo Penal), a defesa poderá arguir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e, até o número de cinco, arrolar testemunhas, além de apresentar exceções.
Estabelece a lei que, apresentada esta defesa, o Juiz decidirá em cinco dias. Vejam bem: DECIDIRÁ! É o que diz a lei (art. 55, § 4º.). Não é, portanto, um mero despacho recebendo a denúncia, em absoluto. É uma decisão de natureza interlocutória. É evidente, portanto, que este ato judicial deve ser motivado, enfrentando toda a matéria de defesa suscitada na resposta prévia (tanto as de natureza processual quanto as de mérito), sob pena de cabimento de embargos de declaração e de posterior nulidade processual.
Aqui cabe uma indagação: qual seria mesmo a utilidade ou a necessidade dessa defesa prévia, senão obter, desde logo, a rejeição in limine da pretensão acusatória? Logo, é direito do denunciado ter a sua resposta devidamente rechaçada (ou não), por meio de uma válida decisão judicial e não de um mero arremedo.
Portanto, “nos procedimentos especiais em que o legislador exigiu defesa preliminar, é evidente a necessidade de motivação da decisão que recebe a denúncia, eis que, nesse tipo específico de procedimento, faculta-se à parte a manifestação pretérita ao ato decisório que deflagra a ação penal, podendo ela, inclusive, ofertar provas, tudo em homenagem ao princípio constitucional do contraditório. A ausência de análise das preliminares suscitadas pelo denunciado em defesa preliminar constitui vício que macula o procedimento e requer a declaração de sua nulidade como forma de cessar o constrangimento.”[5]
Uma segunda exigência a ser observada no rito especial é a análise da absolvição sumária prevista no art. 397 do Código de Processo Penal. Trata-se, como se sabe, de um julgamento antecipado do caso penal, sem necessidade, sequer, de submeter o acusado ao interrogatório e às demais “cerimônias degradantes” do processo penal.[6]
Infere-se tal exigência a partir da leitura do Código de Processo Penal que, em seu art. 394, § 4º., estipula que as disposições dos arts. 395 a 397 aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não por ele regulados, inclusive, por óbvio, o disciplinado na Lei nº. 11.343/06.
Parece-me que não permitir a aplicação deste art. 397 é ignorar solenemente a alteração legislativa introduzida pela reforma de 2008, além de impedir que, desde logo, resolva-se definitivamente o caso penal, estando induvidosamente presentes uma das hipóteses do referido artigo. Ademais, qual o sentido de diferir a decisão de mérito para a sentença final, já havendo elementos suficientes para a antecipação do julgamento? Seria protelar a agonia do acusado? Atenção: já estamos no século XXI, a barbárie acabou (?).
Por fim, também será de rigor a realização por último do interrogatório, a fim de assegurar o contraditório e a ampla defesa. Também é cediço que com a reforma de 2008, o interrogatório passou a ser feito após terminada a instrução criminal propriamente dita, tal como já estava previsto no procedimento sumaríssimo desde 1995. Esta modificação deu-se em razão da natureza do interrogatório que é, sobretudo, um ato de defesa, momento em que o acusado, diante do Juiz, dará a sua versão, podendo calar, mentir, chorar, sorrir, gritar, etc. É o instante processual tipicamente reservado para a sua autodefesa que, ao lado da defesa técnica, completará a ampla defesa.
Aliás, o Código de Processo Penal italiano, nos seus arts. 64 (Regole generali per l´interrogatorio) e 65 (Interrogatorio nel merito), deixa claro ser interrogatório um meio de defesa, pois, salvo em caso de prisão cautelar, “la persona sottoposta alle indagini (...) interviene libera all’interrogatorio”. Ademais, antes de iniciar o interrogatório, o imputado será advertido de seu direito “di non rispondere ad alcuna domanda”, excetuando-se os dados de mera identificação, devendo a autoridade judicial informar ao interrogado a respeito dos elementos de prova que pesam sobre ele, bem como as respectivas fontes, salvo “se non puó derivarne pregiudizio per le indagini”; em seguida o Juiz, “invita la persona ad esporre quanto ritiene utile per la sua difesa e le pone direttamente domande.”
Muito a propósito também, a lição de Germano Marques da Silva para quem “a lei reserva ao arguido, para por ele serem exercidos pessoalmente, certos actos de defesa. É o que acontece, nomeadamente, com o seu interrogatório, quando detido, quer se trate do primeiro interrogatório judicial, quer de interrogado por parte do Ministério Público, do direito de ser interrogado na fase da instrução, das declarações sobre os factos da acusação no decurso da audiência e depois de findas as alegações e antes de encerrada a audiência”.[7]
O interrogatório não pode ser considerado, tão somente, como meio de prova, nada obstante estar disciplinado no Capítulo III, do Título VII do Código de Processo Penal. Adepto desta tese, Ferrajoli entende que o interrogatório é o melhor paradigma de distinção entre o sistema inquisitivo e o acusatório, pois naquele o interrogatório representava “el comienzo de la guerra forense, el primer ataque del fiscal contra el reo para obtener de él, por cualquier medio, la confesión”. Contrariamente, no processo acusatório/garantista "informado por la presunción de inocencia, el interrogatorio es el principal medio de defensa y tiene la única función de dar materialmente vida al juicio contradictorio y permitir al imputado refutar la acusación o aducir argumentos para justificarse".[8]
Este entendimento já está, inclusive, sedimentado no Supremo Tribunal Federal, quando se trata do procedimento na Justiça Militar. Neste sentido, conferir os Habeas Corpus nºs. 122673, 123228, 121907 e 126080. Neste último, ficou consignado "que a não observância do art. 400 do Código de Processo Penal nos processos militares configura nulidade absoluta por violar garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa").
Igualmente na Justiça Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal determinou a realização do interrogatório por último. A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus nº. 107795. Para o relator, Ministro Celso de Mello, a instrução processual feita pelo Juízo da Zona Eleitoral "feriu o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, uma vez que tomou como base os procedimentos previstos no Código Eleitoral, em detrimento daqueles presentes na nova redação dada ao Código de Processo Penal, este último mais favorável ao réu. A nova redação conferida pela Lei nº. 11.719/2008 aos arts. 396 e 396-A do Código do Processo Penal configura-se mais benéfica aos réus, uma vez que instituiu a fase preliminar ao interrogatório, conferindo ao acusado a possibilidade de apresentar por escrito um contraditório prévio, em que pode invocar todas as razões de defesa, de natureza formal ou material, assim como produzir documentos, especificar provas e propor testemunhas. A nova ordem ritual definida nos artigos 396 e 396-A do Código do Processo Penal, na redação dada pela Lei 11.719/2008, revela-se evidentemente mais favorável que a disciplina procedimental resultante do próprio Código Eleitoral. A própria Suprema Corte, em sucessivas decisões, já reconheceu que a inobservância do contraditório prévio previsto no novo Código do Processo Penal constitui causa de nulidade processual absoluta. O interrogatório, de acordo com a nova redação dada ao artigo 400 do Código do Processo Penal, passou a ser o último ato da fase de instrução probatória de um processo penal. É mais benéfico à defesa possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas como eventuais perícias. O acusado terá a oportunidade de esclarecer divergências que não raramente afloram durante a edificação do conjunto probatório”.
Assim também entende a Suprema Corte em relação ao rito previsto na Lei nº. 8.038/90 (para as ações penais originárias). Veja, por exemplo, a Ação Penal nº. 528, onde ficou consignado "que o interrogatório é um instrumento de defesa do réu e, portanto, deve ser colocado ao final" (...), sendo "relevante constatar que se a nova redação do artigo 400, do Código de Processo Penal, possibilita ao réu exercer de modo mais eficaz a sua defesa, tal dispositivo legal deve suplantar o estatuído no artigo 7º., da Lei nº. 8.038/90, em homenagem aos princípios constitucionais que são aplicáveis à espécie.” Quanto à discussão sobre o aspecto formal, o relator entendeu que o fato de a Lei nº. 8038/90 ser norma especial em relação ao Código de Processo Penal, “em nada influencia o que até aqui se assentou”. “É que, a meu sentir, a norma especial prevalece sobre a geral apenas nas hipóteses em que estiver presente alguma incompatibilidade manifesta insuperável entre elas, nos demais casos, considerando a sempre necessária aplicação sistemática do direito, cumpre cuidar para que essas normas aparentemente antagônicas convivam harmonicamente”. Ora, se este raciocínio é válido para a Lei nº. 8.038/90, com muito mais razão deve ser observado para a Lei nº. 11.343/06, já que se trata de um procedimento de primeiro grau.
Portanto, para concluir, é preciso que seja observado nos processos relativos a Drogas o disposto nos arts. 397 e 400 do Código de Processo Penal, além de ser necessária a fundamentação do recebimento da peça acusatória, como exige o art. 55, parágrafo quarto da Lei nº. 11.343/06. A falta de atendimento de uma destas exigências acarretará a nulidade do processo a partir da atipicidade do ato que deveria ser praticado, obedecendo-se à Teoria dei frutti ell`albero avvelenato.
Notas
[1] CALMON DE PASSOS, José Joaquim, Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal, Revista de Processo, nº. 102, Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, páginas 55 e seguintes.
[2] http://s.conjur.com.br/dl/decisao-suica-provas-enviadas1.pdf. Em inglês: http://s.conjur.com.br/dl/decisao-suica-provas-enviadas.pdf
[3] A propósito, é preciso ler e reler o clássico "A Lide e o Conteúdo do Processo Penal", de Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Curitiba: Juruá, 1998.
[4] CORDERO, Franco, Procedimiento Penal, Tomo I, Colombia: Editorial Temis S/A, 2000, p. 6.
[5] Superior Tribunal de Justiça, 6ª. Turma, Habeas Corpus nº. 89.765, Relatora Ministra Jane Silva, j. 26/02/08, DJE 24/03/08.
[6] Preferimos falar em “caso penal”, pois “a lide, em qualquer de suas formas, é inaceitável no processo penal, isto é, para referir o conteúdo do processo penal, não serve a lide do processo civil e nem a lide penal. O conteúdo do processo pode ser apresentado pela expressão caso penal.” (Jacinto Nelson Miranda Coutinho, A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba: Juruá, 1998, p. 152).
[7] Curso de Processo Penal, 3ª. ed., Lisboa: Verbo, vol. I, p. 288.
[8] Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, 3ª. ed., Madrid: Trotta, 1998, p. 607.