“Mil vezes culpados soltos do que um inocente preso”.
(Marco Aurélio de Mello, Ministro do STF)
O Supremo Tribunal Federal, na sessão do dia 17.02.16, ao julgar o Habeas Corpus (HC) nº 126292, denegou a ordem, por maioria de votos. Seria mais um julgamento entre tantos que aportam perante a Excelsa Corte, não fosse pela peculiaridade da fundamentação para a sua denegação.
Entendeu o Plenário do STF que a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência. Conforme o Relator do caso Ministro Teori Zavascki, a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena.3
Tal decisão muda radicalmente o entendimento da Corte, que desde 2009, no julgamento do HC nº 84078, condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvando-se a possibilidade de prisão preventiva.
Pelo princípio da supremacia judicial, estampado no art. 102, caput da nossa Constituição Federal de 1988 “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. O STF, portanto, é o intérprete final em questões constitucionais. Estabelece-se tal premissa, pois ao que parece, com a recente decisão, ao contrário do que estipula o princípio encimado, a Constituição, na realidade foi violentada por quem deveria protegê-la. E não há remédio jurídico contra isso.
A Constituição ostenta diversas concepções, sendo que a concepção normativo – positivista, a despeito das críticas, ainda é a predominante no nosso país. É verdade que o intérprete deve sempre estar atento à realidade social e por uma interpretação construtiva, quando assim for necessário, adequá-la ao texto constitucional positivado, o que caracteriza uma concepção estrutural da Constituição. O STF já fez isso inúmeras vezes e essa alteração informal da constituição pela interpretação sem alteração do texto é denominada de mutação constitucional.
Entretanto, em determinadas situações, especialmente em se tratando de direitos e garantias fundamentais, sem se ignorar que nenhum direito é absoluto e, portanto, sujeito a temperamentos, tem-se que é necessário muita cautela pelo intérprete constitucional, sob pena de retrocessos, em desconformidade com a lógica do sistema e com o próprio Estado Democrático de Direito.
Se o texto constitucional é claro, objetivo e direto não se afigura razoável e proporcional divagações que acabam por afastar a interpretação constitucional do fio condutor normativo que deve acompanhá-la. O art. 5º, inciso LVII da CF/88 estabelece: “LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” Uma interpretação de afogadilho diria: ”não se pode prender um inocente, e todo aquele contra quem não existir uma sentença penal definitiva, é tal”!
O espaço de discricionariedade interpretativa quanto a tal dispositivo é diminuto. Não é a toa que José Afonso da Silva esclarece: “Na verdade, o texto brasileiro não significa outra coisa senão que fica assegurada a todos a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O trânsito em julgado se dá quando a decisão não comporta mais recurso ordinário, especial ou extraordinário”. (SILVA, 2012, p. 158)
Trata-se do princípio constitucional da presunção de inocência ou também denominado de princípio da não culpabilidade. Decorrência lógica da presunção da inocência ou da não culpabilidade é o direito de não ser encarcerado para a execução definitiva da pena, enquanto não esgotados todos os meios jurídicos ao alcance do acusado. É isso o que quer dizer “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A mutação constitucional pela interpretação do STF acabou por enxergar e substituir o texto informalmente para que seja lido da seguinte maneira: “ninguém será considerado culpado até a decisão colegiada de segundo grau”.
É verdade que se verificou a comemoração por muitos em relação a essa nova guinada jurisprudencial do STF como a solução para a impunidade no país, principalmente diante do período em que vivemos, onde foram iluminados e trazidos para as barras do Judiciário, diversos casos de corrupção. Mas ao que parece o STF julgou mais preocupado em dar uma resposta ao sentimento social de impunidade que paira sobre nosso país, do que efetivamente proteger a Constituição Federal. Essa pressão da opinião pública, em verdade, reforça uma atuação mais protagonista do Judiciário, aumentando a crise representativa do Poder Legislativo e enfraquecendo o próprio sistema democrático.
Um dos fundamentos para a mudança no entendimento do STF consistiu na sustentação de que a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerraria a análise de fatos e provas que assentariam a culpa do condenado, o que autorizaria o início da execução da pena. Ora, é sabido que não se admite o reexame de fatos e provas em sede de Tribunais Superiores, mas a revaloração é perfeitamente admissível quando se verifica o error in judicando (equívoco na valoração da prova) e error in procedendo (erro no proceder, cometido pelo juiz). Trata-se de revaloração da adequação dos fatos à lei, que pode diminuir sensivelmente a pena de modo a que dela não mais decorra a imposição de prisão, ou, até mesmo, levar à absolvição do réu.
Analisando com mais vagar a questão verifica-se que a Constituição fala da presunção de inocência e, enquanto a pessoa não for condenada definitivamente, ela é inocente! Agora imagine-se um cidadão que é condenado por um magistrado de primeiro grau e tem a pena confirmada pelo Tribunal de Justiça. Inicia a execução definitiva da pena e a cumpre por 3 (três) anos, por exemplo. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial, discorda do Tribunal de Justiça por este não ter aplicado devidamente a lei e absolve o réu! O que fazer? Quem irá repor os 3 anos de prisão do inocente? E se, na prisão, o indivíduo, no momento em que o STF ou STJ decidem pela sua inocência, na comemoração, é morto por um inimigo de cela? Alguns dirão que há previsão no art. 5º, LXXV da CF/88 quanto a indenização a ser paga pelo Estado em caso de erro judiciário. Mas será razoável e proporcional aludida ponderação?
Além disso, é sabido que magistrados e tribunais costumam também absolver, especialmente os poderosos locais! Suas condenações geralmente só são obtidas no STJ ou STF. Por que esses não ficarão presos enquanto os condenados em primeiro e segundo grau ficarão? É um discrímen razoável? É isonômico?
Aliás, os governadores de Estado, pela pressão na liberação de verbas (o Poder Judiciário sempre gasta mais que o repasse obrigatório, ficando refém dos governadores com os pedidos suplementares), praticamente “mandam” nos juízes e Tribunais de Justiça, de modo que estes somente condenam os "não aliados dos governadores"! Está bom assim?4 As condenações e as absolvições de aliados sempre foram conseguidas pelos Poderes Executivos e Legislativos locais nas Cortes locais. Com efeito, aos inimigos a condenação está garantida e eles serão presos, enquanto aos aliados foi garantido o que negado àqueles. Essa realidade, mataria o sonho, se conhecida, de qualquer pressão popular!
Veja-se que, no Estado de São Paulo, existindo uma acusação contra um Deputado Estadual de que ele estaria envolvido em corrupção relativa à compra de merenda escolar, o Governador, seu aliado partidário já decretou: “Este homem é inocente”!5.
Quem decidirá o contrário se, por exemplo o último ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo passou, ao deixar o cargo, a ser Secretário de Educação do Governador?
O Estado Brasileiro prometeu, via Constituição, uma garantia a todos: a presunção de inocência. Por deficiência sua (Estado), inverte-se as coisas! Quem tem a obrigação de cumprir a lei e seus prazos julgando os recursos nas datas que a lei (criada pelo Estado) determina é o Estado e não os acusados, que apenas se valem dos recursos e prazos disponibilizados! Tendo o Estado falhado larga e amplamente (ao não julgar no prazo devido os recursos que ele próprio criou) gerando a impunidade, não pode impor ao cidadão a obrigação que era sua! Fez o filho e quer que outro sustente!
Os pactos existem para serem cumpridos, dizem os que sabem, mas a decisão que comentamos vai em sentido oposto: o Estado não está cumprindo o seu dever, mas, por esse não cumprimento, ele acha que quem tem que arcar com as consequências é o cidadão! Se o Estado não consegue cumprir os prazos que ele mesmo criou ou se entende que os prazos criados geram a impunidade devido as diversas oportunidades recursais, que se diminuam os prazos processuais, que se extingam recursos meramente protelatórios chancelados pelo sistema jurídico, mas pautar-se como primeira solução pela restrição de um direito fundamental, como o princípio da presunção da inocência, vai de encontro aos mais comezinhos ensinamentos.
Um último contrassenso que se permite ressaltar é o reconhecimento pelo STF, em setembro de 2015, por meio da concessão parcial de liminar em cautelar da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, de que o sistema carcerário brasileiro é um verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”. Este conceito importado da Colômbia estriba-se no reconhecimento de que diante da massiva violação de direitos fundamentais (no caso a dignidade do preso, especialmente devido a superlotação de presídios) há necessidade de interferência estrutural do Judiciário (no caso foi determinado o descontingenciamento do Fundo Penitenciário para o investimento em reformas e construção de novos presídios) para que o bloqueio institucional dos demais poderes seja superado, atuando o Judiciário também como coordenador do diálogo entre esses poderes.
Ora, não é possível constatar coerência na postura do Supremo se: num primeiro momento, reconhece a situação calamitosa dos presídios em decisão emblemática na proteção de direitos humanos e, logo após, posiciona-se de maneira que, sob o auspício do combate a impunidade, profere decisão que acabará por lançar mais e mais indivíduos ao cárcere, prejudicando a própria superação do “estado de coisas inconstitucional” que já declarou.
Destaca-se, outrossim, a estatística trazida pelo Ministro Celso de Mello quando da declaração de seu voto, no sentido de que pelo menos 25 % (vinte e cinco por cento) dos recursos extraordinários criminais interpostos por réus condenados são inteiramente acolhidos, o que significa que condenações decretadas anteriormente são revertidas pelo STF6. Há quem diga que estatística é uma ciência exata, portanto, não se pode simplesmente ignorar tais dados. Aliás um dos autores desse escrito que já teve oportunidade de atuar perante o Superior Tribunal de Justiça, em substituição de Subprocurador, ostenta a mesma visão em relação ao STJ, sendo possível até mesmo que os números estatísticos de reversão de decisões sejam ainda maiores, diante da vocação do STJ ao julgamento de questões de índole legal, onde o volume é bem mais significativo que aqueles de índole constitucional.
O acerto ou não da decisão só o tempo dirá, mas os prognósticos quanto ao aumento de encarceramentos com consequente piora dos índices de superlotação das prisões, atrelado ao alto número de reformas das decisões de órgãos judiciais colegiados pelos tribunais superiores, por certo aumentará o número de encarceramentos indevidos e, por óbvio, o número de ações de indenização contra o Estado Brasileiro e, quem pagará a conta seremos todos nós, cidadãos contribuintes. Uma das soluções, sem que houvesse necessidade de violentar o princípio da presunção da inocência como o fez o STF, seria que o próprio Judiciário cumprisse os prazos para julgamentos.
Slavoj Zizek escreveu uma obra “Em defesa das causas perdidas”, nós, mais modestos, ficamos na companhia dos vencidos, justamente uma plêiade de Ministros, embora igual aos demais, só que com mais experiências que lhes foram dadas por terem mais tempo de vida e judicatura, levando-se o decano a dizer que: “Houve uma inflexão conservadora do Supremo na restrição do postulado constitucional de estado de inocência”7, que o vulgo chama, simplesmente, de retrocesso.
Aliás, o Supremo, que proíbe o retrocesso para os demais poderes, deveria, também, impô-lo a si.
Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153>. Acesso em: 19 Fev. 16.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8ª ed. Atual. Rev. São Paulo: Malheiros.
Notas
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153>. Acesso em: 19 Fev. 16.
4 Parêntese para um caso pitoresco: Lembrou-se de um caso em que um dos autores do presente escrito e outros procuradores da República atuaram numa persecução penal contra um desembargador que aduziu que era perseguido pelos membros do MPF em primeiro grau. Na sequência por uma Subprocuradora-geral da República, atuante perante o Superior Tribunal de Justiça, oferecendo denúncia contra aquele magistrado da Justiça Estadual (a única que, pela Constituição Federal tem desembargadores), alegou que esta assim agia por ser amiga de um dos procuradores. Recebida a denúncia, ele não teve mais a quem culpar, ou não quis se indispor com o possível julgador, então, para “escapar” do processo perante o STJ, aposentou-se, pondo fim, assim, ao foro por prerrogativa de que gozava. Isso, por outro lado, o levaria a ser julgado por seus pares, em recurso, e por juízes de primeiro grau, que antes lhe eram hierarquicamente subordinados. Ao final faleceu. Assim se demonstra também, por outro lado, que a impunidade continuará existindo em relação às autoridades locais, sendo que a decisão do STF apenas aumentará a população carcerária com indivíduos da classe mais baixa.
5Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/alckmin-defende-investigado-na-mafia-da-merenda-em-sp-18665668>. Acesso em: 19 Fev. 16.
6 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-18/decanos-supremo-comentam-virada-jurisprudencia-corte>. Acesso em: 19 Fev. 16.
7Idem.