5. Do elastecimento da coação prisional para débitos alimentares trabalhistas e decorrentes de atos ilícitos
Assenta-se a restrita interpretação constitucional e legal adotada pela grande maioria da doutrina e jurisprudência (e antes ilustrada) quanto ao alcance da prisão civil por obrigações alimentares não pagas ou justificadas circunscrever-se apenas às dívidas alimentares entre parentes – e nunca quando as partes vinculadas, ainda que vitimadas por condutas culposas ou dolosas de terceiros prejudiquem-lhes intensamente – devido ao entendimento limitador da existência de um imprescindível elo das normas especiais concernentes ao tema e da fonte obrigacional de cunho alimentar quanto às partes envolvidas e não quanto a sua índole autêntica, isto é, da sua natureza jurídica propriamente dissecada. Por isso, com veemência, discordamos.
De qualquer sorte, a doutrina já vem rejeitando a insustentável tese da limitação do instituto da prisão civil em virtude dos sujeitos processuais serem necessariamente parentes. MARINONI [13], p.e, sustenta a possibilidade do uso da prisão civil para situações de inexecução alimentar mesmo que não decorram de vínculo familiar (alimentos decorrentes de ato ilícito, dívidas trabalhistas, tutela antecipada com caráter alimentar) com base numa interpretação "ampliadora" da idéia de crédito alimentar descrito na CF/88, art. 100, §1º. É incisivo quando apresenta um contra-exemplo a contrario sensu que demonstra a ilogicidade ou incoerência do ordenamento, quando entendido da maneira corrente: "a menos que se entenda, por exemplo, que os filhos daquele que se afasta do lar merecem tutela jurisdicional mais efetiva do que os filhos que têm o pai morto em acidente automobilístico".
Traduzimos tal assertiva como verdadeira ironia à principiologia constitucional (igualdade, isonomia etc), o que impõe imediata mudança interpretativa ou, para satisfazer aos mais apegados à literalidade legal, a complementação (pormenorização) normativa do tema, o que se evitaria com a sugestiva alteração, dando-se ênfase explícita às normas na admissibilidade do defendido elastecimento interpretativo. Evitar-se-ia com essa medida a insegurança jurídica da simples flutuação bipolar de entendimento, e pior, de forma concentrada no tempo, o que poderia causar ininteligibilidade dos operadores e dos próprios jurisdicionados.
Noutras palavras, o sentido constitucional do termo ‘alimentos’ transcende a restrita concepção de partes envolvidas, abrangendo quaisquer indenizações de cunho ou essência alimentar.
Isso evitaria que famílias ficassem desamparadas ou na dependência de procedimentos processuais inadequados à relevância do direito substancial envolvido. Impede discriminação e ofensa à Lei Maior. Favorece a corrente simplificadora do processo moderno. Perfaz um critério homogêneo de execução. Constrói-se uma reconstituição uniforme, seja fundada numa relação parental ou não (contratual ou extracontratual), mas deste que se imiscua no desiderato alimentar, criando-se assim, um elo subjetivo e objetivo de operacionalização na reparação.
Para os casos submetidos à justiça especializada do trabalho (ou laboral) também é conveniente haver aperfeiçoamentos no seu processo de execução. O juiz, após prolatar sentença favorável ao empregado, dirige-se para a etapa de liquidação, onde se apura o montante devido ao obreiro, iniciando a chamada execução de sentença.
O problema é que, em inúmeras vezes, o empregador, convocado para quitar seu débito, prefere dar seguimento à execução penhorando bens. Até porque, regra geral, o empregador continua na posse e uso dos referidos objetos até total finalização da tutela jurisdicional.
Para bom entendedor, penhorar bens significa expropriá-los, na exata conformidade do rito específico de praça ou leilão, ou seja, desbravar nova e delicada etapa procedimental para que com o produto da venda pague-se ou amortize-se o trabalhador. Se não houver interessados nos bens submetidos à arrematação pública, nem o credor aceitar recebê-los como pagamento, chega-se a verdadeiro sofisma: um looping vicioso na procura tenaz e assistemática de outros bens ou créditos do devedor, tanto por parte da justiça quanto por parte do próprio credor, a fim de se repetir todo procedimento, ou desiste-se e frustra-se a execução como um todo – prolatação de sentença desprovida de eficácia.
Por outro lado, é notório que tais relações trabalhistas possuem íntima natureza de subsistência dos funcionários que vendem sua técnica e força de trabalho para seus respectivos empregadores (pessoas físicas e jurídicas) em troca da percepção de salários e outros direitos ou garantias previamente acordados, impondo-se aos primeiros, em caso de descumprimento do contrato e face à crise de efetividade vigente, uma transação mais que forçada.
Na nossa visão, portanto, salários e verbas rescisórias têm caráter alimentar – o que significa dizer estar protegido pelo instituto da prisão civil, através de uma interpretação sistêmica e finalística. Ainda que rejeitemos, prima facie, tal possibilidade, podemos ressaltar a identidade ou isonomia de ritos constante da Lei nº 5478/68 e da CLT, parecendo confirmar a irmandade de ambos os diplomas.
A efetividade da Carta Magna fica mumificada quando infraconstitucionalmente se interpreta de modo pontual. Vai de encontro, dentre outros, ao valor social do trabalho, da proteção da dignidade humana, da função social da propriedade, erigidos como diretrizes fundamentais da República e representam recidivas inconstitucionalidades.
A recalcitrância injustificada dos empresários devedores e o formalismo desconexo não podem ceder ao propósito legitimador do Direito, a saber: a consecução de justiça.
A medida coercitiva prisional, por óbvio, deve ser decretada como medida extrema, isto é, se e somente se, ficar evidenciado que a protelação ao pagamento advém de capricho e indiferença, mas nunca por real impossibilidade de quitação.
Destaque-se, por fim, que esta linha de raciocínio já encontra vários adeptos, dentre outros: o Ministro LOPES LEAL, do TST; TOLEDO FILHO; JORGE L. SOUTO MAIOR; MONT’ALVERNE FROTA [14].
6. Da mecânica processual
Ab initio, mostra-se oportuno abordarmos o andamento processual em consonância com a jurisprudência corrente e não com os posicionamentos que aqui adotamos, haja vista, o objetivo empírico maior (imanente) do direito processual.
Feitas estas colocações, podemos dizer que a competência para julgar execuções fundadas em título executivo judicial é o do mesmo juízo em que o título foi formado (competência absoluta, CPC, art. 575, inc.II e Súmula 1 do STJ admitindo, em caso de mudança de domicílio do credor, que se ajuíze neste novo local sua demanda).
Caso a execução se processe por precatória, deve o juízo deprecado limitar-se ao cumprimento do requisitado na carta, sem competência para decretar prisão civil autonomamente, incumbindo-se-lhe, entretanto, revogá-la em caso de cumprimento do débito motivador da medida [15].
A petição inicial de execução deve seguir o preceituado pelo CPC, mormente nos seus artigos 282, 604 e 733, devendo-se, ademais, instruir a inicial com planilha de cálculo do débito e requerer a feitura do pagamento no prazo de 3 (três) dias, ou sua comprovação, ou, ainda, justificativa de sua impossibilidade, sob pena de prisão. São esses elementos que preenchem os pressupostos de existência, validade e eficácia do procedimento executivo.
O pagamento que compete ao executado é o da integralidade das prestações vencidas e daquelas que se venceram até a data de pagamento. Não se considera, para efeito de privação de liberdade, os honorários advocatícios e as custas processuais eventualmente devidos e vinculados ao processo, que podem ser exigidos através do constrangimento patrimonial do devedor via execução ordinária. Quitações parciais que denotem incapacidade de integralização ou pedido de parcelamento inibem a prisão civil e devem ser analisados.
Honorários de advogados e despesas processuais. Somente o não pagamento de alimentos enseja o decreto de prisão do devedor. A falta de pagamento de despesas processuais e honorários de advogados não dá lugar à prisão civil.
(RTJ 125/326, 111/1048; RT 613/235)
A defesa do executado se opera na forma de incidente processual nos próprios autos, limitando-se, em regra, à prova do pagamento (incluindo qualquer circunstância extintiva, modificativa ou impeditiva de direito) ou a justificativa de impossibilidade de fazê-lo.
Outrossim, é permitido ao magistrado conhecer além de questões ditas ‘de ofício’; também, se conveniente, pode antecipar questões que seriam remetidas aos embargos à execução. Vedado, porém, a análise de pleitos acerca da existência da pretensão creditória, exigindo-se, neste caso, ação própria. É cabível ainda o levantamento, por parte do devedor, de tópicos coligados aos pressupostos processuais e às condições da ação.
A impossibilidade apresentada pelo devedor ao juízo deve ser temporária, devendo, na ocorrência de empecilho permanente, recair a execução no procedimento comum. A ele vincula-se o ônus da prova, abrangendo quaisquer das admitidas em direito, desde que presentes no prazo dos três dias, pelo menos, indícios dela(s), prolongando-se nesta hipótese a execução, em virtude de apresentação, construção e instrução probatórios.
O julgamento do incidente (pedido de prisão e defesa do executado) se faz através de decisão interlocutória, seja para afastar ou acolher a medida de coerção, devendo o mesmo, necessariamente, ser motivado (cf. CF/88, art. 93, inc. IX).
Sendo a justificativa do executado acolhida, inviabiliza-se a coerção pessoal. Deve o credor requerer o seguimento do feito mediante expropriação de bens do devedor, caso existam. Se isso não for possível ou viável o processo ficará suspenso à espera do cumprimento da obrigação ou desaparecimento da impossibilidade temporária.
ARNALDO MARMITT [16] bem elucida o assunto: "sobrevindo a recuperação financeira do obrigado, com ela também se restabelece o dever de alimentar". Ou seja, se antes, por contingência, era razoável o não pagamento da verba alimentar, a partir do instante em que as possibilidades melhoram, ressurge a imperatividade de seu cumprimento pela coação pessoal.
A via recursal cabível para impugnar decisão conclusiva do incidente processual que reconhece suficientemente justificado pelo devedor a falta de pagamento é o agravo de instrumento. O credor, então, poderá interpor tal recurso visando à reforma da decisão.
Se a decisão for para rejeitar a justificativa do executado, então, restam-lhe duas opções: a propositura também do agravo de instrumento (com pleito de efeito suspensivo (CPC, arts. 527, inc.III c/c 558), posto que o referido recurso tem apenas efeito devolutivo (CPC art. 497) ou o remédio constitucional do Habeas Corpus em casos específicos. Tendo aquela primeira via recursal maior amplitude, servindo-se para reapreciar tanto questões de fato como de direito.
Se por um lado o ‘Habeas Corpus’ possui um procedimento dos mais sumários, constituindo-se em verdadeiro remédio heróico, nele as matérias a serem debatidas são restritas e de ordem essencialmente processual.
O habeas corpus nos termos da jurisprudência da Corte, não é via adequada para o exame aprofundado de provas e a verificação das justificativas fáticas apresentadas em relação à inadimplência do devedor dos alimentos e da necessidade dos alimentários.
(STJ, RHC nº13598, T-3, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 10.03.03).
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. AÇÃO DE ALIMENTOS. DECRETAÇÃO DE PRISÃO EM VIRTUDE DO NÃO PAGAMENTO DE PRESTAÇÕES ALIMENTÍCIAS. CONSTRANGIMENTO DO DEVEDOR. 1- Não pode ser apreciada em habeas corpus matéria relativa às razões para o não pagamento de prestações alimentícias. 2- Inexiste constrangimento ilegal se a prisão foi decretada por autoridade competente, que determinou o remédio constitucional de constrangimento do devedor de alimentos em decisão fundamentada, após exame procedido no processo civil. 3- Ordem denegada por maioria de votos, vencido o Relator.
(TJPE, HC nº 76265-6, Rel. Rafael Neto, 3ª. Câm.Crim. DJ 29-05-03).
Deve o decreto prisional ter sempre seu prazo definido (fixado). No mais, é oportuno esclarecer que eventual interposição de demanda revisional ou exoneratória de alimentos não interrompe nem suspende o prosseguimento da execução ou o decreto de prisão porque tais ações não possuem efeitos suspensivos relativamente às parcelas vencidas e vincendas.
NELSON NERYJÚNIOR [17] chama atenção para o que denomina ‘peculiaridades’ da prisão civil, in litteris:
A prisão civil não enseja os benefícios concedidos aos que se submetem à prisão criminal, como os da suspensão da pena, prisão domiciliar etc. Isto porque a medida coercitiva perderia sua finalidade, pondo a perder a própria credibilidade da justiça.
A jurisprudência também é relativamente pacífica neste ponto:
O benefício da prisão domiciliar não se estende, em tese, a prisão civil, pois esta não é pena, mas simples coação admitida para cumprimento de obrigação.
(STJ, HC nº3448, T-5, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ 25.09. 95).
Pela própria natureza da prisão civil por dívidas, uma vez pago o débito, deve a medida constritiva ser imediatamente relaxada por perda de objeto.
Frise-se por fim que o devedor poderá apresentar embargos à execução (condicionado à segurança do juízo pela penhora) ou qualquer outra medida autônoma para discutir o pretenso débito. Mas, servirão eles não para obstar a prisão em si, que não será revogada ou impedida, porém, para atacar o débito que a legitima.