RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar o contemporâneo enfoque sobre o direito penal denominado Justiça Restaurativa, sua gênese e desenvolvimento na cultura jurídica e doutrinária brasileira e internacional, bem como seus reflexos e desdobramentos no sistema penal e processual penal pátrio.
Palavras-chave: Pacificação. Justiça restaurativa. Reeducação delitiva do agente. Diálogo como solução de conflitos. Modelo alternativo ao sistema retributivo penal.
ABSTRACT: This project aims to analyze the contemporary focus on criminal law named Restorative Justice, its genesis and development in legal and doctrinaire culture both brazilian and international, as well as its repercussions and outcomes in the national criminal and criminal procedure system.
Keywords: Pacification. Restorative Justice. Criminal reeducation of the subject. Dialogue as a conflict solution. Alternative model to the criminal retributive system.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho abordou a sistemática da Justiça Restaurativa enquanto avanço histórico no âmbito do direito penal e processual penal, apresentando um levantamento contextualizado acerca de seu surgimento no ordenamento jurídico tanto brasileiro como internacional.
Após, foram conceituadas as práticas da Justiça Restaurativa; indicou-se o modelo atual adotado pelo Estado, a chamada Justiça Retributiva, seu histórico e evolução através das Teorias Finalistas da Pena como formas justificadoras da aplicação das sanções penais de caráter retributivo, vale dizer: as teorias absolutas (de retribuição) da pena, teorias relativas da pena (utilitárias ou utilitaristas) e as teorias ecléticas ou mistas; e, por fim, aprofundou-se sobre o sistema da Justiça Restaurativa como forma alternativa ao modelo penal e processual vigente sustentado pelo Estado.
Mais adiante, foram abordados os procedimentos e práticas do sistema restaurativo dentro das comunidades, relacionando-se os objetivos de tais práticas e realizando uma breve comparação ao meio extrajudicial de resolução de conflito denominado mediação.
Seguindo, trouxemos os efeitos práticos das práticas restaurativas, exemplificando com detalhes os resultados positivos obtidos por meio do diálogo proporcionado pelas atividades restaurativas, como, v.g., a reparação dos danos causados à vítima e o reestabelecimento dos vínculos interrompidos pelas práticas delituosas na comunidade dos envolvidos. Ressaltando-se a importância dos procedimentos restaurativos para os envolvidos, bem como para a comunidade como um todo, procurou-se aventar as consequências positivas de sua aplicação à sociedade de forma geral.
Por fim, em sede conclusiva, procurou-se dar azo à reflexão quanto às críticas declinadas ao referido sistema e os atuais desafios apresentados à Justiça Restaurativa como um modelo contemporâneo, logo a ser desbravado cientificamente.
2 CONTEXTO HISTÓRICO
No período absolutista o Estado era caracterizado pela concentração do Estado e o soberano no mesmo ente, afirmando que o poder soberano era concedido à figura do monarca através da força Divina. Na pessoa do rei, não se concentrava só o Estado, mas o poder legal e de fazer justiça. A pena nesse momento tinha como principal objetivo castigar alguém pelo mal cometido. Com o surgimento do mercantilismo, o Estado vem a iniciar um processo de decomposição e debilitamento, trazendo consigo o Estado burguês com ideologias do Contrato Social. Nesse plano, a pena começa a ter outra visão. Passa a ser analisada como uma “retribuição à perturbação da ordem (jurídica) adotada pelos homens e consagrada pelas leis. A pena é a necessidade de restaurar a ordem jurídica interrompida. À expiação sucede a retribuição, a razão divina é substituída pela razão de Estado, a lei divina pela lei dos homens” (BITENCOURT, 1993, p. 102).
Assim, com o passar do tempo, foi possível notar que o sistema precisava de melhorias, pois apresentava falhas em sua sistemática. As pessoas se sentiam desprotegidas e a justiça cada vez se tornava mais desacreditada. Surge uma nova forma, alternativa, de solucionar litígios de ordem criminal.
A Justiça Restaurativa é considerada uma conquista considerada contemporânea, tendo sua origem entre 1970 e 1980, sendo nela aplicados antigos costumes, baseando-se nos diálogos pacificadores, como também, construir certo discernimento do que é certo ou não a fazer, originados das civilizações de alguns países da Europa. Trata-se de uma medida em que, quando aplicada, visa que o menor se arrependa e se desculpe do ato cometido, de modo que a pessoa ofendida o aceite e perdoe.
Em 1977, foi escrito por Albert Eglash, um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution. Assim alguns tempos depois, em uma conferência, alguns participantes conseguiram enxergar que estava nascendo um novo modelo de Justiça.
A Justiça Restaurativa tem buscado métodos alternativos que sejam menos incisivos e com a mesma eficácia, para servir de respostas à prática criminosa. Essa nova forma de Justiça, busca responsabilizar alguém pela prática de seu ato, não através da sentença. O Infrator, não será levado ao banco dos réus. Ressalta-se que haverá então o uso da Justiça Restaurativa, levando o conflito a uma via alternativa, mais humanizada e comprometida com os efeitos na vida dos envolvidos.
Não se pode considerar como uma mera transação civil, e também não devendo ser vista como “forma privada de realização de justiça”. Deve ser analisada de forma que não seja tão flexível e informal quanto a mera justiça privada, nem tão rígida e formal quanto a justiça pública.
2.1 Justiça restaurativa e o sistema penal internacional
No ano de 1989, o movimento se consolidou no país da Nova Zelândia, onde o governo decidiu formalizar os processos restaurativos como uma forma de solucionar as infrações de adolescentes, reformulando todo o sistema que abrange a infância e a juventude. Isso foi baseado nos princípios restaurativos, onde houve pontos positivos logo no começo.
Os neozelandeses trouxeram o sistema da Justiça Restaurativa, em função das fortes reivindicações, de uma tribo denominada Maori. Naquele sistema, uma das vantagens era a de que o indivíduo não era retirado de sua família. O movimento se chamou “Children, Young Persons and Their Families Act”, aplicado aos tribais que não atingiram a maioridade penal. Dessa maneira, era possível responsabilizar quem tinha feito algum ato criminoso e em segundo plano reprimir novos impulsos delitivos, podendo então, a própria comunidade promover a reparação de danos das vítimas.
Há registros de que também a Alemanha tenha recepcionado a forma da Justiça Restaurativa, para solucionar problemas envolvendo os menores de idade, pois aparentava ser desburocratizada e seria uma via mais adequada de resolver os crimes de menor ofensividade, periculosidade, lesividade e reprovação social, fazendo assim, com que a justiça comum recaísse sobre casos de maior relevância e gravidade. Entende-se que a reparação do dano equivale a uma medida educativa, e vale dizer que o membro Ministério Público abre mão de não realizar o oferecimento da denúncia por ter esse entendimento sobre a reparação do dano. Mas, caso o menor infrator não realizasse a reparação do dano causado, ou também, não se reconciliasse com a vítima o processo seria iniciado.
Na Espanha, também foi aplicado aos crimes de menor gravidade, em que o agente é menor de idade. Quando cometido, era possível suspender o processo, havendo a reparação do dano e conciliação com o ofendido. Deve-se destacar, que a suspenção só ocorrerá, caso todas as obrigações e condições forem executadas.
2.2 Justiça restaurativa e o sistema penal no Brasil
A Lei nº 9.099/01 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro, os Juizados Especiais Civis e Criminais, sendo alocados estes aos crimes de menor gravidade, ou melhor, crimes de menor potencial ofensivo, cuja pena não ultrapassa o período de dois anos. Assim, a persecução penal que tratar de infração que respeitar esse teto poderá tramitar sob um procedimento diferenciado onde são adotadas medidas alternativas compostas por uma transação, conciliação e a suspensão condicional do processo.
Ao que diz respeito à Justiça Restaurativa, os Juizados prestam uma solução mais célere ao conflito. Cumpre também uma atenção especial à vítima, trazendo rapidez para solucionar o problema, sendo também notória a existência de relevante economia processual.
No Brasil, há pouco mais de uma década de uso da Justiça Restaurativa, a mesma ainda está em seu caráter experimental. Por enquanto, tem sido aplicada apenas em crimes envolvendo menor gravidade como tem sido feito em outros países.
A campanha Justiça Restaurativa do Brasil, tem sido impetrada em 15 estados brasileiros. São Paulo, Rio Grande do Sul e o Distrito Federal foram os pioneiros nas práticas restaurativas, desta forma ampliando maneiras de como o Poder Judiciário tem enfrentado os crimes e também a questão dos conflitos sociais.
No ano de 2005, na cidade de Porto Alegre, foi colocado em prática um projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, que tiveram seu foco nos processos judiciais da 3ª Vara, que, diga-se de passagem, tornou-se referência no impulsionamento das pesquisas e também das práticas inspiradas em um novo modelo de justiça. A medida foi aceita e começou a se difundir nas Varas da Infância e Juventude, dando ênfase na resolução de conflitos em detrimento à punição das transgressões.
Os resultados dessas iniciativas no Brasil têm demonstrado um grande avanço no processo de pacificação das relações sociais de forma que as práticas restaurativas acabam por se tornar, em muitos casos, mais efetivas do que aquelas obtidas via decisão judicial.
3 DEFINIÇÃO E CONCEITO
O fenômeno da Justiça Restaurativa é definido pelo britânico Tony F. Marshall como “um processo no qual as partes envolvidas em uma ofensa específica resolvem coletivamente como lidar com as consequências da ofensa e suas implicações para o futuro”. [3]
É, segundo a Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[4] (Fórum João Mendes Jr. – São Paulo/SP):
“um processo de resolução de conflito participativo por meio do qual pessoas afetadas direta e indiretamente pelo conflito (intersubjetivo, disciplinar, correspondente a um ato infracional ou a um crime) se reúnem voluntariamente e de modo previamente ordenado, para juntas (geralmente com a ajuda de um facilitador) estabelecerem pelo diálogo um plano de ação que atenda as necessidades e garanta o direito de todos afetados, com esclarecimento e atribuição de responsabilidades.”[5]
Instrumento pouco difundido e ainda abstrato para considerável parcela da população, a justiça restaurativa tem sido alvo de diversos estudos e produções científicas por parte da comunidade acadêmica e jurídica. As práticas restaurativas, sempre acompanhadas e supervisionadas por um órgão estatal (majoritariamente jurisdicional), têm se mostrado importantes ferramentas de integração comunitária, ressocialização e reeducação delitiva dos ofensores.
3.1 Justiça Retributiva
Preliminarmente ao estudo aprofundado do instituto da Justiça Restaurativa insta salientarmos o modelo judicial atualmente base do sistema penal em vigor, a chamada Justiça Retributiva.
O conceito de Justiça Retributiva consiste na própria retribuição do mal infligido pelo ato infracional através da imposição de uma sanção privativa de um direito, independentemente da justificativa desta imposição, as quais veremos adiante.
As teorias da natureza e fins da pena na Justiça Retributiva podem ser divididas em três grandes grupos: teorias absolutas (retributivas) da pena, teorias relativas da pena (utilitárias ou utilitaristas) e, por fim, as teorias ecléticas ou mistas (sendo estas as mistas entre as duas anteriores, adotando um viés bipartidário com relação ao caráter da pena).
Segundo as teorias absolutas[6] da pena a finalidade das penas aplicadas ao agente infrator se encontra na retribuição de um mal injusto, simplesmente pune-se quem cometeu o crime (punitur quia peccatum est). Pune-se o pecador ao mal injusto do crime pelo mal justo da pena. Dar fins sociais à pena feriria o próprio caráter do criminoso. De acordo com os clássicos defensores desta tese, a pena é a retribuição do mal pelo mal, segundo distintos fundamentos. Para Immanuel Kant a pena é um imperativo categórico de ordem moral, de maneira que o castigo é imposto por uma exigência ética, já que o mal da pena é consequência natural do delito. Já para Georg Wilhelm Friedrich Hegel, este imperativo categórico passa a tomar uma proporção jurídica e não mais ética ou moral. A pena anularia o delito sob este ponto de vista. Há também um terceiro fundamento para esta corrente atribuindo à pena um caráter divino (Bekker, Sthal). Como se denota, essa escola clássica desconsiderava a pessoa do delinquente ao concentrar esforços na justificativa retributiva (independentemente das teses de apoio) dos atos criminosos do agente, motivo pelo qual foi alvo de críticas à época.
Para as teorias utilitárias da pena a sanção é necessária à prevenção do delito. Os defensores desta corrente veem a pena como uma utilidade. É possível classificarmos estas teorias em subdivisões, quais sejam: de prevenção geral (positiva ou negativa) e prevenção especial. Segundo a corrente geral a função de prevenção da pena era dirigida à sociedade de forma genérica de duas diferentes maneiras, uma com função comunicativa[7] (positiva) e outra com função de intimidação[8] (negativa). Já com relação à prevenção especial, o caráter preventivo da pena tinha a finalidade de evitar com que determinado agente voltasse a delinquir, há o direcionamento especificamente ao criminoso. A pena evita e previne com que ele cometa novamente os crimes por este estar ou encarcerado ou eventualmente reformado.
Por último, sob o viés da teoria finalística mista da pena (adotada pelo Código Penal[9] de 1940), esta adquire um caráter tanto retributivo como utilitário, agregando para si as finalidades social e repressiva (punitur quia peccatum ut ne pecceptur).[10]
3.2 Justiça Restaurativa
A implementação da Justiça Restaurativa consiste na prática de uma série de medidas (denominadas medidas ou práticas restaurativas), judiciais ou extrajudiciais, para a resolução de conflitos no âmbito penal, com o final objetivo de promover a pacificação social e garantir a reparação dos danos materiais e imateriais causados pelo fato criminoso. Não mais se vê o crime como uma lesão ao Estado ou ao ordenamento jurídico, mas à pessoa do ofendido e as respectivas relações intersubjetivas. Tais medidas são regidas por um sistema próprio de princípios, os quais ordenam esse novo viés jurisdicional. É um sistema alternativo ao modelo estatal de Justiça Retributiva.
O conceito de pacificação social, objetivo máximo da jurisdição (logo, do sistema processual[11]), recebe, através deste novo enfoque, uma atenção especial, porquanto concebe pela primeira vez no âmbito do direito penal o envolvimento das vítimas, ofensores e comunidade com o fim de solucionar conflitos e reparar danos.
Ressalta-se a relevante alternatividade ao sistema retributivo por este não levar em conta os efeitos causados ao ofensor e desconsiderar o dano sofrido pela vítima ao se buscar apenas a vingança pública legitimada pelos órgãos e procedimentos da persecução penal.
4 PROCEDIMENTOS, OBJETIVOS E METODOLOGIAS
A Justiça Restaurativa engloba os indivíduos envolvidos no fato e o grupo social onde se encontram, por isso tem sido promovida por meio de programas comunitários[12] não necessariamente estatais (logo, não atrelados ao sistema criminal) organizados pela própria sociedade civil. O protagonismo social é um importante agente nas relações restaurativas.
No tocante ao andamento dos trabalhos, as práticas restaurativas podem ser comparadas ao instituto da mediação (meio extrajudicial de resolução de conflitos), na medida em que ambos são caracterizados pela horizontalidade da comunicação, ambos são ensejados através de um processo voluntário cooperativo e contam igualmente com um mediador ou facilitador do diálogo (ferramenta utilizada para lidar com os conflitos interpessoais)[13]. Porém, diferentemente da mediação, as medidas restaurativas abrangem não só as partes envolvidas diretamente no conflito, mas também aquelas indiretamente envolvidas, responsabilizando assim uma coletividade para a construção de planos de ação pela comunidade, enquanto que na mediação a responsabilização e os esforços são voltados às partes do conflito.
As práticas objetivam responsabilizar o agente em oposição a punir o mesmo, enfatizar respostas não violentas, fortalecer vínculos sociais e prevenir a violência, criar espaços de diálogo no âmbito comunitário (escolas e instituições de ensino e.g.), promover intervenções institucionais para reduzir a violência e disseminar princípios e valores restaurativos nas comunidades.[14]
É possível observarmos o funcionamento deste sistema através da metodologia implementada em um dos círculos restaurativos em Porto Alegre/RS, o projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” patrocinado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em parceria com o Ministério da Justiça:
“É um encontro entre pessoas diretamente envolvidas em uma situação de violência ou conflito, seus familiares, seus amigos e a comunidade. Este encontro, orientado por um coordenador, segue um roteiro pré-determinado, proporcionando um espaço seguro e protegido onde as pessoas podem abordar o problema e construir soluções para o futuro.
O procedimento como um todo se divide em três etapas: o pré-círculo (preparação para o encontro com os participantes); o círculo (realização do encontro propriamente dito) e o pós-círculo (acompanhamento). O Círculo não se destina a apontar culpados ou vítimas, nem a buscar o perdão e a reconciliação, mas a percepção de que nossas ações nos afetam e afetam os outros, e que somos responsáveis por seus efeitos.”[15]
O projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” se mostrou um expoente no combate à violência infanto-juvenil na cidade de Porto Alegre, comprovando a efetividade do movimento restaurativo.
5 EFEITOS PRÁTICOS ORIUNDOS DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS
Através do diálogo suportado pelo facilitador presente na atividade restaurativa, as partes serão conduzidas a transigirem sobre o conflito, acordando sobre a indenização à vítima e a reparação de eventuais danos causados pelo fato discutido. O termo celebrado entre as partes terá então força executiva no Poder Judiciário, podendo ser invocado em caso de futuro descumprimento.
A devida indenização ao ofendido, porém, não é a finalidade última das práticas restaurativas. Como dito anteriormente, a justiça restaurativa tem por objetivo fortalecer vínculos sociais e criar espaços de diálogo no âmbito comunitário. Por isso, sempre que possível, são visadas nas reuniões, tanto a restauração das relações anteriores aos danos causados, como a projeção deste processo pacificador, objetivando evitar novos conflitos no futuro da população envolvida.
5.1 Reeducação delitiva e reflexos inter partes
Por meio da Justiça Restaurativa foram encontrados meios diversos de o Estado lidar com a prática delitiva nos centros urbanos. Tendo em vista o objetivo de fomentar a reintegração dos agentes criminosos e reinseri-los na sociedade, quebram-se os paradigmas gerados pelos conceitos tradicionais de justiça, paradigma estes onde aquele que ocasionou o dano deve ser punido e nada mais.
A reeducação delitiva deveria ser um dos pilares do sistema penal vigente, proporcionando condições de ressocialização ao indivíduo na situação de apenado. O acompanhamento patrocinado pelo sistema restaurativo possibilita a reinserção do agente na comunidade, suprimindo os processos de marginalização da sociedade para com o indivíduo, daí a importância do acompanhamento não só individual, mas de todo o grupo social.
Sobre o conjunto de vantagens ao ofensor, ora reintegrando, que os sistemas penais alternativos (incluindo-se a Justiça Restaurativa) proporcionam, manifesta-se Luiz Flávio Gomes:
“O modelo penal alternativo inegavelmente conta com enorme potencialidade ressocializadora e reúne capacidade, ademais, tanto quanto avaliam os Documentos da ONU, de servir de instrumento para a preservação da segurança (prevenção de delito), sem necessidade de se recorrer à traumática pena de prisão, isto é, ao encarceramento desnecessário do infrator.”[16]
Com relação aos envolvidos, terão estes uma atenção diferenciada por parte do Estado por serem incluídos no procedimento persecutório penal do acusado, uma vez que efetivamente participarão na busca do bem comum às partes envolvidas, sejam estas vítimas ou ofensores. Não mais estarão as vítimas em posição de fragilidade e desamparo (sintomas estes da própria justiça tradicional), pois o próprio Estado, contemplaria um acompanhamento próprio das práticas restaurativas.
Ante isto, torna-se concreta a argumentação de Leonardo Sica sobre as medidas que o sistema penal contemporâneo deveria contemplar:
“Por essas razões, importa concluir que é prioritária a definição de alternativas penais que evitem ao máximo afastar o condenado do convívio social e, ainda, favoreçam a formação e a consolidação dos valores rompidos pela prática delituosa”.[17]
5.2 Reflexos erga omnes
O rol de beneficiados da difusão do sistema restaurativo na sociedade envolve todo o corpo social, na medida em que reintegra o agente ofensor, visa à reparação do dano causado à vítima e proporciona à comunidade um bem estar social idealizado pelo legislador prima facie.
É nítida a influência positiva que o processo de integração social exerce sobre a comunidade na qual é concebido. Nas palavras de Luiz Flávio Gomes:
“Traz vantagens para o autor do fato punível (que não é inocuizado, segregado, separado da família, do trabalho etc.), para a vítima (porque desse modo abre-se a perspectiva da reparação dos danos ou outros tipos de prestações), bem como para a sociedade (que alcança a meta da segurança com menores custos e da prevenção do delito com a alta redução da taxa de reincidência).”[18] – LFG sobre o modelo penal alternativo ao clássico.
6 CONCLUSÃO
Até então, foi demonstrada que a utilização desse novo modelo de justiça tem funcionado e tem conseguido realizar o principal objetivo de promover a paz e consecutivamente, trazer um discernimento positivo, fazendo o infrator ver o mal causado à coletividade e posteriormente se arrependendo.
Tem funcionado de maneira efetiva em diversos países, envolvendo, em sua maioria, conflitos ocasionados por menores infratores. Com a concretização de atos classificados como de menor potencial ofensivo, esse sistema opta pela não punição ordinária, como os detentos comuns, os menores infratores, por sua vez, são submetidos a uma segunda chance, tendo um tratamento diferenciado (no qual está inclusa a possibilidade de punição, porém de forma distinta).
Neste momento é necessária uma análise atenta ao instituto estudado, pois, por trabalhar com um tratamento mais brando a pena pode ser superficialmente taxada como uma mais tranquila. Portanto, pode o leitor criar espécie de roupagem ineficaz a este novo modelo quando do momento da curatela daqueles responsáveis pelo ato ilícito. Se tal afirmação (a perda da efetividade dos atos restaurativos) se concretizar no futuro, teremos em mãos uma situação no mínimo preocupante, afinal, gerar-nos-ia insegurança, pois, na verdade, não atingiria seu primordial objetivo que é construir no individuo um consenso baseado em um ato cometido que é desaprovado pela coletividade e que através de uma punição, ele tenha uma segunda chance e não o cometa mais. Essa crítica baseia-se no dito popular de passar a mão na cabeça do infrator, pois a sociedade que vivemos clama por uma justiça que visa à responsabilização total do autor do crime, traduzindo-se esse clamor em outro ditame, este oriundo da lei de Talião – olho por olho, dente por dente.
Outra crítica ao sistema é encontrada no estudo do defensor público cearense Delano Câncio Brandão, onde fica demonstrado que a aplicação desse modelo alternativo de solução de conflitos pode resultar em eventual estímulo à vingança privada. Segundo ele, parte da doutrina contrária à sua incidência defende que a mesma implica num retrocesso, pois se estaríamos abrindo mão da justiça imposta pelo Estado, cogente, imperativa, em favor de um sistema privatizado e vazio de garantias favoráveis à autotutela.
Um dos desafios enfrentados pela Justiça Restaurativa é o ideal tradicionalista arraigado na cultura político-jurídica brasileira, onde o juiz, representante do Estado, é responsável por impor verticalmente a pena ao infrator. A tradição de conceder ao Poder Público a totalidade da prerrogativa de punir, trajada de jus puniendi, mostra-se uma barreira de difícil penetração, pois tais dogmas do judiciário deixam as práticas restaurativas de fora das agendas estatais.
A Justiça Restaurativa se mostra um instituto recente, devendo este ser cautelosamente estudado. Ainda há lacunas as quais precisam ser preenchidas pelo estudo e produção científica por parte da comunidade jurídica e acadêmica do direito.
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[3] No original: “Restorative Justice is a process whereby parties with a stake in a specific offence collectively resolve how to deal with the aftermath of the offence and its implications for the future. “ MARSHALL, Tony F. Restorative Justice: An Overview. 1999. p. 05;
[4] São Paulo compõe um dos três estados pioneiros na implementação das práticas restaurativas no Brasil ao lado do Rio Grande do Sul e Distrito Federal. – Fonte: Associação dos Magistrados Brasileiros: Disponível em: <http://www.amb.com.br/jr/index.php#conteudo>, Acesso: 09/02/2016.
[5] Consulta na internet, acesso em 09/02/2016. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/EGov/InfanciaJuventude/Coordenadoria/JusticaRestaurativa>
[6] Um importante avanço conquistado por estas teorias foi o caráter de proporcionalidade da pena, o qual é responsável por mensurar com razoabilidade a pena imputada ao injusto cometido; quanto mais grave o crime, maior será a pena cominada.
[7] Há um estímulo positivo para a confiança no direito quando um sujeito visualiza a punição de um semelhante pela prática de atos incompatíveis com o ordenamento jurídico;
[8] Há aqui um estímulo negativo por parte do Estado em relação à sociedade, ao passo que o sujeito punido é utilizado de exemplo para os demais como forma de intimidação (implica na não incursão posterior dos membros da sociedade naquela prática delitiva por temor tanto ao Estado quanto à própria sanção) garantindo a efetividade coletiva da sanção penal e não apenas de sua forma singular como na Escola Clássica.
[9] Artigo 59, “caput”, CP: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (grifo nosso).
[10] Sobre as teorias ecléticas, pronuncia-se Mirabete: “Passou-se a entender que a pena, por sua natureza, é retributiva, tem seu aspecto moral, mas sua finalidade é não só a prevenção, mas também um misto de educação e correção.” - MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal - Parte Geral. 2001, p. 245;
[11] O sistema processual, segundo Cintra, Grinover e Dinamarco, pode ser definido como “a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício.” – CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 1998. p. 170.
[12] A equipe Justiça em Círculo, fundada em 13 de maio de 2006, atuante no estado de São Paulo, faz parte de um projeto que trabalha com o intuito de implantar práticas de Justiça Restaurativa em diferentes contextos: escolar, socioeducativo, judicial, organizacional, de vizinhança, entre outros. Mais informações em: <http://mediativa.org.br/>
[13] Meirelles, Cristina T. Assumpção. Justiça Restaurativa como um método de resolução de conflitos. 2010. p. 09;
[14] Justiça Restaurativa Justiça em Círculo MEDIATIVA. Acesso em 10/02/2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=j23BwxFFcrc>
[15] Consulta na internet, acesso em 11/02/2016. Disponível em: <http://www.cidadessustentaveis.org.br/boas-praticas/justica-restaurativa-para-resolucao-de-conflitos>
[16] GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. 2000, p.101;
[17] SICA, Leonardo. Direito penal de emergência e alternativas à prisão. 2002, P. 61.
[18] GOMES, Luiz Flávio. Penas e medidas alternativas à prisão. 2000, p.101.