Capa da publicação Iter criminis: fim dos atos preparatórios x início dos atos executórios
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A emblemática distinção entre o término dos atos preparatórios e o início dos atos executórios no iter criminis

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3. O ITER CRIMINIS E SUAS FASES

Em vista à hodierna adoção do pensamento finalista pela ciência penalista, conforme já explanado, tem-se que o delito é uma atividade complexa, dotada de diversos elementos, dentre eles, o elemento objetivo mais importante, que é a conduta. Consequentemente, conforme outrora elucidado, tal conduta há de ser envolta pelo elemento volitivo (dolo), direcionado à um resultado constante na legislação criminal como típico.

A conduta, de forma abrangente, será todo o complexo de atos realizados pelo agente no afã de atingir o resultado almejado tipificado em seara penal; será a ação ou a omissão do sujeito, pela qual percorrerá determinadas etapas para o alcance daquele fim. Justamente a este percurso, que avança sobre diversas fases, é que se denomina iter criminis.

Com efeito, o iter criminis é o “conjunto de etapas que se sucedem, cronologicamente, no desenvolvimento do delito [...] um processo contínuo, ininterrupto”57, que também pode ser sinteticamente definido como “o decurso da realização criminosa”58, cuja a cogitação compõem sua fase interna, enquanto a preparação, a execução e a consumação formam sua fase externa.59

Nos dizeres do mestre Hans Welzel “[...] o delito consumado, desde a decisão da ação até a completa concreção (realização), passa por uma sucessão continuada de etapas de concretizações parciais.”60 Com isso, “há um caminho que o crime percorre, desde o momento em que germina, como ideia, no espírito do agente, até aquele em que se consuma no ato final.”61

Desta feita, o iter criminis é o desenrolar da conduta humana, no sentido de transformar a ideia construída no intelecto do agente em uma realização material e externa, objetivando gerar um resultado danoso.

No entanto, nem todas as fases do percurso mencionado é atingida pelo interesse penal, o que obriga-se a uma menção sintética de cada fase que lhe constrói, a título de contextualização para uma posterior imersão na distinção tema do presente estudo, o real interesse da legislação penal.

3.1. Cogitação

São poéticas as palavras que definem os atos de cogitação alegando que estes “são os atos internos que percorrem o labirinto da mente humana, vencendo obstáculos e ultrapassando barreiras que porventura existam no espírito do agente.”62 É a etapa, conforme mencionado outrora, que se opera no íntimo do agente, objetivando a prática delitiva.

No entanto, conforme já mencionado, necessário é a externação do pensamento para que se inicie ao menos a expectativa de lesão à qualquer bem jurídico. Desta feita, configura-se indispensável a realização de uma conduta, transformando a mera idealização em um conteúdo concreto, material e passível de averiguação. Ora, o direito visa a proteção ao bem jurídico, à uma ordenação social, cuja ameaça somente lhe será possível caso haja uma conduta externa tendente a tal objetivo. Neste sentido:

Se o direito penal não visa, ao menos directamente, contribuir para a modelação moral do indivíduo, mas proteger uma ordenação social, só a violação desta ordenação – e assim, a conduta externa do agente – pode constituir um ilícito. A decisão de realização analisa-se num puro processo interior, insusceptível, em si mesmo, de violar interesses socialmente relevantes.63 (grifo do texto)

Neste prumo, tem-se que a decisão da realização de determinada conduta não é punível, seja porque o direito penal mira a proteção efetiva de uma ordenação social e que apenas a idealização de uma conduta é insuficiente para lhe causar uma violação, bem como porque há uma inviabilidade em aferir a existência ou não de tal pensamento. Nos dizeres de Welzel,

A simples decisão de ação não é, contudo, punível: cogitationes pœnam nemo patitur (ninguém pode sofrer pena pelo pensamento). [...]; isto, não somente porque a mera vontade não é ainda captável, e porque a moralidade não pode ser imposta, mas, também, pelo abismo profundo que separa, ao fim e no final, o pensamento do fato.64

No entanto, apesar da imprescindibilidade da externação do plano delitivo, não é qualquer transcendência que originará uma atuação estatal. Além dos atos preparatórios – os quais se discutirá adiante – há de se ressaltar que “a manifestação da vontade do agente através da palavra ou de outro meio simbólico [...] não é típica, porque a tipicidade proíbe um grau de iter criminis que não surja normalmente, representado exclusivamente pela palavra.”65 Neste sentido, menciona-se que “nem mesmo a cogitação externada a terceiros levará a qualquer punição, a não ser que constitua, de per si, um fato típico, como ocorre no crime de ameaça (art. 147), de incitação ao crime (art. 286), de quadrilha ou bando (art. 288) etc.”66

Ademais, não somente a impossibilidade de se adentrar no âmbito interno de cada agente que é óbice para a sua punição. A Constituição Federal de 1988, ao adotar o Estado Democrático de Direito, enfatiza em seu art. 5º, através dos incs. IV, VI, VII, VIII, IX e art. 220, a liberdade de pensamento, cuja punição, acarretaria uma lesão a tal princípio:

Mas, para além de não existirem critérios capazes de aferir, com um mínimo aceitável de segurança, a validade destes juízos prognósticos de probabilidade – outra coisa se dirá se na sua base está já o cometimento de um ilícito-típico, ao menos sob uma qualquer forma inicial –, a punição de puras resoluções violaria frontalmente o princípio democrático da liberdade de pensamento e consciência.67

3.2. Preparação

Apesar da inconteste necessidade de uma conduta que concretizará o ideal imaginado pelo agente, diga-se que “nem todo fazer em que se transforma a má decisão já é um delito.”68 Considerando que “delito é a lesão socialmente intolerável que choca especialmente com a ordem da comunidade”69, os atos preparatórios, têm, como o próprio nome assim o faz entender, a função de preparar e possibilitar a prática delitiva, configurando-se em uma “conduta imediatamente precedente à da execução.”70

Ademais, vislumbrando-se que o art. 14, inc. II do Código Penal afirma ser punível apenas os atos executórios, tem-se que, pelo princípio da reserva legal, vislumbrado pela Constituição Federal e pelo citado digesto, é impossível a punição dos atos preparatórios (em regra), haja vista a ausência de uma relação típica entre a conduta e o tipo legal. Por outro lado, para a viabilidade da punição da tentativa, como se verá adiante, ao contrário dos atos preparatórios, ocorre o fenômeno da adequação típica mediata, constituindo o dispositivo penal mencionado uma norma de extensão do tipo legal.71

Desta feita, sob uma perspectiva formal-legal, os atos preparatórios não são puníveis porque “[...] impõe-se logo na medida em que os actos preparatórios não se encontrem descritos ou referidos na generalidade dos tipos legais e não constituam, por isso, pontos de apoio possíveis de uma responsabilização penal.”72

No entanto, como a praxe na ciência penalista é que toda regra comporta exceções, os atos preparatórios, em casos específicos previstos pelo próprio legislador, serão atingidos pela repressão penal. A primeira hipótese de alcance dos atos preparatórios é quando o legislador tipifica os atos preparatórios, transformando-os em um tipo legal independente, como na hipótese de “atribuir-se falsamente autoridade para celebração de casamento” (art. 238), ato preparatório para a simulação de casamento (art. 239); possuir “substância ou engenho explosivo, gás tóxico ou asfixiante” (art. 253), que é preparatório dos crimes previstos nos arts. 251. e 252; “possuir ou guardar maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer objeto especialmente destinado à falsificação de moeda” (art. 291), preparação do crime de falsificação de moeda (art. 289); “possuir ou guardar objeto especialmente destinado à falsificação de selo destinado a controle tributário, papel de crédito, vale postal, cautela de penhor, etc. (art. 294), que é preparação do crime de falsificação de papéis públicos, previsto no art. 293; “associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes” (art. 288) que também é considerado ato preparatório dos crimes que se almeja praticar.73

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Os autores Zaffaroni e Pierangeli enunciam em sua obra outra hipótese de punição pelos atos preparatórios quando ocorre uma extensão da tipicidade, ampliando-a para que alcance o ato preparatório, sem transformá-lo em tipo independente. Exemplo disso ocorre no art. 152. do Código Penal Militar, onde se pune o concerto entre militares ou assemelhados no sentido de praticar o crime de motim, previsto no art. 149. do mesmo Codex. 74

3.3. Execução

O art. 14, inciso II do Código Penal, anuncia que “diz-se o crime: tentado, quando, iniciada a execução [...]. Desta feita, o atual ordenamento jurídico brasileiro se limitou a apenas a utilizar o vago e indefinido termo “começo de execução,” para configurar o início da atuação estatal. No entanto, o Código Penal Brasileiro não destoa de grande parte do ordenamento comparado, sendo que o termo “começo da execução” já estava presente no Código de Napoleão, em 1832,75 bem como no Código espanhol de 1822, em seu art. 5º. Ademais, a mesma expressão se encontrava no Código austríaco (art. 8º), em praticamente todos os Códigos da Suíça, no digesto belga (art. 51), no ordenamento alemão de 1871 (art. 43), além do Código italiano de Zanardelli (art. 61) e no espanhol de 1870 (art. 3º).76

Desta feita, antes de partir para uma delimitação do início do mencionado “começo da execução” (o que é “sumamente problemática”77), necessário se faz emergir o entendimento de que, independentemente de qual o momento em que se opere aquela delimitação, os atos executórios são aqueles atingidos pela reprimenda penal, tendo em vista que se configuram o início de uma conduta reprovável juridicamente e que já se constituem uma ameaça ao bem jurídico protegido pelo ordenamento penalista. Nas palavras do mestre Hans Welzel:

Um fazer punível tem como início, em princípio, onde o autor começa a executar a ação ético-socialmente intolerável em si, vale dizer, na tentativa. Como o injusto punível não reside somente no pensamento da lesão de um bem jurídico, mas, precisamente, na índole da comissão (no desvalor da ação), que está descrita expressivamente no tipo, assim começa a fazer merecedor de pena na atividade com a qual começa o autor para executar imediatamente a ação adequada ao tipo.78

Com isso, tendo-se em vista o início da mencionada “ação ético-socialmente intolerável”, direcionada ao alcance do objetivo ilícito, abstrai-se que o dolo encontrado nos atos executórios é o mesmo elementar descoberto no crime consumado, formando-se desta maneira, uma completa tipicidade subjetiva, por estarem presentes, nos atos executantes, todos os elementos subjetivos de determinado delito. Por outro lado, em um aspecto objetivo, o preenchimento ou a realização dos todos os requisitos do tipo legal, origina a tipificação objetiva, presente, desta vez, no delito já consumado. Deste modo, nos atos executórios – ou, na tentativa – ocorre a atipicidade objetiva, mas permanece a tipicidade subjetiva. 79

Com isso, é por tal motivo que o doutrinador Jorge de Figueiredo Dias, alega que “como realização dolosa parcial de um tipo de ilícito objetivo ela (a tentativa) representa uma violação do ordenamento social jurídico-penalmente relevante por meio da intranquilidade em que coloca os bens jurídicos-penais.”80 Esta intranquilidade jurídica, atuara como um dos fundamentos para a punição da tentativa, como se verá logo adiante.

3.4. Consumação

Quando ocorre a reunião de todos os elementos constantes na definição legal de um delito, diz o crime consumado, por força da disposição do art. 14, inciso I, do Código Penal, ou, em outras palavras, consuma-se o crime “quando o fato concreto se subsume no tipo abstrato descrito na lei penal,”81 ou “quando o tipo de injusto objetivo se encontra também plenamente realizado.”82 Seguindo o raciocínio demonstrado no tópico anterior, há a consumação quando ocorre a tipicidade objetiva dos atos em prática.

Por outro lado, Jorge de Figueiredo Dias, acobertado também pelo cânone Hans Welzel, exorta que é necessária realizar a distinção entre a consumação típica ou formal e a consumação material, terminação ou conclusão, tendo em vista a tipificação, pelo legislador, de delitos que são eminentemente atos de tentativa, ocasião em que ocorre uma antecipação da consumação.83 Conceitua-se a primeira como o mero preenchimento dos elementos do tipo penal e a segunda, “dá-se apenas com a realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação, [...]”. 84 Desta feita, tem-se que, para a real consumação de determinado delito, de forma a tornar atípica a tentativa, é necessário que ocorra o conteúdo ilícito do crime, atingindo-se o bem jurídico legalmente protegido pelo tipo legal.

Dito tais conceitos e com eles situando o problema-tema proposto pelo presente trabalho, caminhar-se-á mais um passo convergente à discussão daquele, apresentando, destarte, os fundamentos que justificam a punibilidade dos atos executórios para posteriormente, analisar as teorias que buscam o momento que os distinguem dos atos preparatórios.

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Sobre o autor
Marco Aurélio da Silva Oliveira

Advogado Criminalista. Graduado na Unipac Bom Despacho. Pós-graduando em Direito Penal pelo Damásio Educacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marco Aurélio Silva. A emblemática distinção entre o término dos atos preparatórios e o início dos atos executórios no iter criminis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7709, 9 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47052. Acesso em: 14 dez. 2024.

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