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O regime jurídico do direito de manifestação

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6. Há a necessidade ainda do elemento formal: um mínimo de coordenação, com aviso prévio[26] - e não autorização - à autoridade competente, desde que não frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local.

A manifestação deve possuir um mínimo de coordenação. A agremiação de pessoas, em uma determinada localidade, com a mesma finalidade, não é possível sem que haja um mínimo de organização e liderança. Essas características, na prática, são essenciais para o legítimo exercício do direito, tal como a proibição da manifestação violenta. Conforme ensina Gilmar Mendes, “O ajuntamento espontâneo em torno de um acontecimento inesperado na rua não espelha a figura protegida constitucionalmente.”[27]

O aviso prévio decorre da necessidade de apresentar à autoridade competente informações fundamentais para que ela possa atuar conjuntamente aos manifestantes no interesse não só destes, como também da manutenção da ordem pública e da proteção de terceiros que não estejam participando do evento; com o objetivo de viabilizar na prática o exercício desse direito.

É imprescindível que seja informado às autoridades o dia, data, hora, local, percurso, duração, finalidade e objetivo do evento, bem como os organizadores e seus respectivos domicílios.[28] Essas informações serão fundamentais, inclusive, para evitar manifestações colidentes. A própria Constituição estabelece a obrigatoriedade de não haver a frustação de outra reunião previamente convocada para o local. E o aviso prévio será fundamental qual manifestação foi convocada primeiro.

Apesar de não existir norma infraconstitucional disciplinando o aviso prévio, entende-se que esta é uma norma autoaplicável. E por ser uma exigência constitucional para o exercício de um direito fundamental, devemos entender que ele pode ocorrer de forma extremamente simples, sendo importante apenas a apresentação das informações fundamentais para a sua finalidade, e não o seu formalismo. Por conseguinte, é possível entender que a publicidade e a discussão que precedem às manifestações servem como aviso prévio às autoridades competentes, desde que possuam as informações necessárias e tempo hábil para a Administração Pública tomar as medidas necessárias para a manutenção da ordem pública e proteção dos direitos fundamentais. Este também é o entendimento do Tribunal Constitucional Alemão no BVERFGE 69, 315 – BROKDORF.

Com o aviso prévio, não se busca o consentimento do Estado, mas tão só a sua atuação para viabilizar o exercício do direito. A Constituição deixou esse entendimento explícito ao dispensar expressamente o ato administrativo da autorização, que é uma solicitação do particular à Administração para o exercício do direito, cuja vontade do ente público é unilateral, discricionária e precária.

O não aviso prévio à autoridade competente pelo particular não deve ser motivo automático para a proibição ou dissolução do evento. Apesar da irregularidade perpetrada pelo particular, caso a manifestação não coloque em perigo a ordem pública nem em via iminente de transgredir os direitos fundamentais de terceiros, não se justifica a sua proibição ou dissolução.

Dessa forma, não cabe à Administração Pública se opor ao exercício do direito de reunião, salvo como medida derradeira em situações extremas, tal como o iminente perigo de transgressão da ordem pública ou violação de direitos individuais de terceiros, como a violência ou a situação em que o trajeto previsto pelos organizadores inviabilize o trânsito local.

De toda forma, é interessante que os organizadores da manifestação atuem em conjunto com o Poder Público, de forma a dialogar sobre a melhor forma de viabilizar o exercício do direito[29]. Conforme o Tribunal Constitucional Alemão, o estabelecimento de um diálogo, com o contato pessoal, entre os organizadores e os órgãos de segurança, com a troca de informações sobre a manifestação e as medidas necessárias à sua perfeita ocorrência é fundamental para gerar confiança mútua, o que facilitará no domínio da resolução de situações imprevistas (BVERFGE 69, 315 - BROKDORF).


4. INTERVENÇÕES RESTRITIVAS AO DIREITO DE MANIFESTAÇÃO

Discutido o regime jurídico do direito de manifestação, cabe agora analisar a possibilidade de intervenção restritiva do Estado sobre o direito de manifestação, seja através do legislador, seja através da Administração Pública, com fulcro em seu poder de polícia.

Não há direito fundamental ilimitado. Por isso, a limitação aos direitos fundamentais é justificada pela necessidade de preservar outros direitos fundamentais, ainda que de forma indireta, ou em virtude da definição e critério para caracterizar os conceitos abertos previstos como requisitos para o exercício do direito.[30]

O art. 5º, inc. XVI, da Constituição Federal de 1988, é autoaplicável[31] ao disciplinar o direito de reunião e, por conseguinte, o direito de manifestação. Por sua vez, a norma (reserva legal implícita) pode estabelecer restrições ao direito com objetivo de realizar a ponderação dos valores presentes nos direitos fundamentais ou conferir a definição ou critérios definidores dos conceitos abertos trazidos pelo dispositivo constitucional, tal como acontece com a Lei Orgânica da Espanha n.º 9/83 e a Lei de Reuniões e Passeatas, de 24 de julho de 1953, na Alemanha.[32]

No entanto, a regulação do direito de reunião não pode se dar ao ponto de esvaziar o núcleo fundamental desse direito, sob as vestes de organizá-lo em sua definição. As restrições deverão atender, portanto, ao princípio da proporcionalidade/razoabilidade[33] e, por conseguinte, seus subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. 

Esse foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1969. O objeto da ADI era discutir a constitucionalidade do Decreto do Governador do Distrito Federal que limitava as manifestações não-silenciosas nas proximidades das sedes dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo federais e da Sede do Governo Distrital, por poderem “causar incômodos à população em geral, em especial àqueles que se encontram exercendo atividade laboral”. O Relator entendeu que: (a) as limitações estabelecidas, como a “manifestação silenciosa”, eram desproporcionais e inadequadas, o que esvaziaria o direito fundamental de manifestação, já que os órgãos públicos, por sua própria natureza e finalidade, são, em regra, os alvos das manifestações e a proibição sonora impediria a livre expressão do pensamento; (b) só é cabível as restrições que objetivem tutelar bem jurídico de igual relevância.

O Brasil é signatário de Tratados e Convenções internacionais que protegem o direito de manifestação. Nesses Tratados, os quais ingressam no ordenamento jurídico brasileiro como norma supralegal, reafirma-se a possibilidade de restrição por lei (reserva de lei) em face de outros direitos fundamentais de igual importância. É o caso, por exemplo, do art. 21 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,[34] direito de reunião pacifica será reconhecido. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a moral pública ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. (grifo nosso)

O art. 21 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos dispõe, portanto, que as restrições ao direito de manifestação são reservadas à lei e apenas com a ponderação necessária para proteger o: (a) interesse da segurança nacional; (b) segurança; (c) ordem pública; (d) saúde; (e) moral pública; (f) direitos e liberdades das demais pessoas.

Nesse mesmo sentido, há ainda o artigo 15[35] da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[36] e o artigo 20º, 1,[37] da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Ademais, a lei deve se ater a regular os requisitos estabelecidos pela constituição. Não cabe à lei estabelecer requisitos outros que não os previstos no texto constitucional, sem que fira os direitos fundamentais. Se a Constituição entende que apenas determinados requisitos são essenciais, não cabe ao legislador infraconstitucional aumentar o rol sem limitar de forma inconstitucional o exercício do direito fundamental em questão.

É o caso da Lei Estadual do Rio de Janeiro n.º 6528, de 11 de setembro de 2013, que estabelece, em seu artigo 3º, os requisitos para o exercício ao direito de reunião e, dentre eles, a proibição do “uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação” (inciso IV). Entendemos inconstitucional o acréscimo deste requisito por limitar de forma inconstitucional um direito fundamental, sem resguardo constitucional.[38]

A Constituição deve ser interpretada como um sistema, em seu todo.[39] Apesar de o artigo 5º, inc. IV, da CFB/88, dispor que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, o seu sentido é direcionado à liberdade de expressão de caráter individual, com o fito de evitar a afronta aos direitos dos indivíduos, tal como a honra, imagem, privacidade etc, com o intuito de possibilitar a responsabilização nas hipóteses cabíveis; em uma ponderação de valores realizada pelo legislador constitucional. Este entendimento não é aplicável às manifestações, que possuem um caráter coletivo e têm em seu núcleo o princípio democrático e republicano; sob pena de esvaziar o seu conteúdo ou criar uma barreira que inviabilize a sua prática.

Devemos questionar também a possibilidade de intervenção restritiva no exercício desse direito pela Administração Pública, no caso concreto. A priori, percebem-se duas situações em que é possível questionar se a Administração Pública, no exercício do seu poder de polícia, deve intervir (ou não) nas manifestações: (a) em razão de a manifestação não observar o regime jurídico constitucional, ou seja, os requisitos constitucionais para o seu exercício legítimo; (b) em razão de o objeto da manifestação ser contrário aos valores constitucionais.

Antes da análise, importa salientar que a intervenção restritiva ao exercício de manifestação é uma medida extrema, que deve ser aplicada de forma derradeira pela Administração Pública, após cumprida a exigência do dever de proporcionalidade. E tal medida só pode ser aplicada quando colocar em risco a violação de um bem jurídico de igual relevância, tal como a segurança, ordem pública e o direito de liberdade das demais pessoas.[40]

Como observado no item anterior, a legitimidade das manifestações deriva da observância dos seguintes requisitos: (a) reunião pacífica, sem armas; (b) local aberto ao público; (c) não frustação de outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local; e (d) aviso prévio.

A violação dos requisitos (a), (b) e (c) tem maior potencialidade de macular a manifestação com o vício de inconstitucionalidade, por entrar, desde o início, em rota de colisão com o direito de terceiros, a segurança ou a ordem pública. Salienta-se, no entanto, que a violência por indivíduos isolados, minorias de manifestantes e pessoas externas à manifestação não tem o condão de torna-la inconstitucional (ver item anterior). Por outro lado, a ordem de proibição da manifestação é constitucional quando “do prognóstico se depreende, com grande probabilidade, que o organizador e seus seguidores têm a intenção de praticar ações violentas ou, ao menos, que aprovam esse comportamento por terceiros.”[41]

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A questão sobre o local aberto ao público deve ser observada sob a natureza do local, se privado ou público. Manifestações em propriedade privadas, embora de natureza aberta ao público, como um Shopping Center, deve estar sob o crivo dos seus proprietários, os quais, inclusive, terão responsabilidade perante terceiros em caso de dano. Ora, se estes têm o dever perante terceiros nos danos ocorridos dentro do seu estabelecimento, é certo que eles também têm o dever de prezar pela ordem quando indivíduos venham alterar a dinâmica normal do seu funcionamento.

No entanto, a simples falta de aviso prévio não é razão suficiente para interditar ou paralisar uma manifestação, sem que esta tenha, ao menos, potencialidade de ferir direitos de terceiros. De toda forma, devemos lembrar que a intervenção restritiva ao direito fundamental de manifestação deve ser a medida última a ser adotada. Assim, caso seja possível haver o contorno dos aspectos negativos decorrentes da manifestação, mesmo que não tenha havido o aviso prévio, é dever do Poder Público viabilizar tal direito da forma mais eficiente possível.

O Tribunal Constitucional Alemão já decidiu, no BVERFGE 69, 315 – BROKDORF, que a proibição de toda manifestação pressupõe a ultima ratio; somente após ter fracassado os demais meios para a sua continuidade, como a cooperação com os manifestantes pacíficos ou impossibilidade de diálogo por culpa dos manifestantes.

Ainda conforme esse Tribunal Constitucional Alemão, é possível a autoridade competente exigir determinadas obrigações para a boa realização da manifestação, com objetivo de garantir a segurança pública, ordem pública e a proteção dos direitos de terceiros, através da realização de um prognóstico do perigo, que não atendida essas exigências e esgotado os demais meios de solução do problema, é legítima a proibição preventiva da manifestação (BVERFGE 69, 315 - BROKDORF).

De forma contrária, o Supremo Tribunal Federal entendeu, de acordo com o voto do relator na ADI n.º 1969, que a polícia nunca pode atuar de forma preventiva, mas apenas para conter excessos em momento posterior, sempre conforme a razoabilidade, sob pena de responsabilização criminal os agentes públicos que intervierem, restringirem, cercearem ou dissolverem a reunião pacífica, sem armas, convocada para fins lícitos.

Por fim, urge questionar se a constitucionalidade dos diversos objetivos da manifestação, ou seja, a manifestação com a finalidade de alterar o sistema jurídico para transformar um crime em algo lícito, como, por exemplo, a “marcha da maconha de 2008”.

Como afirmarmos no início do presente trabalho, o sistema jurídico seleciona expectativas da sociedade e a transforma em normas jurídicas, através de um processo democrático de criação normativa. A manifestação deve ser entendida, dentre outras coisas, como uma forma de irritar o sistema jurídico, dentro do “jogo democrático”, para que ele possa alterar ou inovar as suas normas jurídicas. Dessa forma, é constitucional uma manifestação com o objetivo de tornar lícito o consumo e a venda da maconha, com a alteração da expectativa e valores presentes no sistema jurídico. O ilícito seria a venda de drogas ou a apologia ao uso durante as manifestações, já que, enquanto não houver a alteração no sistema jurídico, tais atitudes são consideradas crimes.[42]

Situação completamente diferente seria se houvesse uma manifestação que pedisse o fim do Estado Democrático de Direito. Do ponto de vista jurídico, não pode ser observada da mesma forma uma manifestação que busca introduzir uma determinada expectativa da sociedade no sistema jurídico, através da sua alteração ou inovação, e uma expectativa da sociedade que só seria alcançável através de uma Revolução, com o desmoronamento do próprio sistema jurídico democrático. O Direito não pode aceitar atos atentatórios contra a democracia e seus valores. E, por isso, uma manifestação que objetiva o fim desse sistema jurídico deve ser democraticamente repelida pelas instituições do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, caso a finalidade da manifestação seja antidemocrática, a Administração Pública, no seu exercício do poder de polícia, deve requerer via judicial a sua proibição preventiva.

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Sobre os autores
Ricardo Duarte Jr.

Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Professor Substituto da UFRN, Advogado e sócio no Duarte & Almeida Advogados Associados.

Mariana Capistrano Sarinho Paiva

Mestranda em Direito Administrativo na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE JR., Ricardo ; PAIVA, Mariana Capistrano Sarinho. O regime jurídico do direito de manifestação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7132, 10 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47149. Acesso em: 27 abr. 2024.

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