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O Estado de Coisas Inconstitucional como garantia de direitos fundamentais

09/03/2016 às 10:22

Resumo:


  • O Estado de Coisas Inconstitucional é reconhecido pela Corte Constitucional Colombiana diante de violações generalizadas e sistemáticas de direitos fundamentais.

  • Caracteriza-se pela grave violação de direitos que afeta um grande número de pessoas, pela omissão reiterada de órgãos estatais e pela necessidade de soluções estruturais pactuadas.

  • O reconhecimento do ECI pressupõe um ativismo judicial, como visto no caso do sistema carcerário brasileiro, e pode estimular a adoção de medidas efetivas e o diálogo entre poderes públicos e comunidades afetadas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Diante de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais, a Corte Constitucional Colombiana construiu uma atuação ativista como forma de superar o Estado de Coisas Inconstitucional.

Estado de Coisas Inconstitucional tem origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC) diante da constatação de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais. Tem por finalidade a construção de soluções estruturais, dialógicas e pactuadas voltadas à superação desse lamentável quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis em face de ações e omissões lesivas do poder público[1].

A primeira decisão da Corte Constitucional Colombiana que reconheceu o ECI foi proferida em 1997 (Sentencia de Unificación - SU 559, de 6/11/1997), numa demanda promovida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários sistematicamente violados pelas autoridades públicas. Ao declarar, diante da grave situação, o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte Colombiana determinou às autoridades envolvidas a superação do quadro de inconstitucionalidades em prazo razoável.

Da leitura das decisões da Corte Constitucional Colombiana, pode-se concluir que o ECI caracteriza-se, fundamentalmente, diante da constatação de que:

(a) é grave, permanente e generalizada a violação de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo e indeterminado de pessoas (na hipótese, não basta uma proteção insuficiente);

(b) há comprovada omissão reiterada de diversos e diferentes órgãos estatais no cumprimento de suas obrigações de proteção dos direitos fundamentais, que deixam de adotar as medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar e superar essa violação, consubstanciando uma falha estrutural das instâncias políticas e administrativas (isto é, não basta, para caracterizar o ECI, a omissão de apenas um órgão ou uma autoridade);

(c) existe um número elevado e indeterminado de pessoas afetadas pela violação; e

(d) há a necessidade de a solução ser construída pactuada (solução dialógica) pela atuação conjunta e coordenada de todos os órgãos envolvidos e responsáveis, de modo que a decisão do Tribunal – que se reveste de natureza estrutural, na medida em que envolve uma pluralidade de providências – é dirigida não apenas a um órgão ou autoridade, mas sim a uma pluralidade órgãos e autoridades, visando à adoção de mudançasestruturais (como, por exemplo, a elaboração de novas políticas públicas, a alocação ou remanejamento de recursos públicos, obrigações de fazer ou de não fazer, etc.).

É inegável que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pressupõe uma atuação ativista do Tribunal (uma espécie de Ativismo Judicial Estrutural[2]), na medida em que as decisões judiciais vão induvidosamente interferir nas funções executivas e legislativas, com repercussões, sobretudo, orçamentárias.

Voltando à análise das decisões da CCC, destaco duas que são suficientes para revelar o caráter estrutural das decisões que declaram o ECI.

A primeira, envolvendo o sistema carcerário colombiano. Na Sentencia de Tutela (T) – 153, de 28 de abril de 1998, a CCC declarou o ECI em relação ao grave quadro de superlotação das penitenciárias do país. Constatou a Corte que a violação de direitos da população carcerária era generalizada na Colômbia, afetando todas as instituições penitenciárias do País. Nessa decisão, a Corte ordenou a elaboração de um plano de construção e reparação das unidades carcerárias; determinou que o Governo nacional providenciasse os recursos orçamentários necessários à superação da crise; exigiu dos Governadores a criação e manutenção de presídios próprios; e requereu ao Presidente da República medidas necessárias para assegurar o respeito dos direitos dos internos nos presídios do país.

A segunda decisão foi sobre o deslocamento compulsório de pessoas em razão da violência interna no País. Por esse fenômeno, as pessoas são obrigadas, sem qualquer assistência do Estado, a abandonar suas residências e locais de trabalho, para fugirem da violência urbana e de grupos de extermínio. Na Sentencia de Tutela (T) – 025, de 22 de janeiro de 2004, a CCC, apreciando 108 pedidos de tutelas formulados por 1.150 famílias deslocadas, declarou o ECI e determinou uma série de providências, entre as quais se destacam: aplicação de recursosorçamentários para a solução do problema; e a elaboração de políticas públicas para proteger as famílias deslocadas.

Na sessão plenária de 09 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal, ao deferir parcialmente o pedido de medidas cautelares formulado na ADPF nº 347/DF, proposta em face da crise do sistema carcerário brasileiro, reconheceu expressamente a existência do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, ante as graves, generalizadas e sistemáticas violações de direitos fundamentais da população carcerária.

Ao deferir parcialmente a liminar, o STF:

(a) proibiu o Poder Executivo de contingenciar os valores disponíveis no Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN. A decisão determinou que a União  libere  o  saldo  acumulado  do  Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi  criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos; e

(b) determinou aos Juízes e Tribunais que passem a realizar audiências de custódia para viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária, num prazo de até 24 horas do momento da prisão.

Porém, há inúmeros outros pedidos que ainda serão examinados pelo Supremo quando do julgamento do mérito da ADPF nº 347/DF.

Apesar das conhecidas críticas ao ativismo judicial, o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pode reforçar o sistema de garantias dos Direitos Fundamentais, sobretudo de segmentos populacionais mais vulneráveis e afetados pelo estado de inércia e indiferença dos poderes públicos. Não vejo, entretanto, o ECI como um remédio milagroso a estimular ilusões. Mas pode servir pedagogicamente para (a) estimular a adoção de medidas reais e efetivas; (b) provocar um sério e sincero debate a respeito da falta ou insuficiência de políticas públicas em determinados setores sensíveis (não apenas no sistema penitenciário, mas também nos caóticos sistemas públicos de saúde, de ensino e de segurança pública); e (c) proporcionar a construção de soluções estruturais dialogadas e concertadas entre os poderes públicos, a sociedade e as comunidades atingidas.

E tanto isso é verdade, que bastou o tema ser enfrentado abertamente pelo STF, ao haver reconhecido o Estado de Coisas Inconstitucional em relação especificamente ao sistema penitenciário nacional, que as comunidades jurídica e política começaram a dialogar e discutir a respeito das melhores providências para superar o grave quadro de violações a direitos dos presos. E isso é um importante começo.

Diante das repercussões da decisão do STF e das ainda imprevisíveis consequências da adoção do ECI na jurisprudência da Corte, foi apresentado no Senado o Projeto de Lei nº 736, de 2015, de iniciativa doSenador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), que propõe a alteração das Leis nº 9.882/99 (Lei da ADPF) e 13.105/2015 (Lei que instituiu o novo Código de Processo Civil), para estabelecer termos e limites ao exercício do controle concentrado e difuso de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, dispor sobre o Estado de Coisas Inconstitucional e o Compromisso Significativo.

Já no seu art. 2º, o PL propõe o acréscimo à Lei da ADPF (Lei nº 9.882/99), do art. 9º-A, para fixar os pressupostos objetivos que devem ser observados pelo Supremo Tribunal Federal para que seja reconhecido o Estado de Coisas Inconstitucional; do art.9º-B, para estabelecer que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional resultará na determinação da celebração de um Compromisso Significativo entre o poder público e os segmentos populacionais afetados; do art. 9º-C do art. 9º-D, para indicar, respectivamente, as diretrizes e os requisitos necessários para a celebração do Compromisso Significativo.

No seu art. 3º, o PL propõe o acréscimo do art. 1.041-A ao novo CPC/2015, para estabelecer que a decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de Recurso Extraordinário com repercussão geral, que reconheça o Estado de Coisas Inconstitucional como seu fundamento e determine a celebração de Compromisso Significativo entre o poder público e os segmentos populacionais afetados, deve também observar os novos artigos (art. 9º-A, art. 9º-B, art. 9º-C e art. 9º-D) propostos pelo projeto à Lei da ADPF (Lei nº 9.882).

Pois bem, comentemos um pouco mais sobe as proposições normativas do PL 736/2015.

Ao sugerir acréscimos de novos artigos (art. 9º-A, art. 9º-B, art. 9º-C e art. 9º-D) na Lei da ADPF, prevê a proposta, expressamente, sobre a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional como fundamento para o deferimento de pedido de medida liminar ou para a decisão definitiva de mérito, desde que verificados, cumulativamente, os seguintes pressupostos: I – constatação de um quadro de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, perpetrada pelo Estado, por ação ou omissão, que afete número significativo de pessoas e impeça a preservação do mínimo intangível assegurador da dignidade humana; II – falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e judiciais, que gere a violação sistemática dos direitos, a perpetuação ou o agravamento dessa situação; e III – previsão expressa, no texto constitucional, de políticas públicas que necessitem de concretização (art. 9º-A).

Ademais, inspirado na experiência desenvolvida pela Corte Constitucional da África do Sul, o PL propõe a criação o chamado Compromisso Significativo, com o qual se possibilita a construção de uma solução dialógica, concertada, pactuada e participativa, firmado entre o poder público e os segmentos sociais vulneráveis violados, mas tudo sob o monitoramento do Poder Judiciário. Assim, a proposta de lei disciplina que, ao reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional, o Supremo Tribunal Federal determine a celebração de um Compromisso Significativo entre o poder público e os segmentos populacionais afetados pela ação ou omissão, com o fim de tornar efetivo o preceito fundamental violado e superar o grave quadro de violações a direitos fundamentais.

O projeto considera o compromisso significativo como um instrumento necessário para viabilizar um constante intercâmbio entre os segmentos populacionais afetados e o Estado, em que as partes tentam celebrar acordo para a formulação e implementação de programas socioeconômicos que visem a afastar a violação ao preceito fundamental (art. 9º-B).

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Mas o PL 736/2015 condicionou o compromisso significativo à observância de algumas diretrizes, para que seja considerado válido e eficaz: I – observância ao princípio da independência e harmonia dos Poderes, mediante a preservação de suas competências e prerrogativas constitucional e legalmente fixadas; II – respeito às balizas orçamentárias previstas constitucionalmente e nas leis que estabeleçam o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, e os orçamentos anuais; III – respeito às vinculações orçamentárias constitucionalmente fixadas; IV – respeito à destinação legal dos recursos que integram os fundos da administração pública; V – compatibilidade com as normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, previstas na Lei Complementar nº 101/2000; VI – observância à disponibilidade financeira dos entes federados interessados (eis o argumento da reserva do financeiramente possível); VII – respeito à legitimidade dos Chefes do Poder Executivo na definição de prioridades da ação governamental e à sua competência precípua de elaborar e implementar políticas públicas com vistas à concretização dos direitos fundamentais com assento constitucional (art. 9º-C).

Aduz, porém, que a inexistência de disponibilidade financeira (reserva do possível), deve ser objetivamente demonstrada, facultando-se ao Supremo Tribunal Federal valer-se do auxílio dos órgãos de controle externo e, se necessário, a contratação de perícia especializada para aferir a pertinência das alegações feitas pelo ente estatal competente (§ 1º do art. 9º-C). Considera que a manipulação da situação financeira ou políticoadministrativa pela autoridade pública competente, com o objetivo de criar obstáculo artificial à efetivação de preceitos fundamentais em favor dos segmentos populacionais envolvidos, não impedirá a concretização dos direitos fundamentais pleiteados e será caracterizada como ato de improbidade administrativa de que trata o art. 11 da Lei nº 8.429/92, a ser apurado em processo específico (§ 2º do art. 9º-C).

Prevê os requisitos necessários à celebração do compromisso significativo, na decisão liminar ou definitiva de mérito: I – fixação de diretrizes específicas pelo Supremo Tribunal Federal a serem observadas pelo Poder Público responsável e segmentos afetados na autocomposição do conflito constitucional submetido à apreciação judicial; II – designação dos interlocutores do Poder Público e das comunidades ou pessoas afetadas que se responsabilizarão pela efetividade do compromisso significativo; III – prestação de informações periódicas pelas partes envolvidas ao Supremo Tribunal Federal nos prazos estipulados; IV – designação de representante do Supremo Tribunal Federal incumbido de fiscalizar, a cada etapa, a evolução das tratativas com vistas ao êxito do compromisso significativo; V – construção compartilhada e autônoma, pelo Poder Público responsável e pelos segmentos populacionais afetados, da solução para o caso analisado, para a concretização do preceito fundamental pleiteado; VI – previsão de arbitramento da questão pelo Supremo Tribunal Federal na hipótese de insucesso na efetivação do compromisso significativo (art. 9º-D).

O projeto de Lei nº 736/2015 encontra-se, desde 20/11/2015, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, aguardando designação do relator.


Notas

[1] A favor do ECI: CUNHA JÚNIOR, Dirley da: http://brasiljuridico.com.br/artigos/estado-de-coisas-inconstitucional; CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo: http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional; RODRIGUES, José Rodrigo: http://jota.info/estado-de-coisas-surreal; e MARMELSTEIN, George. Diálogos Jurídicos Luso-Brasileiros. Salvador:editora JusPodivm. Contra: DE GIORGI, Raffaele; FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,estado-de-coisas-inconstitucional,10000000043; STRECK, Lenio: http://www.conjur.com.br/2015-out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo.

[2] Carlos Alexandre de Azevedo Campos fala em um ativismo judicial estrutural dialógico: http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional.

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Sobre o autor
Dirley da Cunha Júnior

Juiz Federal da Seção Judiciária da Bahia. Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e Mestre em Direito pela UFBA. Professor de Direito Constitucional nos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Professor do Brasil Jurídico Cursos Online. Professor e Coordenador do Núcleo de Direito do Estado da Faculdade Baiana de Direito. Conferencista e autor de diversas obras jurídicas. Ex-Procurador da República (1995-1999). Ex-Promotor de Justiça do Estado da Bahia (1992-1995).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA JÚNIOR, Dirley. O Estado de Coisas Inconstitucional como garantia de direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4634, 9 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47193. Acesso em: 22 dez. 2024.

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