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Tribunal do júri: uma breve reflexão

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8. OPINIÃO PÚBLICA, MÍDIA E JÚRI POPULAR: LIGAÇÕES PERIGOSAS (por Orocil Pedreira Santos Junior )

8.1. A OPINIÃO PÚBLICA E A CONSTRUÇÃO DO JUÍZO DE VALOR PELA MÍDIA

Ao se discutir a pertinência da constituição do Tribunal do Júri em julgamento de crimes dolosos contra a vida, temos em xeque a questão da validade racional e imparcial do julgamento feito por seus membros. Esse questionamento se torna mais consistente quando nos detemos em analisar a influência da mídia nos processos que integram a formação de opinião.

Estudos sobre a opinião pública historicamente têm se dedicado a investigar o locus de sua formação e os processos por intermédio dos quais se dá essa formação, postulando hipóteses da mídia como esfera de realização do debate público e de construtora de imagem dos atores sociais.

Eugenia Mariano Barichello, apresentando uma breve genealogia da opinião pública, destaca que o vocábulo "opinião" possuía originariamente dois sentidos distintos. Um epistemológico, que provém de seu uso para distinguir a questão do juízo de um fato, derivada da expressão latina opinio, e outro relacionado com o papel da opinião popular como uma classe informal de pressão e controle social. Para Barichello, "é preciso atualizar a concepção do processo de formação da opinião pública através, principalmente, do estudo dos locais e dos processos por meio dos quais se dá a discussão e o debate dos temas de interesse comum"

Gabriel Tarde, sociólogo francês de renome, nos idos de 1901 publicou uma obra denominada "L`Opinion et la Foule", publicada em 1992 pela editora Martins Fontes sob o título "A opinião pública e as massas", teorizando sobre a formação da opinião pública e contribuindo significativamente para os estudos no campo. Para Tarde, a opinião pública se formava no âmbito do processo de conversação. O indivíduo tinha acesso a temáticas através dos formadores de opinião e da mídia e, por intermédio de um processo de maturação das informações obtidas sobre a temática nas instâncias de conversação, formava uma opinião, um juízo de valor sobre determinado tema. Sob esse aspecto, a opinião, na verdade, não se fundamenta apenas no juízo de valor do indivíduo, fruto da racionalidade, mas em fatores variados como influência das instâncias de conversação, do enquadramento dado à temática pela mídia e de todo um conjunto de valores que integram a identidade cultural do indivíduo e o contexto social em que vive.

Na verdade, um juízo de valor carrega em si toda uma carga cultural, preferências e preconceitos e corresponde, em boa medida, à maneira com que o objeto em juízo interpela as identidades do sujeito social. Os media, como construtores de representações sociais, possuem a capacidade de, através de estratégias discursivas, estabelecerem um determinado enquadramento de temas e de sujeitos. Entman apresenta o conceito de enquadramento efetuado pela mídia, enfatizando que "enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e construí-los mais destacados no texto de comunicação (...)". Para Entman, o enquadramento e apresentação dos eventos e notícias nos meios de comunicação podem muito sistematicamente influenciar como a audiência das notícias vai compreender estes eventos, devido aos elementos que são evidenciados em detrimento de outros.

Comumente, o julgamento dos crimes dolosos contra a vida vêm precedidos de uma publicização dos acontecimentos que envolveram o fato por cobertura da mídia impressa, radiofônica, pelos noticiários ou, mais modernamente, por programas televisivos que se dedicam apenas a apresentar de forma dramaticizada as circunstâncias do crime, a exemplo do programa da Rede Globo de Televisão, o Linha Direta. Nesses tipos de publicização do fato, é escolhido um enquadramento específico que, via de regra, se baseia na dicotomia vítima x agressor, construindo-se, baseado apenas nas informações do fato imediato, um juízo de valor do acontecimento, que invariavelmente promove a condenação do acusado sem direito à defesa.

Algumas vezes existe um processo de "linchamento público" feito pela mídia, que, após transcorridos os trâmites do julgamento legal, se mostra injusto. Porém, em sua grande maioria, os casos são apresentados, os suspeitos julgados e condenados pela mídia que, em nome da opinião pública, exige a punição do "suspeito-culpado".

8.2. JÚRI POPULAR E ESFERA PÚBLICA

Podemos fazer uma analogia com a estrutura do júri popular e o conceito de esfera pública proposto por Habermas, em que "chama-se de esfera pública o âmbito da vida social em que se realiza – em várias arenas, por vários instrumentos e em torno de variados objetos de interesse específico – a discussão permanente entre pessoas privadas reunidas em um público". Esse conceito contribui para a compreensão do funcionamento básico do júri popular, por implicar que "participar da esfera pública significa comprometer-se a obedecer a lei da racionalidade e da discursividade e apenas a esta", sendo a esfera pública um âmbito da vida social protegido de influências não-comunicativas e não-racionais, tais como poder, o dinheiro, hierarquias sociais ou inferência de outros campos sociais como o midiático. De acordo com Habermas, a esfera pública tem três características fundamentais: a acessibilidade, a discursividade e a racionalidade e tem como resultado mais essencial a formação de uma opinião pública. Esse autor explana que a esfera pública moderna é um modo de se entender e de se configurar o âmbito da apresentação e da negociação das pretensões que se referem ao bem comum, sendo a apresentação necessariamente discursiva e as negociações disputas argumentativas conduzidas com racionalidade, por princípio aberta a todos os envolvidos, destinando-se, esta disputa, a uma posição teórica e prática em face à questão posta, à formação de uma opinião pública.

Observando a estrutura de funcionamento do júri popular à luz do conceito de esfera pública, podemos concluir que o júri sofre perda significativa de legitimidade na formação de sua opinião ou juízo de valor se considerarmos que os seus membros, como atores na arena de discussão que se estrutura em um julgamento, estão imersos - previamente à participação no conselho - em fatores sócio-culturais e sujeitos à influência direta de instâncias outras como a mídia e a conversação. Sobre isso, Oliveira comenta:

Se os jurados são prestigiados em nosso ordenamento pelo fato de julgarem com um "sentimento de justiça", torna-se importante que somente os fatos atinentes à causa sejam trazidos à sua apreciação, nunca as versões de determinados segmentos da imprensa, revestidos de aparente legitimidade em função da aquiescência que a opinião pública lhes outorga. O excesso de emotividade, os fatos narrados de forma teatral, às vezes sem apoio nas provas colacionadas aos autos, a pressão discreta da opinião pública, tudo isso afeta sobremaneira a atuação do jurado na sessão de julgamento, a tal ponto que, principalmente em casos de grande repercussão, seu veredito já encontra-se elaborado antes mesmo do sorteio de seu nome para compor o Conselho de Sentença, a despeito do que ele possa ouvir ou ver durante a sessão.

Na verdade, a atuação do membro do júri como representante da sociedade e voz popular teria legitimidade se a formação de sua opinião se desse apenas no interior da arena discursiva apresentada no julgamento. Neste cenário, então, a opinião estaria em estreita relação com a vontade e com a valoração jurídica que se emprestasse à narração dos fatos apresentados na denúncia e no libelo. A opinião pública representaria uma concepção nascida do melhor argumento, que se impõe por força da lógica, sendo portanto, neste caso, a vontade expressa obtida numa argumentação racionalmente conduzida, ou melhor, a vontade legitimada pela razão.

Sabemos, todavia, que essa não é a realidade de um julgamento pelo júri popular, tido e havido por boa parte da doutrina brasileira como a "instância representativa da sociedade" colaborando na administração da justiça, ou melhor, a sociedade fazendo e aplicando a justiça, já que de há muito "revogada" a Lei de Talião. O júri, como é cediço, é formado por pessoas comuns, geralmente funcionários públicos, que carregam em si conceitos arraigados advindos do(s) meio(s) cultural(ais) em que vivem. Ora, como tal, tornam-se presas fáceis dos arroubos sensacionalistas perpetrados pela mídia que, no mais das vezes, tanto desconhece os meandros jurídicos de determinado caso concreto, quanto finge desconhecer que é princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio a dignidade humana, sejam os atores envolvidos na ação penal vítima(s) ou réu(s). À imprensa, açodada pela busca da audiência que lastreia o lucro para sua própria sobrevivência, não parece interessar o devido processo legal, de onde fluem a garantia do contraditório e da ampla defesa. O ilustre jurista Evaristo de Moraes já advertia no início do século: "Repórteres e redatores de jornais, iludidos pelas primeiras aparências, no atabalhoamento da vida jornalística, cometem gravíssimas injustiças, lavram a priori sentenças de condenação ou absolvição, pesam na opinião pública e têm grande responsabilidade pelos veredictos".

Nesse contexto, a espetacularização e a pressão da opinião pública – às vezes com faixas, apitos e instrumentos que tais na porta do Fórum - seguramente concorrem para a quebra da idoneidade do julgamento. De antemão, jurados têm sobre si todo o peso que fora carreado também à massa de audiência durante o desenrolar do processo, mas mais fortemente nos dias que antecedem o julgamento. Fácil é perceber, por conseguinte, que a racionalidade exigida de quem decidirá a restrição ou não da liberdade de um indivíduo – um dos valores mais caros ao ser humano – está irremediavelmente maculada, às vezes até pelo receio de contrariar "o que pensa a sociedade" (na verdade, o que a mídia disse que a sociedade pensa), doença, aliás, que não é privativa dos jurados, mas também de muitos magistrados, como já narrou o professor Sérgio Habib:

O que temos, ultimamente, são alguns magistrados, ou mesmo alguns tribunais, receosos com a repercussão negativa de suas decisões (...). Não se queira, pois, fazer terror com as suas decisões, expondo-o à execração pública, seja porque concedeu uma ordem de habeas corpus em favor de determinado réu, cuja situação processual assim recomendava, seja porque deixou de condenar um outro, considerado culpado pela mídia, mas inocente dentro dos autos. Ressalte-se que nem sempre aqueles a quem a mídia condena, num julgamento sumário e descartável, poderão ser condenados nos processos a que respondem, porque o verdadeiro juiz julga segundo a prova, enquanto que o "juiz-show" julga por ouvir dizer (o que dizem os jornais e a grande mídia nacional.

8.3. CONCLUSÃO

Destarte, a considerar que nos tempos modernos a formação da opinião pública se dá a partir de pressupostos que estão além da simples conversação, isto é, constroem-se sobre as pilastras dos interesses midiáticos, quase sempre em confronto com os princípios processuais constitucionalmente assegurados às partes, e tendo-se em conta que o júri, sob os holofotes da sociedade, é vítima preferencial da pressão exercida por quem se arvora em julgador, intitulando-se "quarto poder", propugna uma sociedade que se quer realmente democrática mudanças drásticas no funcionamento do denominado "júri popular", ou mesmo sua extinção.

Com efeito, como dito alhures, não constituem aliança legítima as pressuposições próprias de quem prejulga e condena, em nome de uma "sede de justiça do povo", com o devido processo legal, através do qual a presunção de inocência só é derrogada pelo confronto das provas produzidas nos autos. O júri, como conjunto de atores privilegiados desse cenário, havia por bem estar imune a essas influências, que em nada contribuem para o florescimento da justiça social, mas dado que a construção da discursivização do direito, em nossos dias, está umbilicalmente ligada aos fenômenos midiáticos, é impossível preservar incólume o corpo de jurados.

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Nesse sentido, urge que a sociedade, sem prejuízo do trabalho de desconstruir a excessiva manipulação cultural patrocinada pelos meios de comunicação de massa, também se preocupe em salvaguardar o direito, procurando realizar cada vez mais, através do Poder Judiciário, julgamentos sadios. E se, para tanto, necessário for sacrificar essa instância decisória do ordenamento jurídico nacional, o Tribunal do Júri, que se convoque uma Constituinte e assim se faça, já que elencado dentre os direitos fundamentais e, portanto, cláusula pétrea. De forma contrária, continuaremos assistindo a um espetáculo em que, no mais das vezes, o roteiro já fora traçado por quem não é legítimo autor e em cujo final a vítima, antes de qualquer coisa, é a verdade.


9. EXTINÇÃO OU MANUTENÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI ? (por Rogério Belens Pessoa)

Embora desprovido do mesmo lastro e arcabouço de legitimidade que só o tempo confere às mais importantes instituições sociais, o Tribunal do Júri ou Tribunal Popular é de consolidada tradição na cultura jurídica nacional, e também presente em ordenamentos estrangeiros, merecendo a atenção do legislador pátrio mesmo antes da primeira Constituição do país, em seguida à proclamação de sua independência política.

Ao ser elaborada a primeira Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891, discutiu-se em plenário a supressão do Júri. Porém, por maioria, ficou deliberada a manutenção da Instituição do Júri, prevista expressamente na seção sobre a Declaração de Direitos, no §31, do artigo 72, nos seguintes termos: "É mantida a instituição do Júri" e diante da tendência das leis processuais de vários Estados, que passaram a modificar-lhe a organização e as atribuições, interveio o STF e fixou o entendimento de que, ao declarar que mantinha a instituição do Júri, a Constituição havia conservado os princípios normativos que antes vigoravam.

As constituições forem se sucedendo, alterando alguns aspectos em relação ao Tribunal do Júri, prestigiando-o mais, ou menos, mas sempre mantendo-o dentro da legislação pátria. Não foi diferente com a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, que reconhece a Instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados a plenitude da defesa, o sigilo dos votos, a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Apesar de estar sempre presente em nossa legislação, mesmo antes da nossa primeira constituição, sendo ratificado por todas elas, a polêmica sobre a existência e a manutenção do Tribunal do Júri é grande e vem de longos tempos. Vários são os argumentos enfocados por aqueles considerados adversários ferrenhos do Júri Popular. Por outro lado, são inúmeros os argumentos dos ardorosos defensores e adeptos do Júri. Por questões didáticas, vamos analisar as duas correntes separadamente, analisando suas posições e seus fundamentos.

9.1. PONTOS A FAVOR DA EXTINÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI

Um dos motivos expendidos por aqueles que defendem a tese da extinção do Tribunal do Júri é a falta de preparo dos jurados, que nem sempre estão aptos para julgar, pois são leigos, sem conhecimentos jurídicos necessários, visto que não só respondem por questões de fato, mas também de direito. O nosso sistema prevê a formulação de vários quesitos, o que dificulta o julgamento, pois, se os próprios tribunais e Juízes não estão concordes na elaboração de muitos quesitos, como exigir dos leigos que votem corretamente ? Numa era em que se reclama do próprio juiz criminal especialização, se confiar os julgamentos dos crimes mais graves do Processo Penal a homens que não possuem conhecimentos técnicos suficientes é, no mínimo, um absurdo. Argumentam, ainda, seus autores que a complexidade do procedimento do Tribunal do Júri, ante um jurado leigo, na prática redunda em decisões injustas, até mesmo porque desprovidas de qualquer motivação, de qualquer fundamento. O julgamento eminentemente técnico evitaria a não-motivação das decisões.

Em relação à ausência de motivação, a crítica recai no fato de que essa característica não se harmoniza com o sistema de garantias adotado no processo penal contemporâneo. Os jurados votam de acordo com a sua íntima convicção, com base não só nas teses jurídicas levantadas pelas partes, mas também apoiados em um juízo de equidade sobre a questão a eles submetida, independentemente de qualquer motivação para a absolvição ou condenação do réu.

A morosidade dos julgamentos também tem sido invocada contra o Júri, visto que, apesar da disposição legal de que o processo deve ser julgado dentro de um ano, sob pena de desaforamento (424, § único, CPP), muitos processos se arrastam por muito mais tempo.

Ao lado da morosidade, ainda alegam que o Tribunal do Júri é uma instituição ultrapassada e que serve para fortalecer a impunidade, por causa dos diversos motivos expendidos anteriormente. Trata-se de uma instituição tão ultrapassada que já não existe em muitos países, lembrando-se que na América do Sul, além do Brasil, só existe na Colômbia. Acusa-se o Júri de inadequação aos tempos modernos por ter surgido numa estrutura judiciária frágil, de submissão do magistrado à vontade despótica dos monarcas absolutistas. Em nossos dias, o Judiciário estaria provido de inúmeras garantias que o poriam a salvo da interferência dos outros poderes e, assim, não mais seria necessária a figura do jurado.

Diante das inúmeras críticas sofridas pelo Tribunal do Júri, a mais importante, no entanto, diz respeito à influência de toda a sorte sofrida pelos Jurados, tornando-os vulneráveis às pressões e influências de toda a mídia e sociedade. O Júri popular foi criado para julgar os crimes de emoção, sentimentais, de paixão e não bandidos de alta periculosidade. O Tribunal do Júri sempre serviu para um tipo de criminalidade em cidade pequena, onde a comunidade conhece as circunstâncias do fato, o próprio acusado. Nas grandes cidades, nas metrópoles, o Tribunal do Júri acaba julgando integrantes do crime organizado, do homicídio encomendado, o que é uma tragédia, pois o jurado, evidentemente, diante de uma situação dessa, fica temeroso de participar do julgamento, pois está colocando em risco a sua vida e de sua própria família. Isso faz com que ele não participe com a isenção necessária, ou se afaste do Tribunal, ou até, pior ainda, absolva o acusado.

O Estado brasileiro não tem o direito de pedir ao cidadão comum que participe do julgamento de fascínoras, porque a população está com medo. E tem toda a razão de ter medo, visto que o Estado não está lhe dando a segurança necessária para a estrutura da sua própria vida em domínio individual, ainda mais se ele participar do julgamento para condenar integrantes do crime organizado ou do estado paralelo. Essa é a grande crítica que sofre o Tribunal do Júri, além das outras explicitadas anteriormente.

9.2. PONTOS A FAVOR DA MANUTENÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI

Mais fortes sobejam os argumentos dos ardorosos e adeptos do Júri, entre eles, a severidade do Juiz togado, que, acostumado aos julgamentos diários, torna-se insensível com o passar do tempo, apegando-se ao formalismo legal, sem a preocupação de interpretar a lei de maneira humana, mas apenas jurídica, tornando-se um técnico do Direito. O Júri, sendo soberano em suas decisões, não fica apregoado aos critérios rígidos. Esse "desconhecimento da técnica" por parte dos jurados permite a apreciação do caso pelo bom senso, que muitas vezes se dilui em meio ao sabor teórico e legalista do magistrado.

Na verdade, todas as censuras de que o Júri é vítima se devem à ótica tecnicista em que se dá a avaliação de seus críticos. De fato, como poderia um profissional do Direito, de formação acadêmica, um exímio operador das leis, aceitar que a Justiça fosse deduzida por indivíduos sem a sua qualificação? É de se esperar outra postura por parte de juristas que aprenderam a ver, no sistema jurídico, em geral, a personificação da Justiça e do Direito, do qual se sentem os próprios braços e pernas ? Assim é que nas nações avançadas, tais profissionais fazem do Estado Democrático de Direito mas de Direito do que propriamente democrático, ao atacarem a participação popular nas instituições públicas mais importantes, como ocorre com o Tribunal popular.

Apesar da crítica ao fato das decisões do Júri não serem motivadas, o simples fato de não fundamentar a decisão, muitas vezes, é bom, pois os jurados se despreendem daquelas decisões teóricas, legalistas, valorando-se mais os fatos e fazendo-se, efetivamente justiça, objetivo que muitas decisões da "magistratura. técnica" não conseguem alcançar.

Devemos salientar, ainda, que a decisão proferida por várias pessoas está menos sujeita a erros do que por um só Juiz. Podemos citar, como exemplo, as decisões, que mesmo motivadas, revelam-se viciadas pelo viés burocrático que se evidencia por meio da massificação das decisões proferidas pelos juizes togados. Por outro lado, ainda podemos destacar a rigidez intelectual e a brevidade que caracteriza a motivação das sentenças, redundando, na prática, em decisões lacônicas e genéricas. Nesse diapasão, são os argumentos de Antônio Mossin: "Ademais, o que se observa de forma iterativa é que esse colegiado popular tem cumprido seu papel constitucional e, inclusive, em nada interferindo no exercício da magistratura profissional. Se se afirma, como motivo da sua extinção, que o Júri popular muitas vezes erra em suas decisões, o mesmo deve ser dito relativamente à judicatura de carreira, e não se pode por isso pleitear a sua dissolução" . Revela-se bastante ilustrativa a opinião de Tourinho Filho: "Muito se fala das absolvições do Júri. Por acaso é o Tribunal do Júri responsável pela deliquência do adolescente? Os trombadinhas estão nas ruas por causa do Júri? E os ladrões, estelionatários e falsários, não são julgados pelos magistrados togados? Por acaso é o Júri o responsável pelo súcia de traficantes e marginais soltos por aí? E os estupradores e gentlmen do colarinho branco? Estão eles à solta por culpa do Júri? É certo que muitas vezes a decisão do Júri deixa a desejar, mas em compensação, quantas sentenças dos juízes togados não são reformadas pela Instância Superior, e quantas decisões dos tribunais não são anuladas por órgãos superirores do Poder Judiciário? Saibam os juízes recrutar cidadãos idôneos para integrar o Tribunal leigo e muitos senões tendem a ser corrigidos."

Com relação à morosidade dos julgamentos, podemos salientar que é uma crítica que merece respeito. Porém, há que se notar que os crimes julgados pelo procedimento do Júri, cuja competência foi definida pela própria constituição, agridem o mais importante bem jurídico tutelado pela lei penal, vale dizer, a vida humana, cujo violador incorre nas mais severas penas cominadas pelo sistema. Assim, é razoável, que tais delitos sejam apurados e processados com prudência, assegurando-se efetiva possibilidade de defesa ao acusado, o que só um procedimento detido e cauteloso pode proporcionar. Junto a isso, lembremos que a morosidade não é característica exclusiva do Tribunal do Júri, mas também dos juízos singulares.

Outro motivo importante para a manutenção do tribunal do Júri é ser ele uma Instituição democrática em que o réu é julgado pelos seus pares, que terão melhores condições de apreciar sua conduta com maior humanidade. A participação popular faz com que um sistema penal profundamente positivista, muitas vezes insensível à dinâmica social e a seus reclames, se aproxime da realidade histórica a que deve corresponder, possibilitando julgamentos que, antes de simplesmente externarem a vontade da lei, promovem a efetiva aplicação do Direito.

Apesar de afirmarem os críticos do Tribunal do Júri que a mesma se trata de uma instituição ultrapassada, devemos lembrar que o Júri é a participação do povo na apuração da culpa, já que constitui a melhor maneira de levar o acusado a ser julgado pelo senso comum do povo. Junto a isso, ainda devemos lembrar que nas duas grandes nações, Inglaterra e Estados Unidos, onde existe o Júri, nunca se cogitou em abolí-lo.

A crítica mais severa que sofre o Tribunal do Júri se refere às pressões e influências sofridas pelos jurados por toda a mídia e pela sociedade, em geral. Segundo os críticos do Júri, o Estado brasileiro não tem o direito de pedir ao cidadão comum que participe do julgamento de fascínoras, porque a população está com medo, e tem toda a razão de ter medo, visto que o Estado não está lhe dando a segurança necessária, como explicitado acima. Porém, temos que ter consciência de que um mal não pode levar a outro. Em outras palavras, o medo que sentem os jurados pela falta de segurança não proporcionada pelo Estado não pode levar à extinção do Tribunal do Júri, instituição democrática, popular e justa.

O que deve ser feito é proporcionar a devida segurança não só para aqueles que compõe o Júri, como também para todos nós que vivemos na sociedade. Se o medo dos jurados for motivo para extinção do Tribunal do Júri, imagine o que o medo de toda a sociedade não seria capaz de realizar ou, até mesmo, deixar de realizar ? É dever do Estado proporcionar segurança aos cidadãos e seus familiares, protegendo-o do crime organizado e não ao contrário, ou seja, permitindo que o crime organizado controle o cidadão, deixando-o acovardado até mesmo para julgar um crime de forma consciente, idônea, e acima de tudo, de forma justa.

9.3. CONCLUSÃO

É bem verdade que o Júri é possuidor de certos defeitos, e mesmo assim, tem resistido ao tempo. O que não se pode argumentar é que em virtude de tais defeitos a Instituição do Júri esteja ultrapassada e até superada. Os argumentos que buscam desabonar o Júri, talvez a única esfera do Poder Judiciário permeável à efetiva intervenção da sociedade, não resistem a uma avaliação mais sensata e ponderada que dele se faça. Os defeitos desta instituição não podem ser tomados como justificativa plausível para sua extinção, uma vez que seus benefícios, sendo mais numerosos, impõem que se busque seu aperfeiçoamento. O ideal seria um aperfeiçoamento, a fim de que o Júri se adeque à realidade de nossa sociedade, já que pode ser entendido como a melhor maneira de se julgar o acusado, haja vista a heterocomposição que tem o Tribunal do Júri popular com a sociedade.

Sendo mantido o Júri, deve, necessariamente, passar por uma revisão do seu procedimento. É pacífico, hoje, que o procedimento do Júri é demasiadamente complexo. Visando alterar alguns aspectos deste procedimento previsto nos artigos 406 a 497 do CPP, o anteprojeto sobre o Tribunal do Júri, em trâmite no Congresso, propõe algumas mudanças, a fim de adequá-lo ao anseio de maior eficácia de suas decisões, assim como dotá-lo de um procedimento mais célere, ágil e eficiente.

Enfim, o Júri simboliza a esperança de um Judiciário mais sensível às transformações sociais, que nem sempre são assimiladas por sistemas jurídicos como o nosso, fundados na lei e na técnica. Talvez seja ele o gérmem de novos ordenamentos que busquem aproximar o Direito de sua base de legitimação, e que convertam o sistema penal em instrumento de efetiva promoção da justiça, e não de exclusão social, como vem ocorrendo há vários séculos. Basta que seja enfocado sob uma ótica menos legalista e mais voltada ao traço que o singulariza na estrutura judiciária, qual seja, sua feição democrática.

Sua longevidade e sobrevivência, pois, devem-se à tendência democrática que progressivamente se firmou em todos os sistemas políticos; pode-se dizer, assim, que, em épocas de supressão dos direitos individuais, nas fases negras da História, o Júri atuou como foco de resistência de democracias abaladas, mas nunca totalmente suprimidas.

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Sobre os autores
Melissa Campos Cady

acadêmica de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Cheng Wai Yin

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Jorge Pereira de Araújo Filho

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Alexandre Vasconcelos

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

João Mário Botelho Nascimento

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Anilton de Jesus Cerqueira

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Maria Olívia Sarno Setúbal

acadêmica de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Orocil Pedreira Santos Junior

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Rogério Belens Pessoa

acadêmico de Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CADY, Melissa Campos ; YIN, Cheng Wai et al. Tribunal do júri: uma breve reflexão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 203, 25 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4720. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho coordenado por Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo (professor da Universidade Católica do Salvador e da Faculdade Baiana de Ciências).

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