Introdução
Em 2005 foi promulgada a Lei n° 11.101/05 conhecida como a nova Lei de Falência e de Recuperação de empresas, que extinguiu as concordatas e trouxe a baila uma nova visão para a recuperação judicial e extrajudicial de empresas. A recuperação judicial trazida com a nova lei possibilita as empresas, com mais de dois anos de atividade econômica, a continuação de suas atividades de produção, mantendo a fonte produtora, gerando empregos, tributos e estimulando a atividade econômica.
Nesse contexto a recuperação judicial é promovida pelo próprio empresário em crise, que apresenta ao Judiciário seu pedido. Após a verificação e preenchimento de todos os requisitos previstos na lei, é deferido o benefício, cabendo ao devedor (empresa recuperanda) apresentar o plano de recuperação judicial para o pagamento das dividas existentes. Uma das questões que merece atenção é a repercussão da recuperação judicial da empresa na esfera trabalhista, visto que tal fato é recorrente, principalmente em empresas de pequeno porte e de serviço terceirizados, que sem patrimônio e condições para pagar os empregados, acabam falindo e não honrando suas dívidas.
No ponto, é necessária uma reflexão mais aprofundada sobre dois princípios basilares da Recuperação Judicial, a proteção da empresa, bem como a proteção do trabalhador. A partir da análise das críticas e entendimentos formados após a alteração da lei de recuperação e falências tentamos estabelecer de que maneira a empresa pode ser reorganizar para continuar sua atividade econômica, bem como adimplir com suas condenações na esfera trabalhista.
- Princípio da Manutenção da Empresa
A partir da entrada em vigor da lei n° 11.101/2005, alterou-se profundamente a legislação falimentar brasileira, com objetivo de preservar a atividade produtiva, potencializar o ativo sobre o qual incidem as pretensões dos credores e prevenir a falência.
A recuperação judicial tem como objetivo solucionar as causas que levaram a crise econômico-financeira da empresa, resolvendo de maneira satisfatória seus débitos e evitando assim uma eventual falência e encerramento das atividades. Nesse sentido João Pedro Scalzilli argumenta:
“O principio basilar da LFRE é o da preservação da empresa, especialmente diante dos interesses que em torno dela gravitam. Vale dizer, a empresa é a célula essencial da economia de mercado e cumpre relevante função social, porque, ao explorar a atividade prevista em seu objeto social e ao perseguir o seu objetivo de lucro, promove interações econômicas, produção ou circulação de bens ou serviços com outros agente do mercado, consumindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos, movimentando a economia, desenvolvendo a comunidade em que está inserida.”
Destaca-se que um dos princípios principais da recuperação judicial é de preservar a empresa como unidade de produção, geradora de postos de trabalho, tributos e riquezas, invocando sua função social e o estimulo a atividade econômica, conforme exposto no artigo 47 da Lei:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Percebe-se que o legislador teve, acima de tudo, uma preocupação social, pois seu intuito real é de garantir o equilíbrio da economia, zelando não só pelo interesse de uma classe, ou de classes, mas sim o interesse de toda a sociedade. Visando primeiramente que a fonte produtora, a empresa, seja mantida, pois essa é uma fonte mediata, que beneficiará, mesmo que de forma indireta a sociedade num todo. Segundo Lobo a recuperação judicial é um instituto que tem por finalidade preservar os negócios e os empregos, a saber:
“A recuperação judicial é o instituto jurídico, fundado na ética da solidariedade, que visa sanear o estado de crise econômico-financeira do empresário e da sociedade empresária com a finalidade de preservar os negócios sociais e estimular a atividade empresarial, garantir a continuidade do emprego fomentar o trabalho humano, assegurar a satisfação, ainda que parcial, de um plano de reestruturação e reerguimento, o qual, aprovado pelos credores, expressa ou tacitamente, e homologado pelo juízo, implica novação dos créditos anteriores ao ajuizamento da demanda e obriga a todos os credores a ela sujeitos, inclusive os ausentes, os dissidentes e os que se abstiveram de participar das deliberações da assembléia geral.”
Em ordem, a outra preocupação do legislador é a de manutenção de empregos, mais uma vez preocupado com as situações sociais, geradas pelo desemprego, como por exemplo, a marginalização e a desigualdade social, causada por tal fato. Como observado por Wilson Alexandre Barufaldi:
“O principio da preservação da empresa, na recuperação judicial, é peculiar no que tange à sua formatação, pois ao mesmo tempo em que ele indica um objetivo (fim) a ser almejado- manter a fonte produtora e os empregos-, ele também pode ser um meio para promover os interesses dos credores.”
Destaca-se ainda que a jurisprudência é clara quanto a necessidade de observação de tal princípio, como se percebe pelos julgados abaixo:
Ementa: AGRAVO INTERNO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. LIMINAR. GARANTIA DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MANUTENÇÃO. A recuperação judicial tem o intuito de propiciar ao devedor a superação das dificuldades econômico-financeiras, visando à preservação da empresa e evitando os negativos reflexos sociais e econômicos que o encerramento das atividades empresariais poderia causar. Princípio da preservação da empresa. Inteligência do art. 47, da Lei nº 11.101/2005. II. Portanto, descabe a discussão sobre a qualidade do crédito em discussão em sede de ação cautelar, o que deverá ocorrer através dos meios próprios previstos na lei que regula a recuperação judicial e a falência e no Código de Processo Civil. III. Deve ser garantido o fornecimento de energia elétrica, por se tratar de serviço essencial, de modo a viabilizar a manutenção da empresa recuperanda e fazer cumprir os objetivos da Lei nº 11.101/2005. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (Agravo Nº 70064837222, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge André Pereira Gailhard, Julgado em 24/06/2015)
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO. SUJEIÇÃO DE CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE REGISTRO. MULTA. POSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. 1. Recurso julgado prejudicado na parte em que houve reconsideração da decisão recorrida por parte do juízo recorrido. 2. Decisão que tem por finalidade assegurar a possibilidade de superação da situação de crise econômico-financeira da agravada, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 3. Considerando que não há nos autos prova de que as Cédulas de Crédito Bancário foram registradas no Ofício de Registro de Títulos e Documentos do domicilio da recuperanda, requisito indispensável para admitir a condição de proprietário fiduciário do agravante (Art. 1.361 CC), inviável a admissão desses títulos como crédito extraconcursal à luz das disposições do § 3º do art. 49 da Lei 11.101/05. 4. Cabimento de multa diária para o caso de descumprimento da ordem judicial. Manutenção do valor da multa diária para o caso de descumprimento, eis que adequada à espécie e finalidade do instituto. RECURSO PARCIALMENTE PREJUDICADO E, NO RESTANTE, DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70064640477, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgado em 29/07/2015)
Sendo assim, mostra-se claro que o princípio da proteção da empresa é de grande importância dentro da recuperação judicial já que exercício da atividade comercial gera uma reação em cadeia produtora de riqueza, já que movimenta e economia, gerando empregos direta e indiretamente.
- A Proteção ao Trabalhador
O Direito do Trabalho é regido por um princípio basilar; qual seja o princípio da norma mais favorável (também conhecido como princípio do in dúbio pro operário) que explicita que a dúvida que surgir deve ser solucionada de molde a não prejudicar o empregado. Arnaldo Sussekind ao comentar sobre o assunto afirma que: “A necessidade de proteção social aos trabalhadores constitui a raiz sociológica do Direito do Trabalho é imanente a todo o seu sistema jurídico”.
Com a criação do instituto da Recuperação Judicial quis o legislador proteger também o trabalhador, como observado por João Pedro Scalzilli:
“Quis o legislador proteger, também, aqueles que trabalham na empresa assolada pela crise, como já ocorria na vigência da lei anterior. É o princípio da proteção do trabalhador, consubstanciado em vários dispositivos da LFRE, entre eles na própria classificação do crédito trabalhista no quadro dos credores concursais: em primeiro lugar entre os créditos concursais (art. 83, I – além do previsto no art. 151, que prevê o pagamento imediato de determinadas verbas salariais), principalmente em razão da sua natureza eminentemente alimentar e da conhecida hipossuficiência do trabalhador, que não consegue negociar garantias em seu contrato de trabalho, tampouco embutir em sua remuneração uma taxa de risco, tal como o fazem as instituições financeiras e os grandes fornecedores, por exemplo.”
Assim, percebe-se que o princípio da manutenção da empresa e da proteção ao trabalhador andam juntos nesse instituto, como afirma Manoel Justino Bezerra Filho, “a Lei, não por acaso, estabelece uma ordem de prioridades na finalidade que diz perseguir, ou seja, colocando como primeiro objetivo a ‘manutenção da fonte produtora’, ou seja, a manutenção da atividade empresarial em sua plenitude tanto quanto possível, com o que haverá possibilidade de manter também o ‘emprego dos trabalhadores’. Mantida a atividade empresarial e o trabalho dos empregados, será possível então satisfazer os ‘interesses dos credores’.
Ademais, na recuperação judicial o devedor (empresário individual ou sociedade empresária), terá o prazo máximo de um ano para o pagamento dos débitos trabalhistas, vencidos até a data do pedido de recuperação:
“Art. 54 – O plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial.”
A exceção a esta regra vem tratada no parágrafo único do artigo 54 mencionado, onde se diz que “o plano não poderá, ainda, prever prazo superior a 30 (trinta) dias para pagamento, até o limite de 5 (cinco) salários mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3(três) meses anteriores ao pedido de recuperação judicial”.
Vale observar ainda que a expressão créditos derivados da legislação do trabalho não tem sentido amplo, não envolvendo as outras relações de trabalho abrangidas pela nova competência material da Justiça do Trabalho, por força da Emenda Constitucional n. 45/2004. Tem, sim, sentido restrito, para abranger, exclusivamente, os direitos devidos aos empregados celetistas.
Sendo assim, observa-se a natureza alimentar do crédito trabalhista faz dele um crédito superprivilegiado, no sentido de que o seu pagamento deva ser quase imediato. Como bem explicado por Gladston Mamede trata-se de um benefício ex personae:
“Trata-se de um benefício ex personae, ou seja, de preferência não ao crédito trabalhista em si, mas á pessoa do trabalhador, certo de que o § 4o do artigo 83 da Lei 11.101/05 prevê que os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários, ou seja, que perderão a sua preferência. Garante-se, assim, a manutenção da idéia de proteção ao trabalhador, á sua pessoa, e não ao seu crédito, sem que, no entanto, seja ele expropriado do mesmo: pode até cedê-lo mas o cessionário não estará, por certo, pretendendo crédito alimentar e, portanto, não fará jus á preferência.”
Ademais, percebe-se que o crédito trabalhista por não ser liquido que as ações trabalhistas não se suspendem com o deferimento do pedido de recuperação. As ações prosseguirão na Justiça do Trabalho naquele Juízo, até a apuração do valor da condenação e inscrição no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença. Ou seja, percebe-se ai outra vantagem do credito trabalhista, visto que o mesmo foge da regra do artigo 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005:
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.
(...)
§ 4º Na recuperação judicial a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contados do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.
Importante frisar, ainda que os créditos trabalhistas constituídos após o pedido de recuperação judicial não farão parte do plano e nem sofrem os seus efeitos, tendo forma privilegiada de pagamento como crédito extraconcursal. Assegurados, portanto, aos empregados que tenham seus contratos de trabalho rescindidos após o pedido de recuperação judicial, o pagamento da integralidade de seus créditos trabalhistas.
Conclusão
É certo que a alteração na lei de Recuperação Judicial trouxe uma nova atmosfera para o direito empresarial, com um claro objetivo de preservar a empresa bem como os postos de trabalho dela derivados acabando por modificar aspectos importantes e que merecem ser analisados de forma mais aprofundada para que se entenda os seus possíveis efeitos.
Tem-se então a difícil missão de tentar restabelecer a atividade econômica da empresa recuperada, para que essa venha a se reerguer mantendo sua função social. A nova legislação dispõe ainda de vários mecanismos protetores ao empregado, considerado hipossuficiente. Percebe-se a clara decisão do legislador em priorizar o pagamento dos créditos trabalhista pela natureza alimentar do mesmo.
É possível concluir que ainda é uma área de ricas discussões e muita divergência de entendimentos, uma vez que diferencia o empregador dos demais credores da recuperanda, acaba por beneficiar tal categoria, abrindo margem para as que as demais corram o risco de não ter seus créditos honrados.