O meio ambiente recebeu uma nova proteção jurídica com o advento da Constituição Federal de 1988 com a introdução de um capítulo próprio sobre a matéria e o estabelecimento de um verdadeiro estatuto fundamental de proteção do equilíbrio ambiental que, além de direito de todos (presentes e futuras gerações), passou a se constituir dever do Estado e da coletividade.
A Lei n. 9.605/98, de 12 de fevereiro de 1988, em observância ao art. 225, § 3º 3º, da Constituição Federal de 1988,[1] assume função essencial na proteção ao meio ambiente ao dispor sobre as sanções penais e administrativas decorrentes de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
O art. 69-A da Lei n.º 9.605/98 dispõe sobre o crime de “parecer falso ou enganoso”, elaborado ou apresentado em qualquer procedimento administrativo ambiental, cuja penalidade é a reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa. In verbis:
Art. 69-A. Elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo, estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente falso ou enganoso, inclusive por omissão:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 1º Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
§ 2º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se há dano significativo ao meio ambiente, em decorrência do uso da informação falsa, incompleta ou enganosa.
Ao analisar o art. 60-A da Lei n.º 9.605/98, podemos entender como hipótese normativa a tutela do meio ambiente, em razão da possibilidade de estudos, laudos e relatórios influenciarem a decisão administrativa em procedimentos ambientais. A consequência do enunciado normativo prescreve a proibição (dever jurídico) de emissão de pareceres, total ou parcialmente, falso ou enganoso, inclusive por omissão. Na inobservância desse modal deôntico, há a sanção prevista no parágrafo primeiro, a qual pode ser aumentada caso haja o enquadramento no disposto no parágrafo segundo.[2]
Conforme afirma Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel,[3] bem como Ana Maria Moreira Marchesan[4], esse artigo foi introduzido pela Lei n.º 11.284/06, a qual dispõe sobre a gestão das florestas públicas para a produção sustentável, cujo bem jurídico imediato tutelado é a lisura dos licenciamentos, autorizações, concessões e demais procedimentos administrativos que possam envolver impactos ambientais. O doutrinador Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel[5] afirmam ainda que esse artigo se refere especificamente, e apenas, às florestas públicas.
Não obstante o posicionamento de Luiz Flávio Gomes e Silva Maciel, devemos observar que esse dispositivo normativo refere-se a procedimentos administrativos preparatórios de natureza ambiental, os quais têm por finalidade conceder direitos ou permitem a atuação do particular em determinada atividade econômica. O objetivo é proteger o meio ambiente contra a degradação ambiental causada por aquela atividade, ou seja, de forma a evitar o dano. De outra forma, busca-se tutelar, preventivamente, o bem jurídico ambiental contra uma possível atividade lesiva a ser praticada pelo particular. Por isso, a importância de criminalizar o “estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente enganoso”, em razão de sua potencialidade de macular um procedimento preparatório de natureza ambiental.
Conforme Édis Milaré[6],
Procurou-se tutelar a autenticidade dos documentos que instruem os licenciamentos ambientais, concessões florestais ou procedimentos administrativos afetos a essa área.
O tipo pretende evitar que se venha a produzir licenciamentos ou concessões que não preencham efetivamente os requisitos legais ou se baseiem em informações não condizentes com a realidade.
Dessa forma, não há como imputar o crime de “parecer falso ou enganoso” para o estudo apresentado em “processo administrativo”, constituído, por exemplo, a partir da lavratura de auto de infração, que se materializa em momento posterior ao potencial ato lesivo ao meio ambiente e que só poderia causar dano ao particular, e nunca ao meio ambiente. Explicamos melhor abaixo. Vejamos o texto contido no tipo penal contido no art.69-A da Lei Federal 9.605/98: “Elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo (...).”. O enunciado normativo contido nesse artigo dispõe que é crime a elaboração ou apresentação de parecer falso “no licenciamento, concessão ou qualquer outro procedimento administrativo”. Ora, a expressão “qualquer outro procedimento administrativo” tem natureza exemplificativa, cuja base de análise são os procedimentos de licenciamento e concessão, especificamente procedimentos prévios de análise, apuração de informações e expectativas para que o particular possa exercer os seus direitos de forma a não provocar danos ambientais.
Não há nesse tipo de procedimento administrativo uma lide/controvérsia instaurada entre a Administração e o particular. A própria natureza do procedimento é a fase inquisitória, em que não há lide administrativa. Caso completamente diverso é o auto de infração administrativa, o qual tem natureza jurídica de processo administrativo, e não de procedimento.
Conforme ensina Marçal Justen Filho[7], “o processo é uma relação jurídica que se instaura quando existe um conflito de interesses a ser composto com a observância necessária de um procedimento”. Ou seja, “há processo sempre que existir ‘procedimento’ somado a ‘controvérsia’.
Dessa forma, não se pode dizer que todo e qualquer “estudo, laudo ou relatório” em processo ou procedimento administrativo estaria abarcado por esse tipo legal. Pelo contrário, esse enunciado normativo deve ser interpretado de forma sistemática e teleológica, cuja finalidade é a proteção ao meio ambiente, em procedimento administrativo prévio de concessão, licença florestal, dentre outros procedimentos aptos a permitir ao particular o exercício regular de um direito, após a observância dos requisitos previstos pelo ordenamento jurídico.
Nessa análise, deve-se atentar que a finalidade da Lei n.º 11.284/06, a qual acrescentou esse tipo legal à Lei Federal 9.605/98, foi o desenvolvimento sustentável das florestas públicas, ou seja, o procedimento administrativo com vistas a permitir o exercício de atividade econômica pelo particular com o mínimo de degradação ambiental possível. Mais especificamente, o procedimento prévio à atuação privada e, especificamente, com potencial lesivo de dano.
Por outro lado, não estão abarcados por esse tipo penal os estudos, laudos e relatórios técnicos elaborados em processo administrativo, cujo objeto é a resolução de uma controvérsia gerada entre o particular e a Administração Pública, embora envolva de forma indireta o meio ambiente.
Esse entendimento é fortalecido pela análise que se faz a partir dos itens a seguir.
A modalidade culposa no tipo penal
Como sabemos, a regra do direito penal é a de que o autor tenha consciência de que sua conduta levará a um resultado criminoso (dolo). Conforme dispõe o art. 18, parágrafo único do Código Penal, a modalidade culposa deve ser admitida apenas em caráter excepcional e quando expressamente prevista pelo tipo penal, o que é o caso do art. 69-A da Lei n.º 9.605/98. E ainda: a modalidade culposa é admita em razão da importância de proteção de um determinado bem jurídico.
Conforme o art. 18, inc. II, do Código Penal, o crime é culposo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.
Ora, a finalidade do art. 69-A e da própria Lei 11.284/06, que o acrescentou à Lei de Crimes Ambientais, é a proteção do meio ambiente, de modo a evitar o dano ambiental em vista de um exercício de uma atividade econômica pelo particular. Tal como está previsto no art. 18, inc. II, do CP, o crime culposo acontecerá quando o agente atuar de forma não intencional. A admissão do tipo culposo nesse caso ocorre em virtude da relevância do dano ao meio ambiente.
No caso concreto, no processo administrativo punitivo (que se inicia com a lavratura do auto de infração), qual o dano ambiental que este processo administrativo visa proteger? Qual o dano a ser causado ao meio ambiente em virtude de um estudo técnico em que o agente público atuou de forma negligente, imprudente ou imperita? Se há a possibilidade de haver um dano, ele ocorre meramente ao particular que sofreu a autuação infracional, e não ao meio ambiente. Dessa forma, aplicar o art. 69-A da Lei nº 9.605/98 nesses casos vai de encontro à própria teleologia da Lei de “Crimes Ambientais” e da ciência do Direito Penal.
Agravante: “se há dano significativo ao meio ambiente” (art. 69-A, § 2º, Lei. 9.605/98)
Conforme afirmado no item anterior, o referido artigo 69-A se refere aos procedimentos administrativos prévios ao exercício de um direito. Assim, se do procedimento, o estudo, laudo ou parecer falso decorrer um dano significativo ao meio ambiente, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços).
Nesse sentido, podemos entender que para a configuração do agravante previsto no tipo penal, são necessários dois requisitos: o dano significativo e o nexo causal entre o “parecer falso ou enganoso” e o dano significativo.
Quanto ao “dano significativo”, estamos diante de um conceito jurídico indeterminado. Não é qualquer dano a influir o agravante penal; entretanto cabe ao intérprete autêntico, após analisar o quadro normativo e realizar a análise interpretativa sobre o caso concreto, fazer a subsunção dos fatos aos conceitos interpretáveis (fato, valor e norma). Se é certo que cabe à autoridade jurisdicional analisar cada situação concreta na aplicação do agravante, não podemos nos descurar que aquela autoridade tem o dever de motivar (art. 93, inc. IX, CF/88) e justificar o porquê da incidência do agravante, ou seja, a motivação aqui deve recair sobre a expressividade do ano.
Ademais, não basta que o dano seja expressivo (“significativo”), é necessário que o haja o nexo causal entre o parecer e o dano: o parecer falso ou enganoso tem de ser determinando para a ocorrência do dano. Conforme afirma o próprio dispositivo legal, há o agravante se houver dano expressivo ao meio ambiente “em decorrência (nexo causal) do uso da informação falsa, incompleta ou enganosa”. Assim, podemos afirmar que, se a situação aconteceria independentemente do parecer falso ou enganoso, não há a incidência do agravante.
Por fim, entendemos que, embora seja fundamental a proteção do meio ambiente (direito fundamental de 3ª geração), é necessária a boa técnica na aplicação dos dispositivos legais, sob pena de desvirtuar o instituto e esvaziar a sua proteção.
Notas
[1] “Art. 225 (...)
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
(...).”
[2] Ver VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
[3] Crimes Ambientais: Comentários à Lei 9.605/98. Revistas dos Tribunais: São Paulo, 2011. p. 280.
[4] Crime de Falsidade em Procedimento Administrativo. In: Crimes Ambientais: Comentários à Lei 9.605/98. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2013. p. 320.
[5] Crimes Ambientais: Comentários à Lei 9.605/98. Revistas dos Tribunais: São Paulo, 2011. p. 280.
[6] MILARÉ, Edis. Direito Penal Ambiental. 2ª Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2013. p. 167.
[7] Curso de Direito Administrativo. 4ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2009. p. 241/242.