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Sociedade de controle:

uma projeção contemporânea e distópica

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4. UTOPIA OU DISTOPIA?

A palavra utopia, originariamente provém do conceito grego. Topos significa lugar. Acrescentando-se o prefixo u, tem-se uma negação, no presente caso, um “não lugar”. Assim, podemos designar utopia como um lugar que não existe, que provém do imaginário.

Com base nisto, a utopia passou a ser conceituada como uma sociedade perfeita, ideal, localizada em lugar distante ou até mesmo inexistente, porém sonho de concretização de alguns. Conceituada também como um projeto para a realização de um ideal social. Vejamos:

Assim, Homero fala-nos dos felizes feácios, ou dos irrepreensíveis etíopes, entre os quais Zeus adora viver, ou canta as Ilhas dos Bem – Aventurados. Hesíodo fala sobre a idade de ouro, seguida por épocas progressivamente piores, chegando aos terríveis tempos em que ele próprio vivia. No Banquete, Platão conta que os homens já foram – num passado remoto e feliz – de forma esférica, tendo depois sido divididos em duas metades; desde então, cada hemisfério está tentando encontrar seu parceiro adequado para que mais uma vez o homem se torne redondo e perfeito. O filósofo também fala da vida feliz que se levava na Atlândida, desaparecida para todo o sempre. Virgílio fala do Saturnia regna, o Reino de Saturno, em que todas as coisas eram boas. A Bíblia hebraica fala de um paraíso terrestre em que Adão e Eva foram criados por Deus e levavam uma vida sem pecado, feliz e serena – uma situação que poderia ter perdurado para sempre, mas que conheceu um fim desastroso devido a desobediência do homem para com seu criador. Quando, no século passado, o poeta Alfred Tennyson falava de um reino “Onde não cai granizo, a chuva ou a neve, nem o vento sopra com fúria”, estava refletindo uma tradição longa e ininterrupta que remonta ao sonho homérico de uma luz eterna brilhando sobre um mundo em que não sopram os ventos. (BERLIN, apud PAVLOSKI, 2005, p. 21).

A utopia é o grande motor das revoluções. Muitas idealizações inovadoras foram projetadas e/ou sonhadas por líderes, filósofos, profetas, historiadores, que insatisfeitos com o “mundo real”, as tentaram colocar em prática.

Estas combinações estão presentes hoje, no contexto de uma sociedade que clama por uma calmaria social, e neste sentido, começa a utilizar dos aparatos tecnológicos para atingir os fins desejados.

A mídia dia a dia conquista grande parcela da população, que, em virtude do sentimento utópico de segurança coletiva que deseja obter, aceita a monitoração.

As condições sociais e históricas favorecem a aplicação destes dispositivos em virtude da proliferação da violência, do sentimento de impunidade, do medo coletivo e principalmente da sensação de insegurança. A população acredita que a aderência a estes dispositivos resolveria o problema da impunidade e traria sensação de segurança para realizar os atos cotidianos.    

Nessas condições, a sociedade de controle seria um grande projeto utópico, “cuja instauração, de acordo com seu ideólogo, resolveria definitivamente o problema da segurança pessoal da sociedade urbana, ainda que, para tanto, fosse necessário invadir o direito de usufruto de intimidade de cada indivíduo”. (BITTENCOURT, internet).

Sendo assim, prolifera-se cada dia a utilização de instrumentos de monitoração das ações individuais; a televigilância espalha-se, “detectando” desde o indivíduo tido como correto em suas ações, até o mais suspeito.  

Porém, se de um lado tem-se a sensação de segurança diante da monitoração, de outro o indivíduo perde sua intimidade e o desfrute de espaço privado.

Poderíamos chamar este projeto de utópico, eis que, aparentemente se encaixa nas condições propostas, contudo, analisando-se criticamente, representa na verdade uma distopia “pois o seu objetivo social se realizaria mediante o controle intrínseco do comportamento humano, gerando em cada indivíduo o florescimento de afetos neuróticos, diante da ameaça de punição a ser infligida em cada infrator”. (BITTENCOURT, internet).

A proposta da monitoração, advinda da sociedade de controle, é um avanço científico – social, contudo, culmina em estruturas opressoras e em populações alienadas, portanto, deve ser encarada como uma distopia.    

A distopia pode ser caracterizada como algo oposto a utopia, ou seja, como uma negação da utopia. Pode ser encarada como uma crítica a utopistas que projetam um modelo de sociedade generalizante dos desejos e vontades humanos.

A palavra distopia apareceu pela primeira vez, em seus termos em inglês, em um discurso ao Parlamento Britânico, em 1868, por John Stuart Mill[9]. Nesse discurso, Mill disse:

É, provavelmente, demasiado elogioso chamar-lhes utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos, ou caco-tópicos. O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável. (BERTOLINIO, internet).

Podemos encontrar a distopia principalmente nas obras de ficção, em que os autores com medo de que a sociedade se transforme em algo semelhante ao espaço distópico, utilizam deste artifício, tornando a leitura desconfortável, como forma de despertar os indivíduos para a realidade vindoura.

Na verdade, tanto a utopia quanto a distopia apresentam-se como crítica do tempo presente e projeções de possibilidades futuras, porém, enquanto a utopia apresenta a idealização de uma sociedade perfeita e modelar, expondo seus benefícios, a distopia mostra o lado perverso da sociedade idealizada.    

A “utopia”, trazida por aqueles que são aderentes à sociedade de controle, é destoante das críticas trazidas por aqueles que não concordam com esta forma de estrutura, ou seja, os distopistas.

É oportuno destacar que dentro da própria distopia encontram-se formas de utopia. No caso em análise, qual seja, a da sociedade de controle, poder-se-ia dizer que aqueles que não são seus adeptos, utilizam da distopia a fim de apontar críticas a sua utilização, contudo, analisando-se amiúde a questão, nota-se que, a utopia encontra-se imersa dentro de tal distopia, pois, “o que importa o que pensa ou sente o indivíduo, quando o interesse maior da instituição política consiste em manter a infra – estrutura do Estado com plena força?” (BITTENCOURT, internet).

Para os distopistas da sociedade de controle, sua utopia consistiria na quebra de paradigmas e no descortinamento de práticas seletivas que em nada aumentam a segurança da sociedade.


5.  PONDERABILIDADE

No trabalho em questão, procura-se analisar o conflito resultante de valores que tem como escopo a proteção da coletividade, no caso, conflito entre a segurança pública e a privacidade.

Pois bem. Como descrito anteriormente, os aparatos tecnológicos de monitoramento encontram-se cada vez mais invasivos e a justificativa para sua massificação consiste no incremento da segurança pública para a proteção do cidadão e de seu patrimônio.

O direito do Estado de manter a segurança e ordem públicas é um direito de executar o dever que tem de apoiar imparcialmente as condições necessárias, a fim de que todos possam promover seus interesses e obrigações segundo seus entendimentos.  A manutenção da ordem pública é uma condição necessária para que, dentro dos limites, os objetivos sejam atingidos (quaisquer que sejam) – (RAWLS, 2002, p. 231).

No século XIX, os direitos fundamentais foram reconhecidos como direitos subjetivos públicos oponíveis em face do Estado e quanto mais amplo fosse a proteção do bem jurídico consagrado em um direito fundamental, maior a probabilidade de restringir qualquer ato do Estado.

O artigo 5°, inciso II dispõe que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Infere-se da redação deste artigo, que todos são livres para viver conforme bem entenderem, sendo limitados em sua liberdade somente em virtude de lei. 

Jonh Rawls (2002, p. 219), ao analisar o conceito de liberdade conclui que qualquer liberdade básica particular é caracterizada por um conjunto de direitos e deveres. “Não apenas deve ser permissível que os indivíduos façam ou não façam uma determinada coisa, mas também o governo e as outras pessoas devem ter a obrigação legal de não criar obstáculos”.

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A sociedade de controle, na forma em que vem se encaminhando, apresenta-se derradeiramente invasiva e ofensiva, apresentando-se como castradora das liberdades pessoais.

Quando há a quebra, o descumprimento do contrato social, o Estado tem o dever de intervir, fazendo uso de sua coercitividade para punir o infrator do mandamento proibitivo contido na norma penal. Porém, a limitação da liberdade pessoal do agente deve pautar-se no princípio da dignidade, além de obedecer todos os trâmites processuais legais.     

De repente, encaminhamos para uma sociedade similar a mostrada no filme “Minority Report”, e a preocupação é no sentido de uma pessoa ser punida sem que tenha percorrido todas as fases do iter criminis, ou seja, na fase da cogitação ou dos atos preparatórios. Deste modo, gerando a dúvida: jus puniendi ou jus libertatis.  

José Carlos Barbosa Moreira soluciona o conflito através da ponderação:

Para a solução do conflito entre o direito à intimidade e outros direitos ou interesses tutelados pela ordem jurídica é indispensável confrontar e sopesar os valores em jogo para decidir, conforme as circunstâncias, qual deles há de ser, e em que medida, sacrificado em benefício do outro.  (MOREIRA, José Carlos Barbosa apud SILVA, 2003, p. 225).                

Para fundamentar a concepção de direitos fundamentais, utilizo as palavras de Moraes (2006, p. 16), citando Caetano:

A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, apenas excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

No que concerne ao aspecto objetivo dos direitos fundamentais, oportuno faz-se transcrever o voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio em sede de HC, expondo posicionamento do STF:

6. A imprescritibilidade e o Sistema dos Direitos Fundamentais

A Constituição de 1988 representou um divisor de águas entre o antigo regime totalitário e um período de redemocratização do País, marcando, dessa forma, uma época que tem como modelo de atuação do Estado o respeito incondicional aos direitos fundamentais. Por isso mesmo, o sistema constitucional dos direitos fundamentais, previsto no artigo 5° da Carta, com os eventuais acréscimos do § 2°, reflete, em rigor e larga medida, a própria essência da Constituição e a retomada do processo de redemocratização e da garantia do cidadão contra abusos e arbitrariedades do Poder Público.

Os direitos fundamentais são hoje verdadeiros princípios estruturantes da organização e do funcionamento do Estado, valores objetivos que servem como norte da atuação estatal em seus mais diferentes níveis: no Legislativo, formam um catálogo de princípios e garantias que informam e direcionam toda a atividade de criação das normas de nosso ordenamento jurídico e de concretização dos preceitos constitucionais; no Executivo, mostram-se como verdadeiros limites ao exercício do poder administrativo, servindo como trincheiras de proteção de liberdade do cidadão; e, no Judiciário, refletem a base e o fundamento necessário da compreensão e interpretação de nossas normas – efeito interpretativo -, evitando que a atividade jurisdicional se transforme em medidas discricionárias ou providências ilegítimas de opções políticas pautadas em escolhas pessoais dos juízes.

A conservação de um sistema sólido, moderno e socializante de direitos fundamentais significa, em última instância, a manutenção e o aprimoramento do próprio regime democrático de um Estado constitucional. É dever da sociedade, dos juristas, dos intérpretes, dos juízes e, principalmente, nosso, membros deste Tribunal, guardião oficial e final da Constituição, garantir que esse sistema permaneça com a máxima eficácia possível, reconhecendo-lhe e mesmo concedendo-lhe força normativa por meio de nossas decisões, de maneira a manter tais direitos fundamentais vivos e eficazes perante o Estado e a sociedade civil. Essa é a posição que devemos adotar na análise dos problemas constitucionais que diariamente nos chegam, e é nesse ponto que reside nossa função institucional e, mais do que isso, a própria esperança do cidadão nas instituições brasileiras, especialmente no Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe, na República Federativa do Brasil, a última palavra sobre os descompassos havidos.

Esta postura democraticamente adequada em face da Constituição obriga-nos, por imposição dos princípios constitucionais, a interpretar abrangentemente os direitos fundamentais, de modo a compreender as exceções a esse sistema de maneira rigorosamente estrita. Assim sendo, cabe ao Supremo Tribunal Federal ampliar a proteção dos direitos fundamentais mediante construção constitucional e restringir-se a uma interpretação quase que literal nas hipóteses de limitação a esses direitos, ainda que expressas no corpo da própria Carta Política. Não é permitido a este Tribunal ou a qualquer hermeneuta da Constituição interpretar de forma aberta ou ampliativa preceitos que impliquem a diminuição da eficácia dos direitos fundamentais.– “grifou-se”.   (STF, HC n° 82424/RS. Impetrante: Werner Cantalício João Berker. Relator para o Acórdão: Maurício Corrêa. Brasília, DF, 17 de setembro de 2003. Diário da Justiça da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 mar. 2004, p. 00017).

Ou seja, os direitos fundamentais são princípios que estruturam a organização e o funcionamento do Estado, valores objetivos que servem como norte da atuação estatal em seus mais diferentes níveis, e garantia do cidadão contra abusos e arbitrariedades do Poder Público, não sendo permitido ao STF ou a qualquer hermeneuta da Constituição interpretar de forma aberta ou ampliativa os preceitos que impliquem em diminuição da eficácia dos direitos fundamentais.

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Sobre a autora
Daniela Costa Queiróz Medeiros

Advogada. Especialista em Direito e Processo Contemporâneo pela Faculdade de Telêmaco Borba (FATEB). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Currículo em: http://lattes.cnpq.br/7387827966250219

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Daniela Costa Queiróz. Sociedade de controle:: uma projeção contemporânea e distópica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4649, 24 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47337. Acesso em: 16 nov. 2024.

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