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Do penhor

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Resumo:


  • O penhor é um direito real de garantia que se constitui pela transferência efetiva da posse de uma coisa móvel, suscetível de alienação, do devedor ao credor, em garantia do débito.

  • O credor pignoratício tem o direito de excutir a coisa empenhada e preferir no pagamento a outros credores, sendo a garantia extinta com o pagamento da dívida ou por outros meios como renúncia, perecimento da coisa, entre outros.

  • Para que o penhor seja oponível a terceiros, é necessária a averbação do registro do contrato em cartório, e a extinção do penhor só produz efeitos após o cancelamento do registro, mediante prova adequada ou decisão judicial transitada em julgado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O penhor é direito real de garantia que se constitui pela transferência efetiva da posse de uma coisa móvel, suscetível de alienação em garantia do débito ao credor ou a quem o represente.

Sumário: 1. Conceito e características do penhor. 2. Devedor pignoratício. 3. Tradição do bem empenhado. 4. Existência de débito garantido pelo penhor e sua natureza de direito acessório. 5. Credor pignoratício. 6. Bem empenhado. 7. Extinção do penhor.


1. Conceito e características do penhor.

O penhor é direito real de garantia (CC, art. 1.225, inciso VIII), que se constitui pela transferência efetiva da posse (tradição efetiva) que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação (CC, art. 1.431, caput). A individualização da coisa dada em garantia atende ao princípio da especialização. Esses são elementos do penhor comum, também conhecido como “penhor tradicional”, “penhor típico”, ou, ainda, “penhor simples”.

Há, ainda, a nomenclatura do “penhor convencional”. Não parece adequada tal nomenclatura, para designar o penhor simples, em que ocorre a tradição do bem empenhado, porque “convencional”, além de significar “comum”, pode também significar “que foi acordado entre partes contratantes”, isto é, “que é convencionado”, em oposição a “penhor legal” e, neste sentido, o adjetivo “convencional” também explicaria o penhor onde ocorre tradição simbólica do bem, ou constituto possessório, como, por exemplo, no “penhor agrícola”, que, todavia, não é “penhor simples”, mas “penhor especial”. Por tais razões, é preferível que “penhor convencional” seja expressão utilizada não para significar o “penhor simples”, “penhor tradicional” ou “penhor típico”, em que ocorre a tradição do bem empenhado, mas que seja utilizada para significar o penhor contratado entre as partes (seja com tradição efetiva do bem empenhado, penhor simples, ou com tradição simbólica do mesmo, ou constituto possessório, em alguns casos do penhor especial) porque, em sendo contratual, “penhor convencional” é nomenclatura que melhor serve à distinção que deve ser feita em relação ao “penhor legal”, pois, este sim, se constitui por ato unilateral do credor, embora sujeito à homologação judicial.

Diz-se tratar-se de direito real de garantia porque o bem empenhado vincula-se ao pagamento do débito por ele garantido (CC, art. 1.419).

Como se vê, ao atrelar-se à “coisa móvel”, o Código Civil brasileiro, na ideia geral exposta no caput do art. 1.431, não conseguiu dar uma ideia exata do instituto jurídico do penhor, já que o próprio CC/2002 também dispõe sobre penhor de direitos, que são incorpóreos. Melhor fez o Código Civil argentino, Lei n. 340, de setembro de 1869 (Código de Vélez Sarsfield), em cujo artigo 3.204 lê-se que:

“Habrá constitución de prenda cuando el deudor, por una obligación cierta o condicional, presente o futura, entregue al acreedor una cosa mueble o un crédito en seguridad de la deuda”.1

O Código de Vélez Sarsfield vigorou na Argentina de 01º de janeiro de 1871 até final de julho do ano de 2015. O dia 01º de agosto de 2015, por força da Ley n.° 27 077, publicada em 19.12.2014, marcou a entrada em vigor do novo “Código Civil y Comercial de la Nación”, cujo artigo 2.219 também traz o crédito no conceito de penhor, além das coisas móveis, in verbis:

“ARTICULO 2219.- Concepto. La prenda es el derecho real de garantía sobre cosas muebles no registrables o créditos instrumentados. (…)”.2

De todo modo, partiremos do Código Civil brasileiro, com os aprofundamentos necessários mais adiante, para dizermos que o penhor simples tem, portanto, as seguintes partes e características:

  1. devedor pignoratício: é o devedor da obrigação principal, que dá a coisa em penhor, embora seja possível, ainda, que o penhor (coisa com ônus real, por isso “onerada”) seja dado por terceiro garantidor;

  2. tradição: o penhor é um contrato real, ou seja, não se finaliza pela mera manifestação de vontade das partes, de modo que é necessária a entrega, ao credor, da coisa empenhada, porque seu perfazimento dá-se com a posse direta (em regra) do objeto da garantia, pelo credor;

  3. existência de débito: o instituto do penhor presta-se à garantia de um crédito, garantia esta prestada ao credor, em seu favor, de modo que só pode haver penhor em havendo débito a ser garantido (“Jus et obligatio sunt correlata”) ou, em outras palavras, o penhor é direito real de garantia que necessariamente dirige-se ao direito de crédito de outrem;

  4. natureza de direito acessório: o penhor, como direito real de garantia, é meramente acessório da obrigação principal (onde encontra-se o débito garantido);

  5. credor pignoratício: é o credor do débito garantido pelo penhor;

  6. bem empenhado: coisa dada em garantia, sem a qual não há penhor.

O vocábulo “penhor” pode referir-se, veja-se bem, tanto ao direito real de garantia, como ao contrato que serve para constituí-lo, como também à própria coisa empenhado.

Além do penhor simples, a legislação traz as espécies de penhor.

O penhor rural pode ser penhor agrícola ou penhor pecuário. No penhor agrícola, podem ser objeto de penhor (CC, art. 1.442): I - máquinas e instrumentos de agricultura; II - colheitas pendentes, ou em via de formação; III - frutos acondicionados ou armazenados; IV - lenha cortada e carvão vegetal; V - animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola. No penhor pecuário, podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios (CC, art. 1.444). Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor rural, o devedor poderá emitir, em favor do credor, cédula rural pignoratícia, na forma determinada em lei especial (CC, art. 1.438, parágrafo único).

No penhor mercantil, podem ser objeto de penhor máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados (CC, art. 1.447, caput). Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor industrial ou mercantil, o devedor poderá emitir, em favor do credor, cédula do respectivo crédito, na forma e para os fins que a lei especial determinar (CC, art. 1.448, parágrafo único).

Há também previsão legal do Penhor de Direitos e Títulos de Crédito. Com efeito, podem ser objeto de penhor direitos, suscetíveis de cessão, sobre coisas móveis (CC, art. 1.451). Giovanna Luz Podcameni faz a necessária distinção, de que,

“... o objeto do penhor do título de crédito é o documento representativo do crédito (coisa corpórea) e não os respectivos direitos (coisas incorpóreas), caso em que se tem o penhor de direitos”.3

O penhor de veículos aplica-se aos que sejam empregados em qualquer espécie de transporte ou condução (CC, art. 1.461).

Regra geral, os contratos de penhor (art. 1.424), declararão, sob pena de não terem eficácia: I - o valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo; II - o prazo fixado para pagamento; III - a taxa dos juros, se houver; IV - o bem dado em garantia com as suas especificações. São as cláusulas mínimas, obrigatórias para a eficácia do penhor, principalmente em relação a terceiros, mormente no que toca aos direitos do credor, de sequela e preferência, aliando-se o preenchimento de tais requisitos, para tanto, ao necessário registro em cartório, mas as partes não só podem como devem estipular outras cláusulas contratuais que melhor caracterizem a avença.4

O penhor de crédito não tem eficácia senão quando notificado ao devedor; por notificado tem-se o devedor que, em instrumento público ou particular, declarar-se ciente da existência do penhor (CC, art. 1.453).

Não exige o atual Código Civil que o instrumento do penhor simples seja lavrado em duas vias, como fazia o art. 771. do CC/1916.

O instrumento do penhor deverá ser levado a registro, por qualquer dos contratantes; o do penhor comum será registrado no Cartório de Títulos e Documentos (CC, art. 1.432). Tal se dá para obter eficácia contra terceiros, do contrário só valerá entre credor e devedor/terceiro garantidor, sem eficácia erga omnes, de modo que, sem formalidade tal, não se terá direito real, mas apenas obrigacional.5

Constitui-se o penhor de direito mediante instrumento público ou particular, registrado no Registro de Títulos e Documentos (CC, art. 1.452). Já o penhor que recai sobre título de crédito constitui-se mediante instrumento público ou particular ou endosso pignoratício, com a tradição do título ao credor. Como o art. 1.458. dispõe que o penhor de título de crédito se rege pelas Disposições Gerais do Título X do Código Civil, aplica-se a regra geral do art. 1.432. Assim, tanto o penhor de direito como o penhor de título de crédito são levados a registro no Cartório de Títulos e Documentos.

Por outro lado, são registrados no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empenhadas, o penhor rural (CC, art. 1.438), o penhor industrial, ou o mercantil (CC, art. 1.448), independentemente de que tenham sido constituídos por instrumento público ou particular.

O penhor de veículos, por sua vez, é registrado no Cartório de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, com a peculiaridade, adicional, de também ser anotado no certificado de propriedade do bem, também não importando que tenha sido constituído, o penhor, mediante instrumento público ou particular (CC, art. 1.462).

Na prática jurídica, ocorre ainda o penhor incidente sobre os direitos minerários, emergentes da “Portaria de Lavra” que autoriza que se lavre minério. O Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Mineração) dispõe:

Art. 55. Subsistirá a Concessão, quanto aos direitos, obrigações, limitações e efeitos dela decorrentes, quando o concessionário a alienar ou gravar, na forma da lei.

§ 1º. Os atos de alienação ou oneração só terão validade depois de averbados no DNPM. (Redação dada pela Lei nº 9.314, de 1996)”

As referências a atos de gravame e oneração, respectivamente no caput e no § 1º do art. 55, acima transcritos, permitem concluir que é legalmente previsto o penhor incidente sobre os direitos minerários ou, melhor dizendo, sobre os direitos minerários decorrentes da concessão de lavra, desde que conte com averbação junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia federal vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME). Por outro lado, o Código de Mineração dispõe:

Art. 22. A autorização de pesquisa será conferida nas seguintes condições, além das demais constantes deste Código: (Redação dada pela Lei nº 9.314, de 1996)

I - o título poderá ser objeto de cessão ou transferência, desde que o cessionário satisfaça os requisitos legais exigidos. Os atos de cessão e transferência só terão validade depois de devidamente averbados no DNPM;(Redação dada pela Lei nº 9.314, de 1996)”

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Como o Código de Mineração não prevê expressamente a oneração da Autorização de Pesquisa, não é possível o penhor sobre os direitos referentes à mesma, já que não se pode confundir cessão ou transferência (atos obrigacionais) do título pertinente à Autorização de Pesquisa, com o penhor (ônus real) sobre o mesmo.

Tramita, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 3403/2012, da Deputada Federal Sandra Rosado, que dispõe sobre a oneração de direitos minerários, e dá outras providências, estando atualmente apensado ao PL 37/2011, do Deputado Federal Welinton Prado.

Também tramita na Câmara dos Deputados o PL 723/2015, do Deputado Federal Giacobo, que pretende inserir o inciso VI no art. 1.442. do CC/2002, para expressa previsão do cabimento do penhor de madeira, produtos madeireiros e demais produtos da floresta plantada. Anteriormente, pelo PL 83/2011 (arquivado), de autoria do Deputado Federal Bernardo Santana de Vasconcellos, já se havia tentado algo semelhante.6

O penhor legal dá-se, como o nome já diz, por força de lei, isto é, independentemente de convenção (CC, art. 1.467, caput),7 em favor dos hospedeiros ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre as bagagens, móveis, joias ou dinheiro que os seus consumidores ou fregueses tiverem consigo nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas ou consumo que aí tiverem feito (CC, art. 1.467, inciso I) ou, ainda, em favor do dono do prédio rústico ou urbano, sobre os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecendo o mesmo prédio, pelos aluguéis ou rendas (CC, art. 1.467, inciso II). 8

Em cada um desses casos, o credor poderá tomar em garantia um ou mais objetos até o valor da dívida (CC, art. 1.469), devendo o credor requerer, ato contínuo, a homologação judicial do penhor (CC, art. 1.471).9

De todo modo, é expressa a letra da lei ao permitir, no penhor legal, que os credores compreendidos no art. 1.467. do Código Civil possam fazer efetivo o penhor, antes de recorrerem à autoridade judiciária, sempre que haja perigo na demora, dando aos devedores comprovante dos bens de que se apossarem (CC, art. 1.470).

Especificamente no caso do locatário, o CC/2002 dispõe ainda que este pode impedir a constituição do penhor, oferecendo caução idônea ao credor (CC, art. 1.472).10

O “penhor” é instituto do Direito Civil, não se confunde com “penhora”, instituto do Direito Processual Civil. Ambos garantem o crédito, mas é necessário fazer distinções propedêuticas, pois o penhor decorre do negócio jurídico pelo qual se constitui, sendo prática extrajudicial,11 incidindo (geralmente) sobre coisa móvel, enquanto a penhora é ato judicial que pode recair sobre quaisquer bens do executado, móvel ou imóvel, inclusive, em havendo o ônus real, sobre o próprio bem oferecido em penhor e excutido pelo credor.12

Entretanto, como dito, tais são distinções propedêuticas, que facilitam o uso das regras jurídicas em situações do cotidiano, mormente no direito brasileiro. Numa visão mais aprofundada, não se deve olvidar que a penhora é, em essência, penhor. É que, além do “penhor convencional”, pactuado entre as partes, e o “penhor legal”, que se opera ex vi legis, como vimos acima, aceitos no direito brasileiro, existe ainda, no direito comparado, o instituto do “penhor judicial”, traduzido na penhora. Com efeito, no direito romano o penhor judicial era a penhora, e o mesmo se dá no atual direito alemão, onde, pela penhora, o credor adquire um direito de garantia pignoratícia sobre as coisas penhoradas, caracterizando-se uma terceira forma do direito do penhor, ao lado da convencional e legal.13 Tal é estipulado no Código de Processo Civil alemão (Zivilprozessordnung, ZPO, Seção 804, I), in verbis:

“Durch die Pfändung erwirbt der Gläubiger ein Pfandrecht an dem gepfändeten Gegenstande.”14


2. Devedor pignoratício.

Quanto ao devedor pignoratício (reus debendi), evidentemente, deve ser pessoa capaz para celebrar atos jurídicos, ser o proprietário do bem dado em garantia e ter ainda a livre disposição da coisa, de modo que esta seja alienável (CC, art. 1.420).

Ainda que a legislação exija que o devedor pignoratício ofereça em garantia bem de sua propriedade, admite-se que a propriedade superveniente torne eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono (CC, art. 1.420, § 1º). Tal se dá com efeitos retroativos à data do registro do instrumento do penhor. É uma solução bastante diferente daquela prevista no Código Civil argentino (Código de Vélez Sarsfield), na segunda parte de seu art. 3.213, in verbis:

“El acreedor que de buena fe ha recibido del deudor un objeto del cual éste no era propietario, puede, si la cosa no fuese perdida o robada, negar su entrega al verdadero propietario."

Que, por sua vez, já é também diferente da solução que vem prevista no art. 2.224. do novo Código Civil y Comercial de la Nación:

“ARTICULO 2224.- Prenda de cosa ajena. Si el acreedor que recibe en prenda una cosa ajena que cree del constituyente la restituye al dueño que la reclama, puede exigir al deudor la entrega en prenda de otra de igual valor. Si el deudor no lo hace, el acreedor puede pedir el cumplimiento de la obligación principal aunque tenga plazo pendiente; si el crédito está sujeto a condición se aplica el artículo 2197.”

Observe-se que terceiro, estranho à relação jurídica obrigacional de onde exsurge a dívida, pode oferecer bem de sua propriedade, alienável, em garantia à dívida de outrem.

Sendo o devedor hipossuficiente, em contratação que possa ser caracterizada como relação de consumo, aplicam-se ao contrato de penhor as normas do Código de Defesa do Consumidor.15


3. Tradição do bem empenhado.

Gaius, no Digesto, deriva “pignus” de “pugnus”, o punho ou a mão, porque as coisas dadas em penhor são entregues de mão em mão.16

A tradição, em tese, dá-se para transmissão da propriedade (domínio). Entretanto, também é possível, como fazia o CC/1916 (ver abaixo), referir-se à tradição sem transmissão de propriedade. Virgilio de Sá Pereira, um grande civilista na história brasileira, já deixara isso claro:

“A tradição é um modo de transferir o dominio; se eu não o tenho, como o transfiro? Mas, ao mesmo tempo, ella é um facto, cuja exteriorisação material póde ser effectuada por todo aquelle que tenha a cousa em seu poder. Para que este facto se revista da configuração juridica da tradição e opére a transmissão do dominio, não basta que o realise o proprietario, mas que o realise no desempenho duma obrigação contrahida visando essa transmissão. A tradição da cousa nos contractos de penhor, de commodato, de locação, nada tem que ver com a transferencia do dominio. A causa da tradição intervém portanto como elemento subjectivo para configural-a, como o ensina Paulo, na lei 31º do Digesto de adq. rer. dominio: Numquam nuda traditio transfert dominium, sed ita, si vendido aut aliqua justa causa paecesserit, propter quam traditio sequeretur.”17

A tradição, aqui entendida como transferência da posse direta da coisa empenhada, sem transmissão de domínio, pelo devedor ao credor, é regra geral, no direito brasileiro, requisito integrante do próprio conceito do penhor (referimo-nos ao penhor tradicional). O Código Civil de 1916 aludia a “tradição efetiva” (art. 768), mas no Código Civil de 2002 preferiu-se a expressão “transferência efetiva da posse” (art. 1.431, caput). No anterior, lia-se:

“Art. 768. Constitui-se o penhor pela tradição efetiva, que, em garantia do débito, ao credor, ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de um objeto móvel, suscetível de alienação."

Portanto, não se admitiria, em regra, a tradição simbólica do bem empenhado, ou o constituto possessório.

Em primeiro lugar, note-se que, apesar de tantas discussões sobre a natureza jurídica da posse e sua suposta distinção em relação à “detenção”, não há consenso jurídico nem mesmo na legislação positivada a respeito desses institutos jurídicos, o que é constatável quando realizamos estudos comparados. A título de exemplo, veja-se que, enquanto o caput do art. 1.431. do Código Civil brasileiro de 2002 refere-se claramente a “transferência efetiva da posse”, o Código Civil chileno considera haver, para o credor pignoratício (“acreedor prendario”), a mera detenção (“tenencia”):

“Art. 714. Se llama mera tenencia la que se ejerce sobre una cosa, no como dueño, sino en lugar o a nombre del dueño. El acreedor prendario, el secuestre, el usufructuario, el usuario, el que tiene el derecho de habitación, son meros tenedores de la cosa empeñada, secuestrada, o cuyo usufructo, uso o habitación les pertenece. Lo dicho se aplica generalmente a todo el que tiene una cosa reconociendo dominio ajeno.”18

Em segundo lugar, essa regra geral comporta exceções. Os próprios autores que afirmam que não caberia admitir-se tradição simbólica ou constituto possessório em relação ao bem empenhado, fazem as ressalvas necessárias, no sentido dessa regra geral não ser absoluta, de modo que o credor nem sempre precisaria ter a posse direta do bem empenhado.

A impressão é de que este entendimento presente na doutrina brasileira (isto é, de não cabimento da tradição simbólica ou constituto possessório em relação ao bem empenhado, no penhor simples) derivaria, para tomar uma cultura jurídica mais próxima no tempo, do art. 2.076. do Código Civil francês (código napoleônico de 1804) e da doutrina que lhe é correlata:

“Dans tous les cas, le privilège ne subsiste sur le gage qu'autant que ce gage a été mis et est resté en la possession du créancier, ou d'un tiers convenu entre les parties”.19

Com efeito, por aquele período já se entendia:

“Ainsi la tradition de la chose est de l'essence mème du contrat, et la détention doit en être continuée, pour que la convention produise son effet”.20

Em Roma, não existiria nenhuma regra que restringisse o penhor às coisas móveis e a hipoteca às coisas imóveis, mas, ao contrário, tanto o penhor como a hipoteca poderiam servir para gravar qualquer bem, móvel ou imóvel, de onde que Marciano afirmou que entre o penhor e a hipoteca a diferença seria tão somente o “som do nome”:

“Inter pignus et hipothecam tamen sonus nomen differt.”21

A diferença, entre um e outra, estaria, entretanto, exatamente na questão do desapossamento, do devedor, do bem dado em garantia:

“Un dato fundamental que normalmente nos resulta desconocido es que en el derecho romano, tanto en el clásico como en el justinianeo, prenda e hipoteca no diferían entre sí. Estamos acostumbrados a concebir la prenda y la hipoteca no sólo como derechos reales en cosa ajena (y no expresiones de transferencia fiduciaria de la plena propriedad) sino como dos derechos reales típicos diferentes entre sí, originados en dos contratos o convenciones nominadas distintas, una aplicable a los bienes muebles y fundada en la entrega de la cosa (la prenda), y otra a los inmuebles y en cual la cosa permanece en poder del deudor (la hipoteca). Sin embargo en el derecho justinianeo no era así. Para demostrarlo, puede verse este fragmento del Digesto, atribuido a Ulpiano: ‘Pignus contrahitur non sola traditione, sed etiam nuda conventione, etsi non traditum est’.22 De modo que en el derecho justinianeo existía tanto la prenda posesoria (pignus datum) como la no posesoria (pignus conventum), y resultaba aplicable tanto a muebles como a inmuebles.”23

Assim, o próprio Ulpiano afirmou que, estritamente, usava-se o termo pignus para a garantia que era entregue ao credor e “hipoteca” para o caso no qual este não adquiria a posse do bem dado em garantia, ou,

“Proprie pignus dicimus, quod ad creditorem transit, hypothecam, cum non transit nec possessio ad creditorem.” (Ulpianus, D. 13, 7, 9, 2)

Emma Rodríguez Díaz, do Departamento de Direito Romano da Universidad de Oviedo, Espanha, também pontuou que:

“Frente a la fiducia, el pignus datum se contraía sin formas solemnes por la sola entrega de la cosa en manos del acreedor no transmitiendo la propriedad. El inconveniente existía para la bienes rústicos porque, despojar al dueño del fundo para ponerlo en manos del acreedor, prejudicaba la agricultura. Para salvar la situación surgió el pignus conventum o hipoteca que aseguraba al acreedor un derecho real sobre la finca sin necesidad de desplazar su posesión. Sin embargo, cuando se analizan los textos romanos sobre prenda o hipoteca, es evidente la confusión terminológica porque los juristas clásicos no elaboraron un concepto especifico para designar a la hipoteca sino que aplicaron a ambas indistintamente el término pignus.”24

Assim, parece bastante presente na doutrina que a tradição do bem empenhado seja elemento essencial ou pelo menos típico do penhor, seja em tempos mais remotos, como (pelo menos) no direito romano justiniano, seja no passado mais próximo, como se vê na codificação do direito civil francês, de 1804.

No Brasil, o Código Civil de 1916 dispunha que (art. 769):

“Só se pode constituir o penhor com a posse da coisa móvel pelo credor, salvo no caso de penhor agrícola ou pecuário, em que os objetivos continuam em poder do devedor, por efeito da cláusula constitui."

A propósito do penhor rural, fosse “penhor agrícola” ou “penhor pecuário”, ainda se teve legislação especial vigente, após o Código Civil de 1916, contida na Lei nº 492, de 30 de agosto de 1937, cujo art. 1º dispôs que constitui-se o penhor rural pelo vínculo real, resultante do registro, por via do qual agricultores ou criadores sujeitam suas culturas ou animais ao cumprimento de obrigações, ficando como depositários daqueles ou destes, configurando-se claramente o constituto possessório, e cujo art. 3º previu ainda que poder-se-ia ajustar-se o penhor rural em garantia de obrigação de terceiro, ficando as coisas ou animais em poder do proprietário e sob sua responsabilidade, não lhe sendo lícito, como depositário, dispor das mesmas, senão com o consentimento escrito do credor.

Mais ainda, o Código Comercial brasileiro, de 1850, quando tratou do contrato de penhor mercantil, como aquele pelo qual o devedor ou um terceiro por ele entregaria ao credor uma coisa móvel em segurança e garantia de obrigação comercial (CCom, art. 271), dispôs expressamente (CCom, art. 274) que:

“A entrega do penhor pode ser real ou simbólica, e pelos mesmos modos por que pode fazer-se a tradição da coisa vendida.”

Admitindo, portanto, expressamente, a tradição simbólica, embora a doutrina e a jurisprudência depois viessem a dizer estar revogado este art. 274. do Código Comercial, porque o Decreto nº 5.746, de 9 de dezembro de 1929, então a Lei de Falências do Brasil, no art. 92, n. I, teria tornado indispensável a tradição efetiva e real da coisa apenhada, para que se pudesse considerar haver privilégio especial, em favor do credor pignoratício, sobre o “ativo da falência”, o que, ultima ratio, significava que o próprio penhor só se perfazia com a tradição da coisa apenhada, sendo o penhor rural a única ressalva ali feita, por efeito da cláusula constituti. O citado dispositivo do Decreto nº 5.746/1929 dispôs:

“Art. 92. Teem privilegio especial: I, os credores pignoraticios, sobre as cousas entregues em penhor, salvo no caso do penhor agricola ou pecuario, em que os objectos continuam em poder do devedor, por effeito da clausula constituti; II, (…)”.

Assim foi decidido na assentada de 14 de junho de 1957, do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), conforme voto do Relator, Ministro Orozimbo Nonato, quando julgaram-se Embargos no Recurso Extraordinário nº 9.655. No mesmo caso, a decisão anterior, com prevalecente voto do Relator, Ministro Barros Barreto, negara provimento ao Recurso Extraordinário. Ambos os votos, dos Ministros Barros Barreto, no julgamento do Recurso Extraordinário, e do Ministro Orozimbo Nonato, no julgamento dos Embargos, cada qual com seus raciocínios próprios, basearam-se em doutrina de grandes juristas da época, da lavra dos doutores Miranda Valverde, Carvalho de Mendonça, Otavio Mendes, Afonso Fraga, Trajano Valverde, Waldemar Ferreira e outros.

Na Relatoria do próprio Recurso Extraordinário, o Min. Barros Barreto havia escrito em seu voto (atente-se para a análise do direito intertemporal como argumento preponderante):

“Pronunciou-se, no mesmo sentido, a Egrégia 1ª Turma, com o meu voto, no recurso extraordinário n. 2.872, do Paraná, consoante acórdão de 14/11/40, relatado pelo eminente Ministro Laudo de Camargo e inserto no Arquivo Judiciário, vol. LIX, pg. 14, e no Direito, vol. X, pg. 323, repelindo-se até, nesse julgamento, a alegação de que, por não se tratar de falência e sim de execução comum, deixava de vigorar o referido dispositivo do diploma de 1929. O ato vale ou não vale. Logo, não se compreenderia que fosse ele regido por dupla legislação: uma, dando-lhe eficácia, com o permitir o penhor sem entrega efetiva da coisa, quando se tratasse de execução singular; outra, negando validade ao ato, por vedar o penhor, sem sua entrega, na execução coletiva.”

Note-se que, no fundo, aquele julgamento do Recurso Extraordinário nº 9.655 pretendia resolver questão de direito intertemporal, não exatamente a imprescindibilidade da tradição efetiva do bem para formação válida e eficaz do penhor. Ainda assim, o Min. Orozimbo Nonato, ao proferir voto como Relator nos Embargos, fez questão de ressaltar essa discussão:

“Minha insignificativa opinião é, data venia, ainda mais radical. Porque em face do mesmo Cod. Com. e do Civil, independentemente do dispositivo da lei falencial, tenho como inválido o contrato de penhor sem a entrega efetiva do objeto dado em garantia.

É que essa entrega é necessária a própria constituição do penhor, como preceitua o art. 768. do Cod. Civ. que, no art. 709, reitera o mesmo princípio, de fora parte o penhor agrícola e o pecuário, ‘em que os objetos continuam em poder do devedor, por efeito da cláusula constituti’.

(...)

E qualquer dúvida que ainda pudesse remanescer estaria dissipada pelo dispositivo da lei falencial.”25

Atualmente, outro exemplo de necessidade da tradição efetiva do bem para perfazimento do penhor vem presente na redação do art. 1.458. do CC/2002, já que,

“O penhor, que recai sobre título de crédito, constitui-se mediante instrumento público ou particular ou endosso pignoratício, com a tradição do título ao credor."26

Ainda, no penhor de direitos, o titular de direito empenhado deverá entregar ao credor pignoratício os documentos comprobatórios desse direito, salvo se tiver interesse legítimo em conservá-los (CC, art. 1.451, parágrafo único).

O próprio CC/2002 dispõe (art. 1.226) que:

“Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição."

Entretanto, há exceções expressamente previstas na legislação, à regra geral da transmissão efetiva do penhor como requisito da formação da garantia real, como, por exemplo, aquelas do parágrafo único do art. 1.431. do Código Civil de 2002, ao prescrever que:

“No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar."

Sem dúvidas, é dispositivo mais maleável. De todo modo,

“Tal a diversidade de modelos, que muito pouco se pode afirmar sobre o penhor, que seja aplicável a todas as espécies. Necessariamente, há de haver um denominador comum: a coisa móvel afetada à garantia de determinada dívida. Ainda aí — dir-se-á — surgem exceções: o penhor que recai em imóveis por acessão, como as máquinas fixadas ao solo e que ensejam o chamado penhor industrial, bem como as colheitas pendentes ou em vias de formação, que podem ser objeto do penhor agrícola.”27

A legislação extravagante também criou outras hipóteses de constituto possessório, claro, em relação ao bem apenhado. Vejam-se, por exemplo, os artigos 31 e 35 da Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, in verbis:

“Art. 31. A garantia da Cédula de Crédito Bancário poderá ser fidejussória ou real, neste último caso constituída por bem patrimonial de qualquer espécie, disponível e alienável, móvel ou imóvel, material ou imaterial, presente ou futuro, fungível ou infungível, consumível ou não, cuja titularidade pertença ao próprio emitente ou a terceiro garantidor da obrigação principal.

(…)

Art. 35. Os bens constitutivos de garantia pignoratícia ou objeto de alienação fiduciária poderão, a critério do credor, permanecer sob a posse direta do emitente ou do terceiro prestador da garantia, nos termos da cláusula de constituto possessório, caso em que as partes deverão especificar o local em que o bem será guardado e conservado até a efetiva liquidação da obrigação garantida.

§ 1º O emitente e, se for o caso, o terceiro prestador da garantia responderão solidariamente pela guarda e conservação do bem constitutivo da garantia.

§ 2º Quando a garantia for prestada por pessoa jurídica, esta indicará representantes para responder nos termos do § 1º.”

Quanto à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez,

“Entende esta Corte, de há muito, que a tradição simbólica da coisa dada em depósito não desnatura o contrato de penhor”.28 Ainda assim, note-se que “O contrato de mútuo tem por finalidade precípua a utilização do bem pelo mutuário, sendo incompatível com sua natureza a constituição de garantia que subtraia do tomador a possibilidade de uso do bem, tal como sói acontecer no penhor”.29

Ressalte-se que, para proteção dos direitos do credor, nos casos em que configurado o constituto possessório, tem ele direito a verificar o estado das coisas empenhadas, inspecionando-as onde se acharem, por si ou por pessoa que credenciar, seja no penhor rural (CC, art. 1.441), penhor mercantil (CC, art. 1.450) ou penhor de veículo (CC, art. 1.464).

A respeito do depositário infiel, cumpre trazer à baila o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF), de incompatibilidade da prisão civil do depositário infiel com a ordem jurídica em vigor, em razão do tanto quanto disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conforme julgamentos do Tribunal Pleno, Habeas Corpus nº 87.585-8/SP e Recursos Extraordinários nº 349.703-1/RS e nº 466.343-1/SP.30

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Sobre o autor
Thiago Cássio D'Ávila Araújo

Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (PGF/AGU) em Brasília/DF. Foi o Subprocurador Regional Federal da Primeira Região (PRF1). Ex-Diretor Substituto e Ex-Diretor Interino do Departamento de Contencioso da Procuradoria-Geral Federal (DEPCONT/PGF), com atuação no STF e Tribunais Superiores; Ex-Coordenador do Núcleo de Assuntos Estratégicos do Departamento de Contencioso da Procuradoria-Geral Federal (NAEst/DEPCONT/PGF); Ex-Coordenador-Geral de Matéria Finalística (Direito Ambiental) e Ex-Consultor Jurídico Substituto da Consultoria Jurídica do Ministério do Meio Ambiente (CONJUR/MMA); Ex-Consultor Jurídico Adjunto da Matéria Administrativa do Ministério da Educação (MEC); Ex-Assessor do Gabinete da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça. Desempenhou atividades de Procurador Federal junto ao Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dentre outras funções públicas. Foi também Conselheiro Titular do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/2001) e Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB/2010). Em 2007, aos 29 anos, proferiu uma Aula Magna no Supremo Tribunal Federal (STF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Thiago Cássio D'Ávila. Do penhor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4653, 28 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47617. Acesso em: 22 dez. 2024.

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