“A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio.”Martin Luther King Jr.
Este trabalho apresenta um estudo sobre a Imunidade Fiscal aos templos de qualquer culto, enfatizando sua finalidade essencial que é salvaguardar a liberdade religiosa (art. 5º, VI, da CF/88), bem como expõe que determinadas atividades exercidas pelos templos não devem ser protegidas pelas normas imunizantes, em razão de não atenderem a este fim. A Imunidade Tributária é um direito previsto na Constituição Federal de 1988, que estabelece a vedação aos entes políticos (Estados, Municípios, Distrito Federal e a União) de cobrarem impostos aos templos de qualquer culto, dentre outros casos específicos. Mister salientar que entende-se por “templo” não apenas o local em que é realizado o culto religioso, mas também o patrimônio, a renda e os serviços que estejam relacionados com a finalidade essencial deste (art. 150, VI, §4º, da CF/88). Assim, tem por escopo defender a tese de que a exploração de atividades econômicas por organizações religiosas deve ser suscetíveis de tributação, uma vez que não tem como objetivo primordial garantir a livre manifestação de culto. Dessa forma, constata-se a ocorrência do desvio de finalidade, como também o desrespeito aos princípios da Isonomia Tributária e da Livre Concorrência.
Palavras-chave: Imunidade Fiscal aos Templos de Qualquer Culto. Finalidade essencial. Liberdade Religiosa. Exploração de Atividade Econômica. Desvio de Finalidade.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO .2 A RELAÇÃO ENTRE TRIBUTAÇÃO, ESTADO E RELIGIÃO ..2.1 TRIBUTAÇÃO E ESTADO – BREVE HISTÓRICO .2.2 LIMITAÇÃO AO PODER DE TRIBUTAR .2.3 A RELIGIÃO NA SOCIEDADE .2.4 O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO BALIZADOR DOS LIMITES À LIBERDADE RELIGIOSA .3 A IMUNIDADE FISCAL COMO FORMA DE SALVAGUARDAR A LIBERDADE DE CULTO .3.1 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA E SUA NATUREZA JURÍDICA .3.2 A IMUNIDADE FISCAL AOS TEMPLOS DE QUALQUER CULTO .4 O PROBLEMA DO DESVIO DE FINALIDADE DA IMUNIDADE FISCAL RELIGIOSA .4.1 PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA .4.2 PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA .4.3 A EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADES ECONÔMICAS PELOS TEMPLOS RELIGIOSO E OS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA E DA LIVRE CONCORRÊNCIA .5 CONSIDERAÇÕES FINAIS . REFERÊNCIAS . ANEXO A – PROJETO DE LEI 160/09
1 INTRODUÇÃO
Dentre as manifestações sociais observadas ao longo da história, a Religião sempre figurou em uma posição de extrema importância para o homem, incutindo em sua experiência regras de conduta que influíram na formação das civilizações.
Atualmente, embora não detenha o controle ideológico da sociedade, a Religião ainda exerce grande influência nas decisões destas. Destarte, a afirmação é verossímil quando observada a propagação desenfreada de templos no país.
O controle de ideologia nas civilizações ocorreu muitas vezes com apoio do Estado, que durante muito tempo esteve ligado à Religião influenciando-a e sendo persuadido. Houve épocas em que o Estado tomava para si determinada Religião e a instituía como oficial, discriminando, dessa maneira, a prática de outros cultos. Esta atitude, consequentemente, constrangia a livre manifestação religiosa.
Em meio a esta realidade, surgi para a coletividade a necessidade de edição de normas capazes de salvaguardar a liberdade de culto. Nesse diapasão, a CF/88, em seu Art. 5º, VI, estabeleceu o preceito da Liberdade Religiosa, considerando-o como um direito fundamental de todos os indivíduos.
Atrelada à concepção de controle ideológico, há a perspectiva do controle econômico que durante longo período foi praticado por meio da coleta de tributos. Como esta arrecadação era feita de forma desordenada e com o intuito de atender interesses individuais, foi necessário instituir normas de ordem fiscal, aptas a organizar a criação, implementação e cobrança destes tributos, tornando-os meio de auferir o bem estar social.
Não obstante esta seja a nova configuração dos tributos, estes, de certo modo, representam uma forma de controle econômico, tendo em vista que a sociedade ainda pensa na tributação como forma de controle do Estado, muito embora o tributo no Brasil tenha tido um grande avanço. Em alguns casos, essa coleta tributária chega a comprometer o exercício de algumas atividades. Nesse sentido foi que a CF/88, buscando limitar o poder de tributar do Estado e assegurar a liberdade religiosa, estabeleceu em seu art. 150, VI, b, a imunidade fiscal aos templos de qualquer culto.
No entanto, esta imunidade não deve ser entendida como absoluta, posto que há atividades, como a exploração econômica, que possui finalidade essencial diversa da norma imunizante – que é garantir e proteger a livre manifestação de culto.
Essa exploração além de proporcionar um desvio de finalidade, ultraja a compreensão de que pessoas, físicas ou jurídicas, que se encontram em situações jurídicas semelhantes, devem receber tratamento fiscal igualitário. Noutro ponto, a concessão da imunidade tributária ao exercício de atividade econômica pelos templos, caracteriza um abuso, visto que impossibilita o livre funcionamento do mercado.
Nesse sentido, este trabalho monográfico tem por objetivo discutir a questão da tributação das atividades econômicas realizadas pelos templos de qualquer culto, tendo em vista a imunidade fiscal prevista no ordenamento pátrio.
Dessa forma, no primeiro capítulo do presente estudo aborda-se a relação entre Estado, Tributo e Religião. Apresenta-se, em um primeiro momento, o conceito de Estado, enquanto sociedade política e como ente jurídico, bem como o conceito de tributo, evidenciando como este se configurou na história mundial e no Brasil.
Logo após, é exposto o conceito de soberania, salientando ser esta um elemento do Estado responsável por legitimá-lo. Em seguida, ressalva-se que o poder de tributar, embora oriundo desta, não é absoluto, sendo delimitado por princípios constitucionais e pelas normas imunizadores – que instituem a incompetência fiscal dos entes políticos (Estados, Municípios, Distrito Federal e a União). É observado também, que o poder de tributar é concedido aos entes políticos de forma específica, onde irão gerar contribuições sem interferir no mérito um do outro.
Posteriormente, é evidenciada a importância da Religião na sociedade, enfatizando as principais religiões e seus aspectos fundamentais, para que mais adiante seja factível demonstrar que este prestígio ensejou a criação de normas constitucionais que garantem a liberdade de culto, como o art. 5º, VI, da CF/88 e o art. 150, VI, b, da CF/88.
No segundo capítulo procurou-se discutir a imunidade fiscal em seu conceito mais amplo, apresentando suas características, para depois esmiuçar uma espécie desta, qual seja, a imunidade fiscal aos templos de qualquer culto.
Analisa-se assim, as interpretações acerca do alcance da imunidade tributária, tendo por base a definição de templo, bem como sua finalidade essencial que é salvaguardar a liberdade de culto. Feitas as ponderações a respeito da imunidade fiscal aos templos de qualquer culto, discute-se no terceiro capítulo, o problema do desvio da finalidade da imunidade fiscal.
Destaca-se que a exploração de atividades econômicas realizada pelos templos não poderá ser protegida pela norma imunizadora, tendo em vista que essa exploração tem como escopo essencial o lucro. Realça-se ainda, que além de divergir do fim único da imunidade tributária, a não tributação de atividades econômicas por esses entes desrespeita os princípios da Isonomia Tributária e da Livre Concorrência.
Intentando lograr seus objetivos, o corrente estudo se estabeleceu por meio da perquirição em artigos científicos, livros da seara jurídica, deliberações do STF, como também obras que versam sobre religião e sobre a história do Brasil e do mundo.
Por fim, almeja-se que as conclusões alcançadas neste trabalho estimulem uma mudança de postura do Estado, no que concerne a não tributação da exploração de atividades econômicas pelos templos, do mesmo modo que permitam a conscientização da sociedade do intuito de que alguns indivíduos se utilizam da liberdade religiosa e da imunidade tributária, a fim de transmutar os templos religiosos em negócios rentáveis.
2 A RELAÇÃO ENTRE TRIBUTAÇÃO, ESTADO E RELIGIÃO
O presente tópico enseja evidenciar o conceito de Tributo, Estado e Religião, apresentando seus históricos, como também as suas influências na sociedade. Pretende-se ainda demonstrar que estes institutos foram, e de certa forma ainda são, responsáveis pelo controle econômico, político e ideológico respectivamente.
2.1 ESTADO E TRIBUTAÇÃO – BREVE HISTÓRICO
Em um primeiro momento, se faz importante trazer à baila os conceitos de Estado e de Tributo objetivando uma maior compreensão do tema proposto.
Em regras gerais, entende-se Estado como uma instituição destinada a garantir o bem estar social. Nesse sentido, Sahid Maluf, aduz:
[...] o Estado é uma organização destinada a manter, pela aplicação do Direito, as condições universais de ordem social. E o Direito é o conjunto das condições existenciais da sociedade, que o Estado compre assegurar (2003, p. 1).
Corroborando com essa perspectiva, Dalmo de Abreu Dallari preleciona que o Estado é uma “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território” (1998, sp).
Por conseguinte, deve ser que ao Estado cumpre assegurar os direitos dos cidadãos, proporcionando-lhes pelo menos o mínimo de condições necessárias a sua sobrevivência, bem como, delimitar o comportamento humano, por meio de normas jurídicas de conduta – salvaguardando direitos e estabelecendo deveres.
No entanto, o conceito de Estado nunca foi unívoco na doutrina. Embora hodiernamente o conceito mais aceito de Estado seja entendido como uma instituição político jurídica, o mesmo deve ser compreendido como sendo uma sociedade política.
No que tange à sociedade política, deve-se considerá-la como toda aquela civilização que de forma eminente norteia a conduta dos indivíduos que as constituem. Outrossim, Joaquim Aguiar no artigo “A sociedade política: exercício do poder como ação condicionada”dispõe que a sociedade política “é o conjunto de comportamentos sociais com relevância jurídica” (AGUIAR, 1986, p. 866).
Essa compreensão serve para esclarecer que as civilizações surgidas anteriormente ao aparecimento do termo Estado1, também conduziam a vida social de seu povo – revelando que as sociedades políticas sempre existiram e com finalidades semelhantes à do Estado que se conhece hoje.Nesse viés, Dalmo de Abreu Dallari estabelece que
[...] a sociedade ora denominada Estado é, na sua essência, igual à que existiu anteriormente, embora com nomes diversos, dá essa designação a todas as sociedades políticas que, com autoridade superior fixaram as regras de convivência de seus membros (1998, sp.).
Não obstante, é importante esclarecer que a terminologia utilizada neste trabalho, está empregada enquanto instituição político-jurídica e não, como NAÇÃO – caracterizada pela sua subjetividade, como bem assegura Sahid Maluf: "conceitua-se como um conjunto homogêneo de pessoas ligadas entre sí por vínculos permanentes de sangue, religião, cultura e ideais" (2003, p. 17).
No que diz respeito à tributação, o Código Tributário Nacional – CTN depreende-se ser tributo a prestação pecuniária, assegurada em lei, que é imposta ao patrimônio do particular de forma compulsória2, não sendo necessário a realização de um ato ilícito para que o mesmo seja cobrado.
O tributo, dessa forma, não se configura por ser uma punição e sim por ser um meio de arrecadação pública. Contudo, embora o CTN assegure que o tributo deverá ser pago em moeda corrente, o mesmo permite que o cumprimento desta prestação possa ser realizado por meio de bens imóveis3.
Atualmente, os tributos são classificados em espécies – as quais suscitam o surgimento de diferentes teorias quanto a sua classificação. Entretanto, é relevante enfatizar a teoria tripartite que comunga com a Constituição brasileira de 19884 ao estabelecer como tributos não apenas os impostos e as taxas, mas também as contribuições de melhorias (LUCK, 2009, sp).
Evidenciados os conceitos de Estado e Tributo se torna possível trazer à baila, a relação existente entre estes ao longo do tempo de forma mais clara e objetiva. Meritório salientar, contudo, que para estabelecer esta relação, o Estado será empregado em seu sentido mais amplo, ou seja, enquanto sociedade política detentora do poder, e não apenas no sentido de instituição político jurídica.
Dessa forma, ao analisar o liame entre Estado e Tributação é possível observar que esta assumiu variados formatos, isto é, estabelecia-se determinada prestação a ser paga, sendo que esta poderia ser cumprida, a princípio, por meio de mercadorias e/ou serviços, mas posteriormente passou a ser aceito o pagamento em ouro, prata e pedras preciosas, para que mais tarde o pagamento ocorresse em moeda corrente como forma primordial de cumprimento dos tributos. A tributação, atualmente é norteada por um conjunto de normas jurídicas que ao mesmo tempo que a estabelece, impõe limites na sua formação e implementação.
Nesse diapasão, pode-se caracterizar como uma forma de tributação a prática realizada pelos povos antigos, onde os vencidos em uma guerra, por exemplo, deviam pagar aos vencedores determinada prestação em virtude da sua derrota.
Dessa forma, é comum encontrarmos na doutrina referência ao tributo, em seus primórdios, muito mais como uma receita obtida coativamente pelo Estado vencedor impondo-se sobre o vencido, exigindo a reposição do patrimônio despendido durante o período de beligerância, que como uma receita imposta aos súditos, vassalos do titular do poder político dentro de determinada jurisdição (BALTHAZAR, 2005, p.20).
Sabe-se que com o passar do tempo a imposição de pagamento de tributos não ficou mais restrita a povos vencidos, mas também àqueles que estavam subordinados ao poder vigente.
Passado o período do Império Romano, em que a cobrança de tributos era feita com o intuito de atender os interesses do imperador, deu-se a chamada Idade Média, século V ao XV, onde os senhores feudais, junto com a Igreja Católica, representavam o poder soberano no período medieval.
Nos grandes latifúndios, conhecidos como feudos, se estabeleceu uma relação de dependência entre o senhor feudal e os servos5, no qual era concedido um pequeno pedaço de terra, conhecido como gleba6, em troca dos serviços prestados nos feudos e pelo pagamento de tributos7.
Ainda na idade média a cobrança de tributos se tornou insustentável para os servos e aos poucos estes migraram para os burgos que eram pequenas aldeias que se assemelhavam com o que se conhece por cidade – ocasionando o enfraquecimento do sistema feudal.
A partir do final do século XVI e início do XVII, junto com o Feudalismo, a religiosidade foi perdendo terreno para o racionalismo, e em função disso o homem passou a ser o centro do universo podendo, assim, tomar suas próprias decisões. Nesse contexto surge o renascentismo, que ficou conhecido como o período em que o mundo saiu da escuridão, pois a humanidade pode exercitar a sua liberdade de expressão sem o temor de serem punidas por uma força superior.
Contudo, toda esta mudança, ocasionou um sistema de governo extremamente centralizador: o absolutismo, onde o rei detinha todo o poder para comandar os seus súditos. Dessa forma, os tributos eram cobrados dos súditos com o fulcro de manter o sistema centralizador.
No Brasil, por sua vez, a tributação foi uma herança introduzida pela monarquia portuguesa durante o período colonial. Esta cobrança desordenada contribuiu para o fortalecimento das divisões de classes, posto que quem detinha o poder econômico, político e/ou social estabelecia como e quem iria arcar com o pagamento dos tributos. Necessário frisar que Portugal sofria grande influência religiosa neste período – o que segundo Ubaldo Cesar Balthazar colaborou com a implementação dos tributos.
Influências religiosas também devem ser registradas no processo de criação de tributos em nosso país. A singular ligação do Estado português com a Igreja Católica, reproduzida no Brasil, teve como consequência uma aguda participação do Alto Clero, principalmente na formulação de incidências tributárias. Instituições estatais e religiosas, por muito tempo, praticamente se confundiam, enleando ainda mais o “desordenado” sistema jurídico tributário vigente na colônia e, depois, durante o Império (2005, p. 34).
O primeiro tributo arrecadado no Brasil ocorreu no período colonial e era conhecido como o quinto do pau-brasil. Este tributo era infligido aos cidadãos que exploravam a extração do pau-brasil8, e como não havia circulação de moedas nesse período, o mesmo era pago com a própria matéria prima extraída (BALTHAZAR, 2005, p. 35).
Posteriormente, foi adotado o sistema de capitanias hereditárias no Brasil, fazendo com que houvesse a cobrança de tributos em outras atividades, como na colheita dos produtos agrícolas e na extração de metais preciosos. Entretanto, o cumprimento das obrigações tributárias não aconteceu de forma correta – o que causou “prejuízos” à Coroa portuguesa. (BALTHAZAR, 2005, pp. 40-41)
Passado o período colonial, o Brasil liberto de Portugal, viveu o tempo do Império. Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808, há a abertura dos portos brasileiros para comercialização com outras nações, como a Inglaterra.
[...] em 28 de janeiro, do mesmo ano, o príncipe D. João VI promulgou a Carta Régia, que possibilitou entre outras coisas: a) liberalização do comércio/exportação no Brasil e abertura dos portos às “nações amigas”, com a comercialização de todo o tipo de mercadoria estrangeira e a criação do Tesouro Nacional, substitutos das Juntas da Fazenda; b) surgimento da imprensa nacional; c) criação do Banco do Brasil, que passou a emitir moedas em ouro, prata, cobre, sendo suspensa a utilização em ouro em pó;
d) revogação das leis que proibiam qualquer atividade industrial no Brasil e isenção tributária para matéria importadora para a indústria [...] (BALTHAZAR, 2005, p. 70).
Assim, com o advento da Carta Régia passou-se a tributar também as relações de comércio, no que se refere às importações e exportações de produtos. Nessa expectação leciona Ubaldo Cesar Balthazar:
[...] podemos apontar os direitos de importação, cobrados em uma base única de 24%, de todos os produtos, de qualquer lugar, salvo se originário de Portugal e Inglaterra, quando se verificava uma queda no percentual,passando, respectivamente, para 16% e 15% [...]. O sistema contemplava também os direitos de guindaste (Alvará de 25 de abril de 1808) e a décima dos prédios urbanos (mais tarde denominada décima urbana e imposto sobre prédios urbanos, com um percentual de 10% sobre o rendimento liquido de móveis litorâneos ou populosos do interior).
Havia um pensão para a capela imperial (Alvará de 20 de agosto de 1808), uma contribuição de polícia (Ato de 13 de maio de 1809), o imposto de sisa dos bens de raiz, sobre compra/venda/arrematação de imóvel urbano, posteriormente denominado imposto sobre transmissão imobiliária por ato inter vivos [...] (2005, p. 72).
Embora o Brasil com a criação da Carta Régia tenha obtido um maior controle sobre a arrecadação tributária, certa organização fiscal só foi alcançada no país com a instituição da Constituição Federal de 1824 – que estabeleceu a não isenção na cobrança de tributos. Contudo, não estipulou limites na sua cobrança e imposição.
Após a Independência constituiu-se, no Brasil, o Estado Fiscal. A principal característica deste Estado consiste em um “novo perfil da receita pública, que passou a se fundar nos empréstimos, autorizados e garantidos pelo Legislativo, e principalmente nos tributos” em vez de estar consubstanciada nos ingressos originário do patrimônio do príncipe. Além disso, o tributo deixa de ser cobrado transitoriamente, vinculado a uma determinada necessidade conjuntural [...], para ser cobrado permanentemente (BALTHAZAR, 2005, p. 79).
Com o fim do Império, ocorre a Proclamação da República brasileira – não obtendo a participação popular para se concretizar. Todavia, alcançou por meio da Constituição de 1981 “o princípio federalista, com autonomia política, administrativa e financeira dos Estados- membros” (BALTHAZAR, 2005, p. 105).É só com a constituição de 1934 que esta organização fiscal é alcançada, pois ocorre a proibição da cobrança múltipla de tributos9. Ubaldo Cesar Balthazar evidencia ainda que
[...] no que se refere à seara tributária, cabe ressaltar a criação de uma comissão ainda antes de 1934, como o objetivo de estudar a situação financeira e econômica dos Estados e apresentar sugestões, organizações de orçamentos, solução de problemas fiscais, uniformização da contabilidade pública, etc (2005, p. 114).
A constituição de 1967, no entanto, foi a primeira a reservar um capítulo para tratar do assunto da tributação, intitulado “Do Sistema Tributário” estabelecendo os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria como sendo espécies de tributos10.
A Constituição Federal de 1988, entretanto, passou a tratar desse tema no título VI, intitulado “Tributação e Orçamento”.
A informação de que a cobrança de tributos sempre existiu na sociedade, embora de forma desordenada, evidencia que as sociedades políticas eram detentoras do poder de tributar, que só veio a ser ratificado com o surgimento do arcabouço jurídico tributário.
Atrelada a esta normatização fiscal, observou-se que o poder de criar, implementar, e cobrar tributos não poderia ser absoluto. Caso contrário, a coleta dos tributos continuaria atendendo aos interesses de particulares em detrimento do bem-estar coletivo. À vista disso, se fez vital a criação de limitações ao poder de tributar.
2.2 LIMITAÇÃO AO PODER DE TRIBUTAR
O Estado possui como elementos básicos: o povo, o território e a soberania. Este último elemento é de extrema importância em sua legitimação. Entende-se por soberania como sendo o poder que não se subjuga a outros poderes, portanto supremo. Nesse diapasão, Marcelo Figueiredo aduz: “[...] pode-se dizer que a soberania em sentido amplo significa o poder, a autoridade em última instância [...]” (2009, p. 24).
Dentro deste conceito amplo de soberania, há o conceito de soberania estatal – o qual é de suma importância para a formulação do conceito do poder de tributar, bem como da competência tributária.
Neste sentido, soberania estatal é o poder de que o Estado necessita para se legitimar enquanto instituição político jurídica e também como Nação. Diante desta dualidade que a doutrina enfatiza a existência de uma soberania interna e outra externa11. A primeira seconfigura por ser aquela que delimita os direitos e deveres de um povo que compreende uma extensão determinada. Já a segunda assegura que um Estado se imponha enquanto Nação perante os demais, em virtude da sua independência.
Nessa esteira, Hugo de Brito Machado defende que “o estado é entidade soberana. No plano internacional representa a nação em suas relações com outras nações. No plano interno tem o poder de governar todos os indivíduos que se encontrem em seu território” (2004, pp. 42-43).
Assim, já que a soberania de um Estado determina as concessões, obrigações e limitações de um povo, pode-se entender que o poder de tributar é produto desta soberania. Diferentemente desta não pode ser compreendido como absoluto.
O poder de tributar será partilhado entre os entes políticos (Estados, Municípios, Distrito federal e União) com o intento destes serem responsáveis em facultativamente conceber tributos. Essa prerrogativa é intitulada como Competência Tributária – que será regulada pela constituição federal. Nesse caso Hugo de Brito Machado certifica que:
o instrumento de atribuição de competência tributária é a constituição federal, pois como se disse, a atribuição de uma competência tributária faz parte da própria organização jurídica do Estado. Evidentemente só a pessoas jurídicas de Direito Público, dotadas de poder legislativo, pode ser atribuída competência tributária, posto que tal competência somente pode ser exercida através da lei (2004, pp. 43-44).
A arrecadação tributária se dá com o objetivo de gerar receita para financiar as despesas públicas de um Estado. Contudo, não é estabelecida e aplicada de forma aleatória, há na Constituição Federal vigente previsões que delimitam o poder de tributar, quais sejam: os princípios constitucionais tributários e consequentemente as imunidades.
Dessa forma, tem-se como princípios constitucionais tributários o princípio da legalidade tributária – atribuindo, de forma restrita, ao poder Legislativo a criação, a extinção e a modificação dos tributos; o princípio da Anterioridade da Lei Tributária – que consiste na necessidade de lei orçamentária autorizando a exigência de um tributo; princípio da isonomia tributária – que tem como objetivo inibir a ocorrências de privilégios, sob qualquer órbita, em matéria tributária quando os contribuintes estiverem em situações de igualdade; princípio da Tributação segundo a capacidade contributiva – que está jungida à ideia de condição econômica do contribuinte para arcar com os tributos cobrados; e o Princípio da Indelegabilidade da Competência Tributária – assegurando que a competência tributária de um ente público é intransferível (BRITO MACHADO, 2004).
No que concerne às imunidades, a Constituição Federal de 1988 em seu art. 150, inciso VI, preceitua que é vedado à União, aos Estados, Município e Distrito Federal instituir impostos sobre: 1) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; 2) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; 3) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e 4)templos de qualquer culto.
Essas imunidades são responsáveis por estatuir a incompetência fiscal, pois impossibilitam não apenas a arrecadação, mas também a criação de tributos para os casos especificados na Constituição Federal.
A imunidade tributária é um fenômeno de natureza constitucional. As normas constitucionais que, direta ou indiretamente, tratam do assunto fixam, por assim dizer, a incompetência das entidades tributantes para onerar, com exações, certas pessoas, seja em função de sua natureza jurídica, seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações. Encerram limitações, posta na própria Constituição Federal, á ação estatal de criar tributos (CARRAZA, 2011, p. 772).
Entretanto, o presente estudo aborda a imunidade aos templos de qualquer culto como norma balizadora do poder de tributar, considerando a importância da Religião para as civilizações.
2.3 A RELIGIÃO NA SOCIEDADE
Ao longo da história, a relação entre a religião e o homem se deu de forma intensa. Pode-se afirmar que desde os primórdios a religião desempenhou papel importante no seio das civilizações estabelecendo regras norteadoras da vida social.
As antigas civilizações associavam a natureza, bem como os fenômenos naturais, às entidades divinas (espíritos, deuses, etc), acreditando que estas residiam nos elementos da natureza ou se manifestavam por meio deles. Nesse sentido afirmam Jostein Gaader, Victor Hellern e Henry Notaker:
O antropólogo E. B. Tylor (1832-1917) batizou essa crença de animismo. Tylor foi influenciado pela teoria de Darwin sobre a evolução. Segundo ele, o desenvolvimento religioso caminhou paralelamente ao avanço geral da humanidade, tanto cultural como tecnológico, primeiro em direção ao politeísmo (crença em diversos deuses) e depois ao monoteísmo (crença num só deus) (2000, p. 15).
O culto a esses elementos traziam como prática a realização de sacrifícios, oferendas e ou rituais com o objetivo de agradecer as divindades ou ainda para alcançarem objetivos. Assim versam Jostein Gaader, Victor Hellern e Henry Notaker:
O sacrifício é um elemento central no culto de muitas religiões. Um sacrifício, em geral algo que as pessoas consideram valioso, é oferecido aos deuses. Pode ser constituído de frutas, primícias das colheitas, um filhote de animal; em certas culturas existem até mesmo exemplos de sacrifício humano. O propósito da oferenda varia, e podemos distinguir entre vários tipos de sacrifício, dependendo daquilo que o sacrificante deseja alcançar. Em todos eles, é constante a experiência do contato e da fraternidade (2000, p. 27).
A depender da civilização os seres humanos assumiram diversas formas de religião. Houve civilizações que professaram o politeísmo, isto é, a crença em vários deuses, como: o hinduísmo12, bem como outras que adotaram o monoteísmo – crendo na existência de uma única entidade divina, dando origem a religiões como o Cristianismo, o Islã e o Judaísmo.
Tendo em vista a importância dessas religiões monoteístas para a sociedade, faz-se necessário um aprofundamento acerca das mesmas, colimando-se, destarte, uma visão das suas contribuições para a humanidade.
Oriundo do Oriente Médio o cristianismo é uma religião que cultua a crença em um só Deus. Surgida no Império Romano, só passou a ser reconhecida como a religião oficial do império em 391 d.c. pelo imperador Teodósio13 (DIDIER; REZENDE, 2001, p. 62), tendo em vista a sua disseminação entre os povos que constituíam o Império Romano, em especial, aqueles que viviam à margem desta sociedade. Com tal característica, Antonio Paulo Rezende e Maria Thereza Didier aduzem que:
O surgimento do cristianismo foi decisivo nos desdobramentos da história de Roma, devido ao seu caráter inovador: uma sociedade escravocrata, pregava a igualdade entre os homens; diante de uma política militarista, defendia a solidariedade para com o próximo; ante o luxo em que vivia uma minoria, condenava o apego às riquezas.
Seu fundador Jesus Cristo, nasceu na Judéia, no Oriente Próximo, quando ela se encontrava sob domínio romano. Tendo como base a tradição judaica, o cristianismo crê na existência de um único deus e é uma religião preocupada com a ética e o fim dos tempos. Cristo defendia o amor ao próximo, mostrava a força da caridade e afirmava ter vindo à terra para salvar os homens, livrá-los da marca do pecado. Esse discurso arrebatava as multidões, principalmente os que viviam à margem dos privilégios sociais e econômicos, e criava nos detentores do poder o temor de um poder paralelo (2001, p. 62).
Embora o Cristianismo seja uma religião muito difundida no mundo, hoje ela é vista, basicamente, como uma religião Ocidental. Pois, de acordo com Jostein Gaader, Victor Hellern e Henry Notaker, “três quartos de todos os cristãos vivem na Europa e nas Américas” (2000, p.105).
Durante toda sua existência, o Cristianismo exerceu grande influência nas manifestações culturais, ideológicas e políticas das sociedades que o cultuavam. Nessa direção “conhecer o cristianismo é pré-requisito para compreender a sociedade e a cultura em que vivemos” (GAADER; HELLERN; NOTAKER, 2000, p. 148).
Com o passar do tempo, o Cristianismo foi dando origem a outras formas de religião, como o protestantismo – que surgiu em virtude de um movimento liderado por Martinho Lutero que se propôs a questionar os dogmas do Cristianismo católico. Por outro lado, tanto o Catolicismo como qualquer outra religião oriunda do Cristianismo, como é o caso do Protestantismo, tem a Bíblia como livro sagrado detentor dos desígnios divinos.
A religião do Islã surgiu no século VII d.c, na Península Árabe, tendo na figura de Alá o seu Deus supremo e Maomé o enviado de Deus na Terra. O Islã acredita que o seu livro sagrado – o Corão – é suficiente para que o indivíduo alcance a mensagem divina, tendo em vista a completude de suas regras (MACHADO, 2011, p. 16).
Por consequência, a religião Islâmica considera que toda a atividade exercida pelo homem, seja ela política, social ou religiosa estará interligada, uma vez que se trata de uma determinação de Alá. Nessa esteira que Jostein Gaader, Victor Hellern e Henry Notaker anunciam que neste livro contém “instruções fixas e rígidas sobre o governo da sociedade, a economia, o casamento, a moral, o status da mulher etc” (2000, p. 141).
Reforçando o mesmo pensamento, Janaina Machado citando trecho da obra “Mundo Mulçumano” de Peter Demant, assevera que:
[...] o Islã é uma religião (din), com tudo o que este termo implica (crença, ritual, normas consolação, etc), ao mesmo tempo em que é uma comunidade (umma) e um modo de viver ou tradição (sunna) que regulariza todos os aspectos da vida: o indivíduo e as etapas de seu desenvolvimento; a educação; as relações entre homens e mulheres; a vida familiar e comunal; o comércio; a justiça e a filosofia (2011, pp. 16-17).
A religião judaica, por sua vez, é conhecida como a mais antiga dentre as religiões monoteístas, sendo, portanto, mais antiga que o Cristianismo e o Islã. Esta religião associa que todo acontecimento ocorrido na terra decorre de uma vontade divina (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000, pp. 105-106) – o que denota grande influência nas relações sociais dos indivíduos.
Prelecionam nesse viés Antonio Paulo Rezende e Maria Thereza Didier ao entenderem que “a religião teve influência na preservação da identidade cultural hebraica, como também em sua produção literária, com destaque especial para o antigo testamento, que serviu de base posteriormente para o cristianismo” (2001, p. 29).
Desta forma, compreende-se que a Religião caracteriza-se por ser uma manifestação social, onde o homem se relaciona com uma força suprema, por meios de seus dogmas e suas liturgias. Wolmir J. Amado, Mario Aldighieri, José Bertazzo e Suely F. Lopes no livro “A Religião e o negro no Brasil” citando Otto Maduro defendem que:
Religião é uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a algumas forças (personificadas ou não, múltiplas ou unificadas) tidas pelos crentes com anteriores e superiores ao seu ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa dependência (criados, governados, protegidos, ameaçados etc.) e diante das quais se consideram obrigados a um certo comportamento em sociedade com seus 'semelhantes' (1989, pp. 8-9).
A religião então se estabeleceu na sociedade como parte da sua cultura, revelando-se de formas diferentes seja pelos costumes de cada região ou ainda pelo momento histórico vivido em seu surgimento ou implementação. Deste modo atesta Nilson Roberto da Silva Gimenes:
A religião é um dos fenômenos culturais mais antigos da humanidade, e nela a filosofia e a ciência deitaram suas primeiras raízes. Os sacerdotes foram os primeiros letrados, e os livros sagrados os repositórios do saber dos povos antigos. Ela foi e ainda é utilizada no controle ideológico da sociedade (2005, p. 13).
No que se refere ao controle ideológico das civilizações, pode-se observar que ao longo da história, a sociedade política e a religião estiveram intimamente ligadas. O Estado durante muito tempo influenciou e foi influenciado pelos dogmas religiosos, ao ponto de estarem tão próximos que não era mais possível a distinção de quem era o poder político e quem era poder religioso. Esta relação contribuiu para que a sociedade e, principalmente, o Estado se transfigurasse intolerante ao surgimento e propagação de outros cultos religiosos.
A intolerância religiosa cultuada por um longo período nas civilizações colaborou com o cerceamento do direito de exercer o pensamento religioso. Não havia, portanto, uma igualdade entre as religiões, ou seja, aquelas que eram oficiais ou condizentes com os interesses do Estado, possuíam toda a liberdade de culto desejada; noutro ponto, as demais sofriam com a intolerância.
Na idade média, por exemplo, o poder político não estava dissociado da religião, o Senhor Feudal não era um ente do povo, mas um representante divino na terra, destinado a governá-lo. Nesse período da história, mais precisamente do século V ao XV, a presença da religião católica era tão significativa que as decisões necessitavam da autorização papal para que fossem executadas. Assim afirma Maísa Cristina Dante da Silveira:
[...] a Igreja organizou-se de forma semelhante ao sistema de domínios da sociedade feudal: criou mosteiros fortificados, que funcionavam como os castelos e as vilas dos senhores feudais. Apoiou a disseminação do feudalismo porque, através da descentralização que ele proporcionava, a manutenção dos domínios eclesiais inalienáveis era facilitada (2004, sp.).
As ideias de igualdade e tolerância entre as religiões só serão evocadas com o advento da Revolução Francesa em 1789 – que objetivava acabar, no âmbito jurídico, com a disparidade social, política e religiosa vivenciada nas sociedades até então. Desse modo, Eduardo Ramalho Rabenhorst, referindo-se à Declaração de Direitos do Homem, ensina que:
[...] os revolucionários franceses aboliram a assimetria jurídica baseada na posição social dos indivíduos, estabelecendo, logo no art. 1º da Declaração de 1789, um único status para todos os cidadãos: os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser fundamentadas na utilidade comum (2001, p. 36).
No Brasil, igualmente, a religião também exercia junto com o Estado grande influência ideológica na sociedade. Somente com a proclamação da República em 1889, o Estado e a Religião não puderam mais ser vistos como faces de uma mesma moeda (GAADER; HELLERN; NOTAKER, 2000, pp. 306-307).
Importante frisar, no entanto, que o Estado brasileiro tinha como religião oficial, o Catolicismo. E esta exclusividade fazia com que as demais religiões fossem cultuadas às margens da sociedade – o que interferia na liberdade de culto dos povos.
Esta ingerência do Estado na liberdade religiosa teve que ser limitada. Sendo assim, na Constituição Federal de 1891 foram instituídas normas que objetivavam acautelar a liberdade de culto, independentemente da sua crença.
2.4 O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO BALIZADOR DOS LIMITES À LIBERDADE RELIGIOSA
Compreende-se por direito fundamental todo aquele direito essencial à existência do homem, constituído com o fulcro de garantir a convivência digna em sociedade, podendo o homem expressar livremente as suas escolhas. Assim, devido a sua importância, é tido como um direito personalíssimo, não podendo assim ser renunciado por qualquer pessoa e tampouco por seu titular.
Diante do exposto e colocando em destaque a liberdade religiosa no seio dos direitos fundamentais, torna-se importante demonstrar como essa "garantia estatal", passível de ser exigida, se concretizou no país, por meio de uma análise dos dispositivos presentes nas constituições brasileiras. Afinal, tal liberdade permite ao homem relacionar-se livremente com o divino sem que ocorram influências externas, principalmente, por influência estatal a ponto de inviabilizá-la.
A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e a própria diversidade espiritual (MORAES, 2004, p. 75).
A constituição de 1824, datada do Brasil Império, foi imposta em 25 de março de 1824 pelo imperador D. Pedro I, sendo composta por 179 artigos. Caracterizou-se, por assim dizer, por proteger e, principalmente, fortalecer o poderio do imperador, em detrimento dos direitos do povo, o que refletia a realidade política e social da época:
Já houve quem dissesse que a única coisa organizada em nossa sociedade colonial foi a escravidão. Ressalvado o exagero, permanece a validade dos restantes e devidos encaixes da frase; o organizado, naquela sociedade, se ligava às estruturas rígidas de dominação. E assim continuou a coisa, pelo século XIX a dentro: persistindo formas sociais com pouca mobilidade, predominando um centralismo político opressivo (que inclusive rarefazia a vida das províncias, como ocorreu com dar aos aparatos governamentais molas cada vez mais centralizadoras). E se, no setor da profissão religiosa e no da militar, as classes inferiores (acrescente-se: os pretos e os mestiços) tiveram chance de ascensão social, isto não pôde constituir ainda uma brecha democratizante de amplitude suficiente para desabafar o clima conservador que era o daquela sociedade. Mesmo porque as formas de dominação eram, foram-no por todo o século XIX, basicamente remanescentes das primeiras existentes no país: simples, personalistas, parecidas com a figura que, com base em experiências outras que a nossa, se inclui na tipologia weberiana como “dominação tradicional” (SALDANHA, 2001, pp. 141-142).
Dentre esses direitos usurpados, está a liberdade religiosa – a qual foi cerceada em seu sentido mais amplo, pelo fato do Estado, taxativamente, instituir uma religião como oficial:
[...] a religião se incluía entre os problemas fundamentais: o art. 5 dava a ‘católica apostólica romana’ como continuando a ser a religião do Império, mas permitia as outras com restrições (SALDANHA, 2001, p. 110).
Assim em seu art. 5º aludia:
A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casos para isso destinadas, sem forma alguma exterior ao templo (grifo nosso).
Mais adiante, a referida Carta Magna, revelando a influência da religião no Estado, prevê ainda em seu Art. 99 que: "A pessoa do imperador é inviolável e Sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma.". Afinal, era considerado como o representante de Deus na Terra.
Por outro lado, a Constituição de 1891, estabelecida no período de República, foi instituída após votação de uma Constituinte – o que lhe concedeu características mais democráticas. Embora ainda fosse coberta de ideais oriundos das classes dominantes, o seu conteúdo foi revestido de um caráter mais social, garantindo ao povo maiores direitos e liberdades, se comparada com a legislação antecedente:
Ela consolidou, vitoriosa a propaganda, um conjunto de conteúdos doutrinários mais ou menos coerentes. Vinha, como tinha sido o caso da outra, de uma equivalente euforia: era como se só agora o Estado brasileiro passasse a existir. Euforia pomposamente verbalizada nos discursos e nos debates, pois os estilos da época ajudavam a enfatizar o sentimento, que todos tinham, de quão decisivo era o trabalho de reorganizar a nação. Mas a constituição, em suas raízes, correspondia mais a um propósito da camada dominante do que a uma aspiração, mesmo implícita, do povo (sempre se cita, a respeito da proclamação, a frase de Aristides Lobo, ele próprio republicano, segundo a qual “o povo assistiu àquilo bestificado”); o que não quer dizer que o povo estivesse sendo “contrariado”, pois ele não tinha nem consciência política nem vontades claras (SALDANHA, 2001, pp. 253-254).
Noutro ponto, no que diz respeito à liberdade de culto, a aludida Constituição determinava em seu Art. 11, a vedação ao Estado, de inviabilizar os exercícios dos cultos religiosos14, prevendo ainda no Art. 72, ser cabível à constituição garantir a brasileiros e estrangeiros que residem no país o livre exercício do direito ao culto15. Contudo, a referida Lei, destacou-se por estabelecer normas a cerca da divisão dos três poderes em executivo, legislativo e judiciário:
[...] foi ainda o tempo da problemática dos três poderes. Vencida a Monarquia e instalada a República, havia muitos caminhos a tomar, e reivindicações a atender; uns queriam regenerar o Legislativo, viciado pelas táticas do Império, outros tomavam o presidencialismo adotado como chance para dar hegemonia ao Executivo; muitos pleiteavam, como conatural à República (e miravam, inclusive, o figurino dos States), a ascendência do Judiciário (SALDANHA, 2001, p. 260).
No ano de 1934, durante o governo do então presidente Getúlio Vargas, foi instituída a Constituição de 1934 – aperfeiçoando o caráter social da sua antecessora, garantiu o direito de voto às mulheres, mas, do ponto de vista democrático, ainda restringiu tal direito aos analfabetos e moradores de rua.16 Diante disso declara Nelson Nogueira Saldanha:
Essa constituição seria de grande importância, e o debate a seu respeito arregimentou os juristas e os políticos: àquelas alturas, enriquecera-se a tradição de estudos políticos no país. 320 A constituição trazia algumas modificações dignas de nota na montagem das competências, e continha, por força da influência da constituição alemã de 1919 (chamada de “Weimar”), expressivos traços social democráticos, incluindo importantes dispositivos que interferiam na ordem econômica e na vida do trabalho e que punham o Estado como que a serviço de uma composição de interesses de classe. Foi entretanto, como texto, uma arquitetura inaplicada, e como etapa histórica um parêntese no curso das mutações que ocorriam com o Brasil: por trás do pano, os donos da situação continuavam tramando, e o processo continuava. Era um processo complicado, pois o movimento getulista, que ao lutar contra o governo anterior se achava ao lado das esquerdas, agora somente sob pressão dava uma constituição ao país, e seguiria um caminho inteiramente próprio (2001, pp. 292-293).
Contudo, no que tange à liberdade de culto, foi a constituição que mais abordou o tema. Nesse diapasão, determinou:
"Art. 17: É vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
II - Estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - Ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo;
[...]
Art. 113: A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas;
[...]
4) Por motivo de convicções filosóficas, políticas ou religiosas, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art. 111, letra b.
5) É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costumes. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil.
6) Sempre que solicitada, será permitida a assistência religiosa nas expedições militares, nos hospitais, nas penitenciárias e em outros estabelecimentos oficiais, sem ônus para os cofres públicos, nem constrangimento ou coação dos assistidos. Nas expedições militares a assistência religiosa só poderá ser exercida por sacerdotes brasileiros natos.
7) Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, sendo livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes. As associações religiosas poderão manter cemitérios particulares, sujeitos, porém, à fiscalização das autoridades competentes. É lhes proibida a recusa de sepultura onde não houver cemitério secular."
Contrariando a postura populista assumida em 1934, Getúlio Vargas instaura a "ditadura Getulista" em 1937, impondo à nação uma Constituição que garantiria o perfil totalitário assumido pelo então presidente. Esta lei ficou conhecida como sendo aquela que instituiu o voto indireto para presidente, retirando do povo o direito e a liberdade de exercer sua cidadania (SALDANHA, 2001, pp. 293-294).
No entanto, no que se refere à liberdade religiosa, preservou o conteúdo assegurado no art. 17 da CF/34 (Art. 32, da CF de 193717), bem como manteve o caput do art. 113 da CF/3418 (Art. 122 da CF/37), mas modificou os seus incisos, certificando apenas que:
[...] todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes.
Passada a fase ditatorial de Getúlio, em 18 de setembro de 1946, (SALDANHA, 2001,p. 313) uma nova constituição foi instaurada, revestida agora de caráter democrático, onde os direitos individuais foram novamente concedidos, sendo aprovada após votação de uma Constituinte.
Geralmente se fala da “redemocratização de 1945” (o Brasil é, parece, um país aficcionado às redemocratizações), mas ela não foi um fenômeno ocorrido como um salto nesse ano: foi um processo gradual de retomada de exigências, radicando dentro ainda da fase ditatorial. Retomada de exigências que o palavrório do getulismo tinha embotado, ou que a repressão policial tinha asfixiado, mas que agora rebentavam, pelas frinchas do debate sobre a situação internacional; e que eram como uma outra busca do tempo perdido, pelo domínio da discrição pessoal e da propaganda opressiva (SALDANHA, 2001, P. 310).
Corroborando com as Constituições antecessoras, manteve a ideia de que é proibido aos Estados, Municípios, Distrito Federal e a União inviabilizar a liberdade de culto (art. 31, II e III, da CF/46)19, bem como preservou o conteúdo do art. 113, parágrafo 5º da CF/37 (atual art. 141, parágrafo 7º, da CF/46).20
Em 1967, após o golpe político deflagrado em agosto de 1964, os militares impuseram uma constituição que reinstalou o regime totalitarista no Brasil, só que desta vez, muito mais severo que o aplicado por Getúlio em 1934. Ao longo deste regime, que permaneceu vigente de 1964 a 1985, foram decretados diversos Atos Institucionais, com o objetivo de consolidar o governo militar, limitando ao máximo a liberdade popular21. No entanto, preservou em seu conteúdo o direito a liberdade religiosa, estabelecendo em seu art. 150:
A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 5º - É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.
§ 6º - Por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal imposta a todos, caso em que a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência.
§ 7º - Sem constrangimento dos favorecidos, será prestada por brasileiros, nos termos da lei, assistência religiosa às forças armadas e auxiliares e, quando solicitada pelos interessados ou seus representantes legais, também nos estabelecimentos de internação coletiva.
Realizou ainda, a inovação de estabelecer que o Estado, em seu sentido mais amplo, estaria impossibilitado de criar impostos sobre os templos de qualquer culto (Art. 20)22.
Assim, com o fim do regime militar, foi edificada a Constituição Federal de 1988 – permanecendo em vigor até presente data. Esta legislação é conhecida como a Constituição Federal Cidadã, pelo fato de ter ampliado as liberdades civis e por ter estabelecido que as garantias individuais são cláusulas pétreas, constituindo um direito personalíssimo. Tal característica pode ser ratificada com a breve leitura do preâmbulo da referida Constituição, que assim define:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.
Ainda nesse contexto alega Fernando Perlatto que:
A Constituição de 1988 prevê a realização de plebiscitos e referendos, confirmando o princípio basilar da democracia exposto no seu artigo 1º, segundo o qual, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição” (2009, pp. 11-12).
A liberdade religiosa, por sua vez, aparece em seu art. 5º, VI, como um direito fundamental. Traz ainda em seu bojo, o preceito de que os templos de qualquer culto são envolvidos de imunidade fiscal (Art. 150, VI, b, CF/88).23
Diante o exposto, entende-se que o Estado laico é revestido de imparcialidade no que tange a definição de uma religião oficial. No Brasil, o Estado coloca-se como defensor da liberdade religiosa, estabelecendo-a como um direito fundamental. Nessa esteira, é que Paula Carmo Name em seu artigo "Dos princípios que fundamentam a relação Estado e Religião”, aduz:
A liberdade religiosa, consagrada constitucionalmente, não traduz em momento algum a liberdade eclesiástica, pois esta utiliza como fundamento a coação do indivíduo, com base na detenção da verdade absoluta, tirando-lhe a liberdade espiritual e renegando aqueles que se negam a aceitá-la; impedindo-os de se manifestar contrariamente, busca a submissão dos indivíduos aos seus conceitos, sem permitir-lhes o livre pensamento em relação à sua fé. É justamente o oposto da liberdade religiosa apresentada pelas democracias constitucionais. A igualdade, portanto, vai além do sentimento de justiça entre os indivíduos - ela também abrange a liberdade recíproca (2008, p.74).
Destarte, foi através das normas jurídicas que se determinou a boa convivência entre as religiões e o Estado.