A judicialização como forma de garantir efetividade ao direito à saúde

Leia nesta página:

O texto aborda a problemática da busca pela efetividade do Direito Social à Saúde pelo Judiciário, verificando a possibilidade do ajuizamento de ações pela via individual e coletiva.

Embora o direito à saúde esteja inserido em nossa Constituição dentre os Direitos Fundamentais sociais, contando com a regra da aplicabilidade imediata prevista no §1º, do art. 5º da CF, a grande quantidade de demandas judiciais no âmbito da saúde demonstra a existência de uma busca por sua efetivação. A escolha do tema deu-se pela relevância que os direitos fundamentais sociais têm em relação à realização da plena cidadania e na busca da justiça social e diminuição das desigualdades, também, pelas inúmeras ações judiciais em tramitação buscando a efetivação do direito à saúde.

O presente trabalho tem como objetivo geral analisar a questão da judicialização do direito à saúde, verificando se tal direito deve ser analisado apenas pela ótica do direito social, que tem por finalidade diminuir as desigualdades por meio de políticas públicas ou se ele também pode ser encarado de uma maneira mais individualista, se utilizando da sua ligação com o direito à vida e tendo sua efetividade pleiteada em ações judiciais individuais.

A metodologia adotada parte da pesquisa bibliográfica em conjunto com estudos descritivos e pesquisa documental, vez que, após uma análise doutrinária acerca da questão da judicialização do direito à saúde, serão demonstrados exemplos de ações civis públicas ajuizadas com intuito de obter políticas públicas de saúde diante das omissões estatais.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o direito à saúde pode ser conceituado da seguinte maneira:

A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doenças ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo os ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.

Percebe-se, desde logo, a amplitude do direito à saúde, que abarca, em seu conceito uma série de outros direitos. Dalmo de Abreu Dallari (2004, p.76) exemplifica alguns destes, também fundamentais, direitos, seriam eles: Direito de ser tratado com igualdade e respeito, meio ambiente saudável, condições confortáveis de moradia, básicos cuidados de higiene, boa alimentação, ambiente saudável de trabalho e estudo, entre outros. Na ótica do autor, se o Estado proporcionasse um mínimo de vida saudável, chegaríamos ao ideal de que “as pessoas não cheguem a ficar doentes ou tenham o mínimo de doenças”, o direito a receber assistência médica só seria exigido após a falha do Estado em satisfazer os direitos menores englobados pelo direito à saúde.

Devido a esta relação com tantos outros direitos, temos uma questão de ponderação extremamente complexa, onde está em jogo “o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros”, não havendo “solução juridicamente fácil ou moralmente simples nessa questão” (BARROSO, 2007, p. 91).

A condição de fundamental, concedeu, ao direito à saúde, o status de direito subjetivo, oponível contra o Estado. Sempre que a Constituição define um direito fundamental este se torna exigível, inclusive mediante ação judicial, “o Judiciário deverá intervir sempre que um direito fundamental ou não fundamental estiver sendo descumprido” (BARROSO, 2007, p. 96). Entretanto, José Gomes Canotilho (2001, p. 946), adverte que “os juízes não se podem transformar em conformadores sociais” e que deve-se atentar para o fato de que não se pode “obrigar juridicamente os órgãos políticos a cumprir determinado programa de ação”.

Quanto às possibilidades de ação do judiciário, Barroso (2007, p.104) faz a seguinte observação:

onde não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção.

O art. 196 da CF garantiu o “acesso universal e igualitário às ações e serviços” para a “promoção, proteção e recuperação” do direito à saúde, logo, trata-se de dever constitucional do Estado em promover, mediante políticas públicas, a efetivação do direito à saúde. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo (2011, p. 789), a universalidade deste direito não impede diferenciações na aplicação prática, principalmente pelo emprego dos princípios da igualdade material, proporcionalidade e equidade, que justificam discriminações positivas em busca de justiça social, afinal, por ser um direito social, o direito à saúde deve seguir o seu objetivo principal, que é o de reduzir as desigualdades fáticas.

Sem dúvidas o Poder Judiciário pode e deve intervir em casos que digam respeito aos direitos sociais, entretanto, Barroso (2007, p. 106) nos mostra que dentre as várias objeções à judicialização, a principal delas é a questão financeira, denominada de reserva do possível, vez que “os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais” e “investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros”.

Por serem direitos subjetivos de prestações relativas a bens materiais, a efetividade dos direitos sociais sempre esbarra na questão da escassez de recursos. Nesse sentido, Sarlet (2008, p. 186) entende que “o ‘fator custo’ de todos os direitos fundamentais, nunca constituiu um elemento, por si só e de modo eficiente, impeditivo da efetivação pela via jurisdicional”. O autor (p. 193), ainda, alega que a reserva do possível tem sido usada pelo Estado como “argumento impeditivo da intervenção judicial” e como uma desculpa para a omissão estatal.

Inicialmente, a doutrina majoritária entendia como acertada a busca pela efetividade do direito à saúde via ações individuais, entretanto, nos últimos anos, vários autores vêm sustentando que o ideal seria a judicialização por meio de ações coletivas, visando a obtenção de políticas públicas em vez de processos individuais. A ação para o fornecimento de medicamentos seria uma ação extremamente individualista, pois os recursos que seriam direcionados à políticas sociais, avaliando custos e benefícios e visando diminuir as desigualdades, acabam privilegiando apenas os que possuem acesso qualificado à justiça, que conhecem seus direitos e podem arcar com o custo de um processo judicial (BARROSO, 2007, p.107).

Sarlet; Figueiredo (2011, p. 807-8), explicam que jamais pode se excluir a possibilidade da tutela individual, que é “inerente e inafastável” do direito à saúde,   já que, diretamente ligado ao direito individual à vida, à integridade física e a dignidade humana. Os autores (p. 829), ainda, criticam a ausência de preocupação nas decisões judiciais sobre as suas consequências, sugerindo a criação de varas judiciais especializadas, para uma decisão mais consciente e responsável, isonômica e racional, evitando a litigância individual descontrolada. Na tentativa de aproximar o judiciário dos casos concretos, o Supremo Tribunal Federal, nos meses de abril e maio de 2009, realizou audiência pública, onde foram ouvidos 50 especialistas em diversas áreas do direito, da saúde e da sociedade.

Por ser um direito social, o principal objetivo do direito à saúde é o de promover a justiça social e a diminuição das desigualdades, logo, a forma mais adequada de pleitear sua efetividade seria por meio de ações coletivas, como a Ação Civil Pública, que seria uma boa opção para combater o atual problema a judicialização individual excessiva no campo do direito à saúde.

O uso do instrumento da Ação Civil Pública para discutir políticas públicas esbarra na alegação de violação do Princípio da separação de poderes, todavia, o alcance das normas sobre direitos fundamentais sociais admitem a intervenção do Poder Judiciário em casos de omissões dos demais Poderes, nas palavras de Barroso (2007, p. 110) “embora não caiba ao Judiciário refazer as escolhas dos demais Poderes, cabe-lhes por certo coibir abusos”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A fim de demonstrar as possibilidades de obter políticas públicas asseguradoras de justiça social através de ações civis públicas, vejamos alguns exemplos destas ações, pleiteando a construção de hospitais: a)[1] Espírito Santo, município de Cachoeiro do Itapemirim; b)[2] Ceará, município de Juazeiro do Norte; e c)[3] Pará, município de Tucuruí. Analisando-se os exemplos percebe-se que o único que apresenta algum resultado é o caso do Município de Cachoeiro do Itapimirim, justamente, o único que realizou audiência pública, tentando aproximar o judiciário da realidade do problema da saúde e da escassez de recursos públicos, bem como buscou acordos com o Estado, e vêm inspecionando seu cumprimento, em vez de, simplesmente ordenar que o Estado cumpra uma decisão judicial.

Da análise do presente trabalho ficou claro que o Princípio da Reserva do Possível já não é mais argumento capaz de impedir a aferição do direito à saúde pela via judicial. Não restam dúvidas, que o ideal seria a judicialização por meio das ações coletivas, pois o excesso de demandas judiciais individuais pode levar ao ponto de realocar recursos que eram destinados à políticas públicas que beneficiariam uma coletividade, para satisfazer requerimentos individuais de pessoas, muitas vezes, não tão necessitadas. Ainda, verificou-se que a Ação Civil Pública pode ser utilizada como saída para o problema da judicialização individual excessiva, sem haver violação do Princípio de separação dos poderes.

Ademais, do exame dos exemplos de ações civis públicas, percebe-se que apenas judicializar, mesmo no âmbito coletivo, não garante a efetividade das políticas públicas.

Assim, conclui-se que o caráter universal do direito à saúde pode ser utilizado para legitimar a intervenção do Judiciário nos casos em que o Estado não conseguiu realmente efetivá-lo. Já o caráter igualitário, pode ser visto como argumento contrário à judicialização, pois uma ação individual, por exemplo, beneficia um cidadão específico, em desprezo da coletividade. O ideal, é sempre usar o bom senso e a ponderação de princípios e direitos para se obter o melhor resultado para o caso concreto, visando sempre a realização dos objetivos principais do direito fundamental à saúde, que é o de garantir aos cidadãos uma vida saudável, o acesso à saúde e o direito de litigar por seus direitos individuais, mas sem nunca deixar de levar em consideração a questão da justiça e da igualdade social.

Referências Bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicia. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 31. n. 66. Porto Alegre: PGE, p. 89-114, 2007.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2001.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. 2.ed. Reform. São Paulo: Moderna, 2004. Capítulo 13, “Direito à saúde”, p. 73-78.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Constituição da Organização Mundial de Saúde. Nova Iorque, 22 jul. 1946.

SARLET, Ingo Wolfgang. “Os direitos fundamentais sociais e os vinte anos da Constituição Federal de 1988: resistências e desafios à sua efetivação”. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. v. 6. Belo Horizonte: Fórum, p. 163-206, 2008.

______; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. “Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988”. In: Flávia Piovesan; Maria Garcia. (Org.). Doutrinas Essencias DIREITOS HUMANOS. 1. ed. v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 775-830, 2011.


[1]           Ação Civil Pública n.º 0000598-97.2014.4.02.5002, ajuizada, em 30/07/2014, pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo e pelo Ministério Público Federal, perante a 2ª Vara Federal da Subseção de Cachoeiro do Itapemirim, Seção Judiciária do Espírito Santo, TRF da 2ª Região, em face da União, do Estado do Espírito Santo e do Município de Cachoeiro do Itapemirim. Foi realizada audiência pública e posteriormente um acordo entre Município e União e a Justiça Federal vem monitorando o cumprimento do acordo.

[2]              Ação Civil Pública n.º 0001355-22.2014.4.05.8102, ajuizada em 10/07/2014, pelo Ministério Público Federal, perante a 16ª Vara Federal da subseção de Juazeiro do Norte, Seção Judiciária do Ceará, TRF da 5ª Região, em face da União, do Estado do Ceará e do Município de Juazeiro do Norte. Ainda pendente de sentença.

[3]           Ação Civil Pública n.º 0002498-32.2014.4.01.3907, ajuizada, em 03/06/2014, pelo Ministério Público do Estado do Pará e pelo Ministério Público Federal, perante a Vara Federal única da Subseção de Tucuruí, Seção Judiciária do Pará, TRF da 1ª Região, em face da União, do Estado do Pará e do Município de Cachoeiro do Itapemirim. Determinada a exclusão da União do polo passivo e   consequentemente reconhecida a incompetência absoluta da Justiça Federal.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Juliana Gonçalves de Oliveira

Advogada, Conciliadora Criminal, Mestranda em Direito e Justiça Social pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Pós Graduada em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderp, Bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha (URCAMP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos