Palavras-chave: Redução da maioridade penal. Inimputabilidade penal. Cláusula pétrea.
1. INTRODUÇÃO
Atualmente, é bem sabido que, de acordo com os mais variados meios de comunicação social, os menores de 18 anos - crianças e adolescentes - vêm cada vez mais praticando atos infracionais (condutas análogas aos crimes e às contravenções penais), desde os atos infracionais mais leves até aqueles mais graves possíveis, tais como roubo, sequestro, homicídio, tráfico de drogas, etc.
É fato que o Estado brasileiro não consegue controlar o alto índice da prática de infrações penais, melhor dizendo, atos infracionais praticados pelas crianças e pelos adolescentes, seja pelo fato de que o sistema penal brasileiro é falho, seja porque as medidas socioeducativas elencadas no Estatuto Menorista são incapazes de diminuir a criminalidade juvenil, não permitindo, em muitas vezes, o trato necessário que os adolescentes deveriam receber para se reeducar socialmente e não mais praticar condutas contrárias ao direito criminal.
Não é por acaso que o povo brasileiro vem reclamando por novas e melhores medidas governamentais e/ou legislativas, no sentido de que, no mínimo, seja reduzido o alto índice da criminalidade pratica pelos infanto-juvenis.
Considerando essa preocupação de nível social, o presente artigo tem como objeto analisar, sob o ponto de vista jurídico, a admissibilidade ou não da redução da maioridade penal no Brasil.
2. A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL
Com a atual vigência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, promulgada no dia 05 de outubro de 1988, considerada como a Carta Magna, por força do seu art. 228, e com base nas disposições do art. 27 do Código Penal e do art. 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a maioridade penal é, ao mesmo tempo, um direito e uma garantia individual, no sentido de que todas as pessoas menores de 18 (dezoito) anos - crianças e adolescentes - são consideradas juridicamente inimputáveis, ou seja, perante a lei penal, não serão submetidos ao mesmo rigor do que os maiores de 18 (dezoito) anos, pois que aqueles estarão sujeitos às medidas específicas previstas na Lei n.º 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
O ordenamento jurídico-penal brasileiro, então, ao determinar a maioridade penal somente para os maiores de 18 (dezoito) anos, acabou adotando o critério biológico de imputabilidade, quer dizer, não importa se o menor de idade possui ou não a capacidade de entender o caráter ilícito da infração penal ou de estar de acordo com esse entendimento, basta haver a menoridade na idade para ser considerado inimputável.
Contudo, essa questão sobre a inimputabilidade dos menores de 18 anos é, ainda, tema bastante controverso para os juristas e os operadores do direito, uma vez que não há consenso, pelo menos na doutrina penal, sobre a afirmação de que é necessária e, também, possível a redução da maioridade penal no Brasil, cuja questão, portanto, será, com toda a cautela possível, debatida no presente artigo.
2.1. Imputabilidade penal
2.1.1 Conceito
Ao conceituar a imputabilidade penal, Ponte ensina que:
A imputabilidade pode ser definida como a aptidão do indivíduo para praticar determinados atos com discernimento, que tem como equivalente a capacidade penal. Em suma, é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determina-se segundo este entendimento. (PONTE, 2001, p. 26)
Mirabete, por sua vez, define que:
Há imputabilidade quando o sujeito é capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e de agir de acordo com esse entendimento. Só é reprovável a conduta se o sujeito tem certo grau de capacidade psíquica que lhe permita compreender a antijuridicidade do fato e também a de adequar essa conduta a sua consciência. Quem não tem essa aptidão de entendimento e de determinação é inimputável, eliminando-se a culpabilidade. É essa via de regra, a noção de imputabilidade penal existente entre os autores da doutrina jurídica. No caso da legislação brasileira, é manifesto que não se levou em consideração "os desenvolvimentos mentais do menor, que não está sujeito à sanção penal ainda que plenamente capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. (MIRABETE, 2002, p. 210)
Fernando Capez bem explica que a imputabilidade:
É a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. O agente deve ter condições físicas, psicológicas, morais e mentais de saber que está realizando um ilícito penal. Mas não é só. Além dessa capacidade plena de entendimento, deve ter totais condições de controle sobre sua vontade. Em outras palavras, imputável é não apenas aquele que tem capacidade de intelecção sobre o significado de sua conduta, mas também de comando da própria vontade, de acordo com esse entendimento. (CAPEZ, 2014, p. 331)
Já o vigente Código Penal de 1940 não define expressamente o conceito de imputabilidade penal, mas vem a afirmar quando ocorre a inimputabilidade penal. É, pois, o que se verifica no disposto do artigo 26, in verbis:
É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Assim, conforme o entendimento doutrinário e tendo por base uma interpretação a contrario sensu do disposto no art. 26 do Código Penal Brasileiro, extrai-se a conclusão de que a imputabilidade significa a completa capacidade do agente de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
2.1.2 Critérios para a fixação da maioridade penal
De acordo com a doutrina, existem 3 (três) critérios que fixam a maioridade penal, quais sejam: 1- Critério biológico; 2- Critério Psicológico; 3- Critério Biopsicológico.
O Critério Biológico, como regra, não é previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Ele interessa saber se o agente é portador de alguma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, independentemente dessa anomalia ter retirado ou não a capacidade de entendimento e autodeterminação. Como exceção, o Critério Biológico é previsto na própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mais precisamente no seu artigo 228, onde vem a afirmar que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”, sem prejuízo de igual norma prevista no art. 27 do Código Penal, também estatuindo que “os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”, e, inclusive, no art. 104 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispondo que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei”.
Conforme pode ser observado, por meio deste critério, a inimputabilidade penal é verificada por motivos puramente biológicos, revestindo-se, portanto, de uma presunção absoluta de inimputabilidade, por força de lei.
Quanto à inimputabilidade dos menores de 18 anos, Franco bem afirma que:
Muito embora o menor possa ter capacidade plena para entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se segundo esse entendimento, o déficit de idade torna-o inimputável, presumindo-se, de modo absoluto, que não possui o desenvolvimento mental indispensável para suportar a pena. (FRANCO, 1995, p. 323)
Diferentemente do Critério Biológico que analisa eventual doença ou perturbação mental do agente (incluindo o aspecto da idade), o Critério Psicológico apenas se preocupa da existência de doença ou perturbação mental do agente se, no momento da ação ou omissão delituosa, ele tinha ou não condições de avaliar o caráter criminoso do fato e de orientar-se de acordo com esse entendimento. Vale ressaltar que este critério não foi adotado no vigente Código Penal Brasileiro.
O Critério Biopsicológico, por sua vez, é a reunião dos dois critérios anteriores, exigindo que a causa geradora esteja prevista em lei e que, além disso, atue efetivamente no momento da ação delituosa, retirando do agente a capacidade de entendimento e vontade. Este critério é contemplado, em regra, no art. 26 do Código Penal:
É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
2.2 Posicionamentos favoráveis e desfavoráveis à redução da maioridade penal
Na doutrina, persiste uma questão bastante controversa, ou seja, se a redução da maioridade penal pode ser aplicável ou não ao ordenamento jurídico-penal pátrio.
Há doutrinadores que afirmam que é possível a redução da maioridade penal, como Barbosa, Miguel Reale, Rogério Greco, Pedro Lenza, e Guilherme de Souza Nucci.
Nesse entendimento, Barbosa aduz que:
O melhor critério é o biopsicológico, considerando-se que a idade de dezesseis anos é a idade de aquisição facultativa dos direitos políticos, (...) se a mulher casada se emancipa civilmente com o casamento aos dezesseis anos e se projeto de lei visa a que o maior de dezesseis anos possa dirigir veículos, não se compreende que não possa responder pelos atos ilícitos que porventura praticar. (BARBOSA, 1992, p. 16).
Miguel Reale argumenta que:
Tendo o agente ciência de sua impunidade está dando justo motivo à imperiosa mudança na idade limite da imputabilidade penal, que deve efetivamente começar aos dezesseis anos, inclusive, devido à precocidade da consciência delitual resultante dos acelerados processos de comunicação que caracterizam nosso tempo. (2007, online).
Militando em favor da redução maioridade penal, Greco afirma que:
Apesar da inserção no texto de nossa Constituição Federal referente à maioridade penal, tal fato não impede, caso haja vontade para tanto, de ser levada a efeito tal redução, uma vez que o mencionado art. 228 não se encontra entre aqueles considerados irreformáveis, pois que não se amolda ao rol das cláusulas pétreas elencadas nos incisos I a IV, do § 4, do art. 60 da Carta Maga. A única implicação prática da previsão da inimputabilidade penal no texto da Constituição Federal, é que, agora, somente por meio de um procedimento qualificado de emenda a menoridade. (GRECO, 2008, p. 400)
No mesmo sentido favorável à redução da idade penal, Lenza conclui que:
A sociedade evoluiu, e, atualmente, uma pessoa com 16 anos de idade tem total consciência de seus atos, tanto é que exerce os direitos de cidadania, podendo propor a ação popular e votar. Portanto, em nosso entender, eventual PEC que reduza a maioridade penal de 18 para 16 anos é totalmente constitucional. O limite de 16 anos já está sendo utilizado e é o fundamento no parâmetro do exercício do direito de votar e à luz da razoabilidade e maturidade do ser humano. (LENZA, 2008, p. 763)
Corroborando, ainda, a possibilidade de adoção da redução da maioridade penal, Nucci argumenta, no sentido de que:
A única via para contornar essa situação, permitindo que a maioridade penal seja reduzida, seria através de emenda constitucional, algo perfeitamente possível, tendo em vista que, por clara opção do constituinte, a responsabilidade penal foi inserida no capítulo da família, da criança, do adolescente e do idoso, e não no contexto dos direitos e garantias individuais (Capítulo I, art. 5º, CF). Não podemos concordar com a tese de que há direitos e garantias fundamentais do homem soltos em outros trechos da Carta, por isso também cláusulas pétreas, inseridas na impossibilidade de emenda prevista no art. 60, §4º, IV, CF, pois sabe-se que há “direitos e garantias de conteúdo material” e “direitos e garantias de conteúdo formal”. O simples fato de ser introduzida no texto da Constituição Federal como direito e garantia fundamental é suficiente para transformá-la, formalmente, como tal, embora possa não ser assim considerada materialmente. (...) Por isso, a maioridade penal, além de não ser direito fundamental em sentido material (não há notícia de reconhecimento global nesse prisma), também não o é no sentido formal. Assim, não há qualquer impedimento para a emenda constitucional suprimindo ou modificando o art. 228 da Constituição. Não se pretende, com tal modificação, combater a criminalidade, como muitos pensam. De fato, não é a redução da maioridade penal que poderá solucionar o problema do incremento da prática delitiva no País, embora seja recomendável que isso seja feito para adaptar a lei penal à realidade. O menor de 18 anos já não é o mesmo do início do século, não merecendo continuar sendo tratado como uma pessoa que não tem noção do caráter ilícito do que faz ou deixa de fazer, sem poder conduzir-se de acordo com esse entendimento. (NUCCI, 2000, p. 109-110)
Lado outro, adotando-se a posição contrária à redução da idade da maioridade penal prevista na Lei Maior, há os ilustres doutrinadores Alexandre de Moraes, Dotti, Delmanto e Daniel Maia.
O Professor Alexandre de Moraes, em sua obra de Direito Constitucional, ensina:
Assim, o artigo 228 da Constituição Federal encerraria a hipótese de garantia individual prevista fora do rol exemplificativo do art.5º, cuja possibilidade já foi declarada pelo STF em relação ao artigo 150, III, b (Adin 939-7 DF) e consequentemente, autentica clausula pétrea prevista no artigo 60, § 4.º, IV.” (...) “Essa verdadeira cláusula de irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em Juízo. (MORAES, 2005, p. 2176)
De acordo com o mesmo entendimento, é a opinião de Dotti:
A inimputabilidade assim declarada constitui umas das garantias fundamentais da pessoa humana embora topograficamente não esteja incluída no respectivo Título (II) da Constituição que regula a matéria. Trata-se de um dos direitos individuais inerentes à relação do art. 5.º, caracterizando, assim uma cláusula pétrea. Consequentemente, a garantia não pode ser objeto de emenda constitucional, visando à sua abolição para reduzir a capacidade penal em limite inferior de idade – dezesseis anos, por exemplo, como se tem cogitado. (DOTTI, 2005, p. 412)
No mesmo sentido contra a alteração do art. 228 da Carta Magna, Delmanto opina que:
[...] a nosso ver, seria um grave equívoco de nosso legislador. Não obstante a maioridade penal não esteja incluída em uma das chamadas cláusulas pétreas do art. 5.º da Magna Carta, mas sim em seu art. 228, o marco dos 18 anos deve ser prestigiado, sobretudo em um País como o nosso em que o abismo social é um dos maiores do mundo, sendo os nossos infantes explorados mediante toda sorte de agruras, como pedir esmolas em faróis até altas horas da noite, vivendo em favelas sem um mínimo de dignidade e, sobretudo, sem qualquer perspectiva de ascensão social. (DELMANTO, 2007, p. 107)
Corroborando com o tema, Daniel Maia escreve que:
Tem-se em vista, aqui, o regime especial aplicável aos direitos e garantias individuais, em face do que dispõe o art. 60, § 4º, IV, da Carta Magna, que estabelece a impossibilidade de proposta de emenda tendente a abolir ou restringir direitos e garantias previstos no texto constitucional. Dessa forma, sendo o artigo 228 da Carta Maior brasileira uma cláusula pétrea, resta impossível que referido artigo seja alterado, até mesmo por emenda constitucional, pois não cabe, no atual regime constitucional em que o Brasil está inserido, a alteração constitucional de cláusulas que tenham sido criadas pelo Poder Constituinte Originário para serem imutáveis. (2014, online)
Assim, pode-se observar que existem dois posicionamentos doutrinários distintos:
Aqueles que defendem a redução da maioridade penal aduzem que o melhor critério de fixação para a imputabilidade é o Critério Biopsicológico, não tendo qualquer razão para manter o Critério Biológico, pois este é uma presunção absoluta de inimputabilidade e não se importa se o agente possui ou não a capacidade de entender o caráter ilícito do fato. Além do mais, há uma parcela da doutrina que sustenta ser constitucional a redução da maioridade penal, já que o art. 228 da Constituição Federal de 1988 não está elencado no rol dos direitos e garantias individuais, não estando, portanto, sob a tutela das cláusulas pétreas previstas no art. 60, § 4º, da CF/88.
Em sentido contrário, porém, há aqueles que defendem a vedação da redução da maioridade penal no Brasil. É que, para estes doutrinadores, a inimputabilidade prevista no art. 228 da CF/1988, apesar de não estar inserida no capítulo II (direitos e deveres individuais e coletivos), é, sim, cláusula pétrea, pois, além de ser um direito, é uma garantia individual às crianças e aos adolescentes, estando protegida contra qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tende a sua abolição, nos termos do que preconiza o art. 60, § 4º, IV, da CF/1988, sem prejuízo de que o rol dos direitos e garantias individuais não deve ser interpretado literalmente, mas, sim, extensivamente, sob a ótica da própria Constituição.
2.3 A opinião da sociedade brasileira
Nos últimos tempos, realmente, a criminalidade decorrente dos sujeitos menores de 18 (dezoito) anos só vem aumentando e, pior, as infrações penais de maior gravidade, como homicídio, tráfico de drogas, roubo e outros delitos similares, só vêm crescendo e gerando, de certa forma, uma impunidade aos adolescentes infratores da lei penal e, consequentemente, isso vem sendo objeto de reclamação por grande parcela da sociedade brasileira, que postula pela redução da maioridade penal no país pátrio, cuja manifestação vem sendo, constantemente, realizada nos mais variados meios de comunicação social.
Pesquisa realizada em 2012 pelo Data Senado revelou que 90% dos brasileiros afirmam que a maioridade penal no Brasil deve ser reduzida.
Segundo a pesquisa elaborada pela Confederação Nacional dos Transportes, em conjunto com o instituto MDA, divulgada em 11/06/2013, revela que 92,7% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal, atualmente de 18 anos, para 16. Outros 6,3% são contra e 0,9% não opinaram.
De acordo com a pesquisa realizada no dia 21/06/2013, entre o instituto Vox Populi e a revista Carta Capital,
89% dos brasileiros acreditam que o Brasil deve obrigar os jovens infratores a responder criminalmente a partir dos 16 anos de idade.
Em 22/05/2015, também foi noticiado que a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, é apoiada por 87% dos entrevistados, conforme pesquisa elaborada pelo Datafolha.
Nessa perspectiva, já se percebe, então, a estimativa de que 90% (noventa por cento) dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal, não deixando qualquer dúvida a esse respeito.
2.4 Cláusula pétrea e o controle de constitucionalidade
O principal argumento da doutrina no sentido de que a redução da maioridade penal é inconstitucional, caso seja implementada no Brasil, é o fato de que tal medida vai de encontro às limitações das cláusulas pétreas previstas na Constituição Federal de 1988.
Como ensina Lammêgo Bulos, as cláusulas pétreas:
São cláusulas que possuem uma super eficácia, ou seja, uma eficácia absoluta, pois contêm uma força paralisante total de toda legislação que vier a contrariá-la, quer implícita, quer explicitamente. Daí serem insusceptíveis de reforma. (BULOS, 1999, p. 42-44)
Em outras palavras, as cláusulas pétreas são entendidas como limitações materiais ao Poder Constituinte Reformador, não se admitindo a sua abolição nem mesmo por Emenda Constitucional, entendendo-se aquelas previstas no art. 60, § 4º, da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Não se pode, porém, achar que tais matérias inclusas no § 4º do art. 60 estão imunes de qualquer alteração legislativa. Na verdade, essas matérias até podem ser objetos de Emenda, desde que seja para aumentar a sua extensão enquanto direito e/ou garantia; o que não pode ocorrer de modo algum é suprimir ou reduzir alguma dessas limitações materiais, já que estas constituem o núcleo essencial da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o Congresso Nacional está sujeito, inclusive, às limitações impostas pelas cláusulas pétreas:
O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrição de ordem circunstancial, inibitória do poder reformador (CF, art. 60, § 1 2), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais, definidas no § 42 do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma, conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta da constitucionalidade. (STF, 1991)
Então, se a própria Carta Magna já impõe a observância obrigatória das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º), não há qualquer razão que legitime qualquer Proposta de Emenda à Constituição que tende a abolir determinadas matérias que são consideradas como o cerne intangível do Poder Constitucional.
2.5 Da aplicabilidade ou não da redução da maioridade penal no Brasil
Conforme já ressaltado alhures, não é novidade que o tema “redução da maioridade penal” é controverso na doutrina, até porque, atualmente, tal assunto ainda não foi sequer definido na jurisprudência brasileira.
Também, é de se registrar que a sociedade brasileira vem cada vez mais pleiteando por novas medidas governamentais e/ou legislativas que façam aumentar o rigorismo no tratamento penal dos menores infratores da lei penal. De fato, as últimas pesquisas divulgadas no Brasil indicam, aproximadamente, de que 90% (noventa por cento) dos brasileiros estão de acordo com que seja realizada a redução da imputabilidade penal.
Não é tão simples a implementação da redução da maioridade penal no Brasil, aliás, tudo indica, na verdade, que isso nem será mesmo possível. Porém, ao que tudo evidencia, parece mais prudente e razoável acreditar que a garantia da imputabilidade penal, basicamente, prevista no artigo 228 da Lex Major, é, de fato, uma cláusula pétrea que se encontra prevista no art. 60, § 4º, IV, da CF/88, onde se afirma que os direitos e as garantias individuais também se encontram protegidos contra qualquer espécie de abolição, via emenda constitucional.
É que esses direitos e garantias individuais não podem ser interpretados restritivamente, pelo contrário, deve-se realizar uma interpretação teleológica e sistemática ao longo de todo o texto constitucional. Prova disso, são os seguintes excertos jurisprudenciais do Egrégio STF, o guardião da Lei Maior:
O poder constituinte derivado não é ilimitado, visto que se submete ao processo consignado no art. 60, § 2º e § 3º, da CF, bem assim aos limites materiais, circunstanciais e temporais dos parágrafos 1º, 4º e 5º do aludido artigo. A anterioridade da norma tributária, quando essa é gravosa, representa uma das garantias fundamentais do contribuinte, traduzindo uma limitação ao poder impositivo do Estado. (STF, 2011)
Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) (arts. 84 e 85, acrescentados ao ADCT pelo art. 3º da EC 37, de 12-6-2002). Ausência de inconstitucionalidade material. O § 4º, IV, do art. 60 da Constituição veda a deliberação quanto à proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Proibida, assim, estaria a deliberação de emenda que se destinasse a suprimir do texto constitucional o § 6º do art. 195, ou que excluísse a aplicação desse preceito a uma hipótese em que, pela vontade do constituinte originário, devesse ele ser aplicado. (STF, 2002)
Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo STF, cuja função precípua é de guarda da Constituição. A EC 3, de 17-3-1993, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o Imposto Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (IPMF), incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica o art. 150, III, b, e VI, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º, art. 60, § 4º, inciso IV, e art. 150, III, b, da Constituição). (STF, 1993)
Proposta de emenda à CF – Instituição da pena de morte mediante prévia consulta plebiscitária – Limitação material explícita do poder reformador do Congresso Nacional. Inexistência de controle preventivo abstrato (em tese) no direito brasileiro. (STF, 1991)
Como pode ser verificado, o rol dos direitos e garantias individuais não se limitam apenas àqueles previstos no artigo 5º da Magna Carta, que, aliás, como já ressaltado, trata-se de um rol meramente exemplificativo (numerus apertus), pois é sabido que existem outros esparsos no texto constitucional, sem prejuízo das normas definidoras de direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, até porque a própria Constituinte de 1988 já proclama, no seu art. 5º, §§ 2º e 3º, que:
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Ademais, apesar de o STF ainda não ter manifestado jurisprudencialmente acerca da questão da redução da maioridade penal, fato é que vários de seus julgados já reconheceram a existência de direitos e garantias individuais amparados como cláusulas pétreas, mesmo não estando expressamente arrolados como tais pela Lei Maior, a exemplo dos julgados já mencionados.
Um aspecto muito importante é, até mesmo, a possibilidade dos direitos sociais serem enquadrados como direitos e garantias individuais, para os fins do art. 60, §4º, IV, da CF/88.
A esse respeito, vale destacar o argumento constante do ementário nº 1730-10/STF, elucidativo do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello:
Tivemos, Senhor Presidente, o estabelecimento de direitos e garantias de uma forma geral. Refiro-me àqueles previstos no rol, que não é exaustivo, do art. 5º da Carta, os que estão contidos, sob a nomenclatura de direitos sociais, no art. 7º e, também, em outros dispositivos da Lei Básica Federal, isto sem considerar a regra do §2º, do art. 5º, segundo o qual ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados [...] (STF, 1993)
Importante, também, é mencionar o posicionamento de Ives Gandra Martins:
Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são eles apenas os que estão no art. 5o, mas, como determina o parágrafo 2o do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensão não se encontra em Textos Constitucionais anteriores. (MARTINS, 1995, p. 371).
Por todo o exposto, tudo leva a crer que a inimputabilidade penal conferida às crianças e aos adolescentes pelo art. 228 da Constituição Federal de 1998 é, mesmo, uma cláusula pétrea, uma verdadeira limitação material ao Poder de Reforma da Constituição, motivo pelo qual, nesse sentido, é inviável qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC) tendente a abolir, ainda que para reduzir a idade da maioridade penal (que é uma garantia constitucional de natureza individual), sob pena de violar um dos cernes intangíveis da Constituição, e, assim, caracterizar uma flagrante inconstitucionalidade material.
3. CONCLUSÃO
Quanto à responsabilidade jurídico-penal das crianças e dos adolescentes, restou observado que estes não podem e nem devem receber o mesmo tratamento jurídico das pessoas maiores de 18 (dezoito) anos, pois a própria Constituição Federal, a Lei Maior do país, por meio do seu art. 228, já decretou que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”, o que foi confirmado, inclusive, pela legislação infraconstitucional (art. 27 do CP e art. 104 do ECA). Assim, no que se refere à inimputabilidade penal das crianças e dos adolescentes, a ordem jurídica brasileira adotou o Critério Biológico, significando, portanto, uma presunção legal de inimputabilidade, pouco importando se o menor infrator tem ou não a capacidade de entender o caráter ilícito do ato infracional. Dessa forma, trata-se de uma inimputabilidade ex vi legis, e ressaltando-se que ela decorre principalmente de uma garantia constitucional.
Aliados à maioria da população, há doutrinadores, como Barbosa, Miguel Reale, Rogério Greco, Pedro Lenza, e Guilherme de Souza Nucci, alegando que o melhor critério de fixação para a imputabilidade é o Critério Biopsicológico, não tendo qualquer razão para manter o Critério Biológico, pois este é uma presunção absoluta de inimputabilidade e não se importa se o agente possui ou não a capacidade de entender o caráter ilícito do fato, além do fato de que a inimputabilidade penal prevista no art.. 228 da CF/88 não se enquadra como cláusula pétrea.
Lado outro, há uma parcela da doutrina, como Alexandre de Moraes, Dotti, Delmanto e Daniel Maia, que sustentam a inadmissibilidade jurídica da redução da maioridade penal no Brasil, argumentando, com base em interpretação extensiva e teleológica, que a inimputabilidade prevista no art. 228 da CF/1988, apesar de não estar inserida no capítulo II (direitos e deveres individuais e coletivos), é, sim, cláusula pétrea, pois, além de ser um direito, é uma garantia individual às crianças e aos adolescentes, estando protegida contra qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que tende a sua abolição, nos termos do que preconiza o art. 60, § 4º, IV, da CF/1988, sem prejuízo de que o rol dos direitos e garantias individuais não deve ser interpretado literalmente, mas, sim, sob à ótica da própria Constituição.
Não obstante a divergência de entendimento doutrinário sobre a possibilidade de redução da maioridade penal do Brasil e a ausência, por ora, do posicionamento oficial do STF sobre o tema em questão, ao que tudo evidencia, parece mais prudente e razoável acreditar que, de fato e de direito, a inimputabilidade penal prevista no art. 228 da Carta Magna é uma cláusula pétrea, sendo, então, considerada uma matéria constitucional imune de qualquer abolição, com fundamento no art. 60, §4º, da CF/88. Acontece que não é por uma simples interpretação literal que se concluirá de que esta matéria é uma cláusula pétrea; na verdade, o aplicador do direito deverá se basear em uma interpretação extensiva e teleológica para conseguir descobrir que se trata de uma cláusula pétrea. Aliás, o próprio STF já interpretou dessa forma em vários julgados, como, por exemplo, no RE 587.008, ADI 2.666, ADI 939, e ADI 466.
Nesse diapasão, pode-se concluir, então, que, o rol dos direitos e garantias individuais previstos no âmbito constitucional não é taxativo (numerus clausus), mas, sim, meramente exemplificativo (numerus apertus), estando previstos ao longo de todo o texto constitucional, sem prejuízo das normas definidoras de direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Logo, se o rol dos direitos e garantias individuais não é um rol taxativo e sabendo-se que a inimputabilidade penal prevista no art. 228 da Lex Major é uma verdadeira garantia individual às crianças e aos adolescentes, o mais coerente é, mesmo, acreditar que esta inimputabilidade penal é uma cláusula pétrea. Consequentemente, acredita-se que será inviável qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC) tendente a abolir, ainda que para reduzir a idade da maioridade penal (que é uma garantia constitucional de natureza individual), sob pena de violar um dos cernes intangíveis da Constituição, e, assim, caracterizar uma flagrante inconstitucionalidade de natureza substancial.
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