O vício de inconstitucionalidade por quebra de decoro parlamentar e sua configuração na aprovação da Emenda Constitucional nº 41/2003

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3. DEVER DE DECORO PARLAMENTAR E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DECORRENTE DE SUA AUSÊNCIA

O processo legislativo para a elaboração e formação das espécies normativas, dentre as quais merecem destaque as Emendas à Constituição, devem passar por um trâmite específico com as seguintes etapas: iniciativa, votação, promulgação e publicação.

Dentre elas, cumpre-nos destacar, face sua relevância para o desenvolvimento do tema do presente trabalho, a fase de votação, na qual, constatadas irregularidades em seu processo, maculam a lei aprovada por vício de inconstitucionalidade.

Em específico, neste trabalho, examinar-se-á a possibilidade de inconstitucionalidade por vício decorrente da quebra de decoro parlamentar.

Sobre o tema, Pedro Lenza (2013, p. 273) defende que a irregularidade na fase de votação implica em malferimento da prerrogativa parlamentar mais relevante, o voto, podendo, portanto, macular todo o processo legislativo de formação das Emendas.

Destarte, a quebra de decoro parlamentar ocasiona vício de inconstitucionalidade, ao se infringir os deveres parlamentares previstos no Art. 55, § 1ºº da CRFB/88 e diversos princípios constitucionais, como os da moralidade e da representação popular. Nesse sentido, assevera o autor:

Como se sabe e se publicou em jornais, revistas etc., muito se falou em esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para votar de acordo com o governo ou em certo sentido.

As CPIs vêm investigando e a Justiça apurando, e, uma vez provados os fatos, os culpados deverão sofrer as sanções de ordem criminal, administrativa, civil etc.

O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § Io, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

Dito isso, cabe lembrar que, no julgamento da AP 470 (conhecida como “mensalão”), ficou demonstrado o esquema de corrupção para compra de apoio político (matéria pendente). (LENZA, 2013, p.273) (grifo original)

Assim sendo, destaca-se a importância da compreensão do conceito de decoro parlamentar, para que, em seguida, seja possível verificar a ocorrência de sua violação, o que ensejaria, segundo Lenza, a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, notadamente as Emendas Constitucionais.

3.1. Conceito de decoro parlamentar

O  decoro parlamentar traz a ideia de dignidade, decência, honestidade dos deputados e senadores no exercício parlamentar.

José Anacleto Abduch Santos (2008, p. 751), sobre o conceito de decoro parlamentar, assim leciona:

[...] o decoro parlamentar é o “conjunto de princípios éticos e normas de conduta que devem orientar o comportamento do parlamentar no exercício de seu mandato”. Logo, decoro parlamentar, como conduta exigível do parlamentar, é espécie do gênero decoro (conduta exigível de todas as pessoas que pretendem bem viver em sociedade, exercendo seus direitos e respeitando os direitos alheios).

Dessa forma, cumpre asseverar que os parlamentares estão sujeitos a um código de ética e decoro parlamentar, que estabelece os princípios éticos e as regras básicas que devem orientar a conduta dos que estejam no cargo de senador ou de deputado.

Nossa atual Constituição, em seu Art. 55, § 1º, estabelece que “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

Ocorre que, muito embora as condutas que desvelam a quebra de decoro parlamentar estejam definidas na Constituição ou nos Regimentos Internos das Casas Legislativas, que por sinal não vão muito além da redação do dispositivo constitucional supratranscrito, seu conceito continua relativamente indeterminado.

Ao explicar o motivo para essa indeterminação, Carla Costa Teixeira (1996, p. 124) leciona que “o decoro parlamentar, como um código de honra, precisa se referir aos valores de uma época e de um grupo. Vem daí sua necessária imprecisão, sua natureza avessa à plena tradução em atos especificados juridicamente”.

Todavia, apesar de indeterminado, é possível se depreender, conforme as palavras do Procurador do Estado do Paraná, José Anacleto Abduch Santos (2008, p. 751), que “o parlamentar deve guardar conduta compatível com a dignidade da função pública e do mandato recebido - o que deve ser interpretado em conformidade com os princípios constitucionais a que estão sujeitos os agentes públicos”.

Do exposto, verifica-se que a conduta de todo parlamentar deve estar pautada em conformidade com um conjunto de princípios éticos e, sobretudo, constitucionais, de modo a permanecer dignificada a Instituição do Parlamento.

E uma dessas condutas claramente atentatórias ao dever de decoro parlamentar é a compra de votos de parlamentares, que deixam de prestar com dignidade sua função precípua para votar de acordo com interesses escusos, ferindo uma série de princípios constitucionais, conforme se verificará a seguir.

3.2. Princípios ofendidos pela quebra do decoro parlamentar

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Art. 1o, afirma nosso País como um Estado Democrático de Direito em que todo o poder é do povo, emana dele, e em seu nome é exercido, seja mediante sua participação direta ou por meio de representação política. In verbis:

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I  - a soberania;

II  - a cidadania;

III  - a dignidade da pessoa humana;

IV   - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V   - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (grifo nosso).

Resta claro, assim, que nossa Constituição adota um regime de governo que se funda no princípio democrático, mais precisamente em uma democracia representativa e participativa, ou seja, semidireta, em que se configura a predominância das formas clássicas da democracia representativa sobre os mecanismos da democracia direta, expressos no Art. 14, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. In verbis:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I  - plebiscito;

II  - referendo;

III  - iniciativa popular.

Sobre o tema, José Afonso da Silva (2010, p. 131) assevera:

A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceituai: (a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo', (b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular, nos casos em que a participação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação, (grifo do autor)

Todavia, resta lembrar que há inúmeras limitações impostas à participação popular, que acabam distanciando os cidadãos do processo legislativo, e toma os mecanismos de participação direta da população como, no mínimo, de difícil aplicação prática.

A maior prova disso é que, passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição cidadã, aconteceram apenas duas consultas populares: o plebiscito de setembro 1993 (art. 2o, ADCT-CF), pelo qual o eleitorado definiu a forma e o sistema de governo; e o referendo de outubro de 2005, que decidiu pela não-proibição da comercialização de armas e munições no País.

O sistema eleitoral vigente privilegia os atuais mandatários e acaba por servir meramente como instrumento de legitimação superficial dos governantes, que continuam a perseguir interesses julgados por eles importantes.

Destarte, poderiam ser levadas ao debate público as fases de elaboração e aprovação das leis, dando maior oportunidade de participação na produção de um consenso. Alavancava- se maior espaço para a cidadania, respeitando a vontade popular. Isso de maneira alguma afrontaria a democracia representativa, mas, na democracia semidireta, não se pode deixar a sociedade tão alheia às principais decisões, pois uma sociedade só se torna efetivamente democrática na medida em que o povo participe efetivamente das decisões políticas do Estado.

Note-se que, na representação política, deve haver delegação temporária por parte do povo de cota de seu poder soberano concretizada por mandato conferido aos seus representantes, os quais, eleitos pelo voto, detêm esse múnus público de legislar em nome do povo e segundo seus anseios.

Portanto, deve-se concretizar o princípio da soberania popular, pois o poder soberano do povo tem apenas o seu exercício transferido aos seus representantes, os quais, a seu turno, devem atender as necessidades da população.

A soberania popular é, portanto, corolário do exercício da democracia representativa, sem olvidar que a novel Constituição cuida também da democracia participativa pelos mecanismos acima explanados.

Os representantes do povo são escolhidos por meio de eleições periódicas, em que os vencedores são investidos em mandatos temporários para o exercício da função parlamentar.

E como já explanado, a conduta desses parlamentares deve estar norteada por princípios éticos e jurídicos, de tal forma que se respeitem e se cumpram os compromissos firmados quando de sua candidatura.

Todavia, no Brasil, tem-se verificado a crise desse modelo representativo, tendo em vista, principalmente, que seus postulados não vêm sendo obedecidos.

Hodiernamente, muitos parlamentares já não representam mais o povo, que, por sua vez, não participa ativamente do processo de tomadas de decisões políticas.

Deparamo-nos cada vez mais com tristes episódios que maculam a legitimidade da representação popular. Incidentes como o do “mensalão” acabam por desacreditar o sistema representativo.

Salvo raras exceções de parlamentares que prestigiam o sentido de democracia e que laboram com seriedade, vivemos atualmente sob uma ilusória representação popular.

Na lição de José Afonso da Silva (2010, p. 140), citando Luís Carlos Sáchica:

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A representação é montada sobre o mito da “identidade entre povo e representante popular” que tende “a fundar a crença de que, quando este decide é como se decidisse aquele, que o segundo resolve pelo primeiro, que sua decisão é a decisão do povo;...que, em tal suposição, o povo se autogoverna, sem que haja desdobramento, atividade, relação intersubjetiva entre dois entes distintos; o povo, destinatário das decisões, e o representante, autor, autoridade, que decide para o povo”.

É nessa crise de representação que se localiza a raiz de todos os problemas do sistema representativo. Ela constitui um dos mais sérios obstáculos à consolidação da democracia no Brasil.

O parlamentar, uma vez eleito, sujeita-se a diversos princípios constitucionais e, como todo agente público, tem o dever de decoro, in casu, de decoro parlamentar, que seria a conduta exigível dos representantes atuantes nas casas legislativas.

Ora, é clarividente que os deputados e senadores, ao malversarem suas prerrogativas e deveres parlamentares, estão violando diversos princípios constitucionais, sendo um deles princípio pilar de nosso Estado Democrático de Direito, qual seja, o princípio da representação popular. Ao procederem sem a necessária ética em seu labor, estão por desrespeitar o povo em sua representatividade. Digo isso porque a representação popular não consiste em atribuir um poder absoluto ao parlamentar, mas uma representação do povo, em que o representante deve expressar o que o representado quer, de forma democrática.

Note-se, ainda, que qualquer ato atentatório ao decoro parlamentar está por ofender o princípio da democracia, haja vista que, ao deixarem de exercer suas funções devidamente, ou seja, deixando de buscar a satisfação dos interesses de seus representados para procurar concretizar interesses escusos, estão esses parlamentares desrespeitando a própria democracia e, porque não dizer, o Estado Democrático de Direito como um todo.

Ademais, frise-se a ofensa a outros princípios constitucionais, quando há quebra do dever de decoro, tais como os princípios da moralidade e da probidade administrativas, também consagrados pelo Estado Democrático de Direito.

O princípio da moralidade, expressamente previsto no Art. 37 da Constituição, e o princípio da probidade administrativa são institutos que visam impedir as arbitrariedades e desonestidades estatais, visando sempre o bem comum.

Inobstante ser difícil estabelecer uma diferenciação entre esses conceitos, Larissa Freitas Carlos (2000, online) os diferencia estabelecendo que:

A moralidade administrativa compreende o tipo de comportamento que os administrados esperam da administração pública para a consecução de fins de interesse coletivo, segundo uma comunidade moral de valores, já a probidade na administração vem a ser o agir em consonância com tais valores, de modo a propiciar uma administração de boa qualidade. A moralidade é o genérico, do qual a probidade é uma especialização.

Por sua vez, sobre o dever do parlamentar de exercer com moralidade e probidade a sua função, José Anacleto Abduch Santos (2008, p. 752) assim leciona:

O parlamentar, como todo agente público, tem o dever do decoro - dentro e fora do Parlamento! Tem o dever de, com sua conduta, transmitir aos seus outorgantes (o povo) uma mensagem clara de respeito aos padrões sociais contemporâneos de moralidade, ética, honestidade e probidade. O Parlamento é instituição fundamental e indispensável à democracia, e seus integrantes recebem a responsabilidade de exercer com dignidade e honra a função parlamentar e a de prestar contas quanto aos deveres outorgados junto com o mandato recebido - o que inclui o dever de observância das leis e normas vigentes, de retidão moral e de caráter.

Visando resguardar a moralidade e a probidade administrativa no exercício de mandatos públicos, foi criada a Lei Complementar n° 135, de 4 de junho de 2010, que estabelece, de acordo com o § 9º do Art. 14 da Constituição Federal[8], casos de inelegibilidade, prazos de cassação, dentre outras providências.

A supramencionada Lei Complementar ficou popularmente conhecida como “Lei da Ficha Limpa” e determina precipuamente que “aqueles que não possuírem vida pregressa e comportamento compatíveis com os princípios da Moralidade e da Probidade Administrativa tornam-se desonerados e incapacitados dessa árdua e relevante tarefa de definir os rumos da coletividade” (BELISCO, 2012, online).

Diante do exposto, resta patente que o parlamentar, ao desrespeitar seu dever de decoro, infringe uma série de princípios éticos e, sobretudo, jurídicos, estabelecidos em nossa Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, devendo, portanto, ser coibida a prática de conduta contrária ao decoro e seus desdobramentos.

3.3. Hipóteses de quebra de decoro parlamentar

Embora seja difícil descrever com exatidão quando um parlamentar descumpre com seu dever de decoro, analisaremos e teceremos a seguir breves considerações sobre as três hipóteses previstas em nossa atual Constituição:

1) os casos previstos nos regimentos internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal;

2)    o abuso das prerrogativas asseguradas aos membros do Congresso;

3)  a percepção de vantagens indevidas.

Nos regimentos internos das casas legislativas, as mesmas disposições da Constituição são repetidas, quase que de mesmo modo, nos Art. 240 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e Art. 32 do Regimento Interno do Senado Federal.

À guisa de exemplo, tomemos o regimento da Câmara dos Deputados e demais atos normativos, a fim de explicitar determinadas hipóteses de quebra de decoro e as medidas disciplinares que visam coibir tais práticas.

O  Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara, por exemplo, alarga as possibilidades de quebra de decoro:

Art. 4º - Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:

I    - abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 55, § Io);

II  - perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas (Constituição Federal, art. 55, §1°);

III  - celebrar acordo que tenha por objeto a posse do suplente, condicionando- a a contraprestação financeira ou à prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais dos deputados;

IV   - fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação;

V   - omitir intencionalmente informação relevante, ou, nas mesmas condições, prestar informação falsa nas declarações de que trata o art. 18.

Art. 5o- Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste Código:

I  - perturbar a ordem das sessões da Câmara ou das reuniões de comissão;

II  - praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa;

III    - praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou comissão, ou os respectivos Presidentes;

É salutar trazer à baila o Art. 25 do Regimento Interno do Senado, o qual estabelece que somente dentro do edifício do Senado Federal poderia o Senador ser responsabilizado pelo exercício de ato incompatível com o decoro parlamentar. Senão vejamos:

Art. 25. Se algum Senador praticar, dentro do edifício do Senado, ato incompatível com o decoro parlamentar ou com a compostura pessoal, a Mesa dele conhecerá e abrirá inquérito, submetendo o caso ao Plenário, que sobre ele deliberará, no prazo improrrogável de dez dias úteis. (NR)

Todavia, cumpre frisar que há quem discorde do teor do supracitado dispositivo, como José Anacleto Abduch Santos (2008, p.752), que sobre o tema assim assegura:

O parlamentar não é parlamentar apenas entre as quatro paredes do prédio do Parlamento. No Parlamento, exerce a função pública, mas não se despe da condição de parlamentar ao se retirar dele. (...) A conduta do titular de mandato eletivo deve ser exemplar, seja nos trabalhos realizados no exercício da função pública, seja na conduta privada, sob pena de tornar a expressão “decoro parlamentar” uma contradição em termos.

Nesse mesmo sentido, Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro (2007, online):

[...] decoro parlamentar visa a assegurar e preservar a própria imagem que se tem do Poder Legislativo. E esta imagem, desenganadamente, pode ser afetada por atos de congressistas que não guardem qualquer relação com o efetivo exercício do mandato parlamentar.

Nesta linha, no extremo, pode o Congresso Nacional entender que a permanência, na Casa, de parlamentar acusado de estupro afeta, sim, a própria honorabilidade do Parlamento. Trata-se, portanto, de ato completamente destacado da atividade parlamentar (suposta prática de estupro), mas, ainda assim, potencialmente apto a danificar a honra objetiva do Parlamento.

Outros exemplos poderiam ser dados, todos eles evidenciadores de que tanto atos públicos, praticados por parlamentares enquanto tal, como atos de índole meramente privada, são virtualmente capazes de atingir o Congresso Nacional. Tanto é assim, que as vedações constitucionais impostas aos parlamentares também se referem a atos que não guardam qualquer relação com o mister congressional. Veja-se, por exemplo, que, desde a expedição do diploma, Deputados e Senadores não poderão firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária. Típica limitação que, inspirada pelo princípio da moralidade administrativa, atinge a esfera privada, negociai, empresarial, do parlamentar (CF, art. 54,1, "a"). Sic!

Quanto à questão do abuso das prerrogativas parlamentares, Celso Ribeiro Bastos (1999, p. 243) afirma que “o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional seria o equivalente a abusar das imunidades outorgadas ao parlamentar para o bom e independente desempenho de seu cargo”.

E no que diz respeito ao que seria a percepção de vantagens indevidas, destacamos que essa pode ser entendida como qualquer benefício que o parlamentar aufira sem título legítimo do próprio Estado ou de um particular.

Cumpre frisar, ainda, que não é necessário que a conduta incompatível com o decoro parlamentar tenha se dado na vigência do mandato para que reste configurada violação ao decoro, pois práticas realizadas em períodos fora do mandato também enfrentam a sua censura.

Nessa perspectiva, destaco mais um entendimento de Pinheiro (2007, online) sobre o tema:

Assim, é desnecessário, para a configuração da quebra de decoro parlamentar, qualquer relação de contemporaneidade entre a prática do ato tido como indecoroso e a titularidade do mandato ou, ainda, qualquer vínculo material de implicação entre a conduta desabonadora e o exercício das funções congressuais. Ao contrário disso, o processo de cassação por quebra de decoro pode validamente se instaurar sempre que a Casa Legislativa, num juízo que lhe é absolutamente privativo, entender que conduta imputada a parlamentar pode comprometer, por sua gravidade mesma, o prestígio social desfrutado pela Instituição.

Igualmente, ressalte-se que o momento em que referidas condutas indecorosas são praticadas não se mostra essencial para a configuração de quebra de decoro e a perda do mandato daí advinda, uma vez que todas essas hipóteses supramencionadas não foram criadas com o fito de vigiar o exercício do mandato do parlamentar, mas sim de manter a honra objetiva do Parlamento.

3.4.  Das penalidades aplicáveis por conduta violadora do dever de decoro

Para a concretização do regime democrático, é imprescindível, dentre outros requisitos, o fortalecimento dos padrões éticos e morais da sociedade, ante o exorbitante número de casos comprovados de corrupção em nosso País. Logo, faz-se necessária, para frear essas práticas indecorosas dos parlamentares, a criação de mecanismos de punição.

O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, a título de exemplo, estabelece, em seu Art. 10, sanções cabíveis aos parlamentares que infringirem seu dever de decoro:

Art. 10. São as seguintes as penalidades aplicáveis por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar:

I  - censura, verbal ou escrita;

II  - suspensão de prerrogativas regimentais;

III  - suspensão temporária do exercício do mandato;

IV  - perda do mandato.

Parágrafo único. Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a Câmara dos Deputados, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do infrator.

Consoante previsão constitucional, destaquem-se algumas situações que, excepcionalmente, podem acarretar a perda de mandato parlamentar antes de findo o seu prazo, mais precisamente no Art. 55 da CRFB/88:

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I  - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II  - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

III   - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;

IV  - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

VI  - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

(...)

§ 2o - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa, (grifo nosso).

Dentre os casos acima enumerados, cumpre-nos destacar, face sua relevância para o desenvolvimento de nossa pesquisa, a hipótese decorrente de procedimento incompatível com o decoro parlamentar.

Conforme especificado no § 2o do Art. 55, CRFB/88, essa sanção de perda do mandato é ato disciplinar de competência privativa da respectiva Casa Legislativa, a qual pode determinar a cassação do mandato parlamentar como uma medida disciplinar, mediante votação secreta[9] e por quórum de maioria absoluta, após provocação da Mesa da Câmara ou do Senado, a depender do caso, ou de partido político com representação no Congresso Nacional.

No caso da Câmara dos Deputados, é de responsabilidade do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, criado em outubro de 2001, estabelecer a abertura de processo disciplinar para a aplicação de penalidades nos casos de descumprimento de normas relativas à quebra de decoro parlamentar.

Tramitou no referido Conselho apenas um processo disciplinar por quebra de decoro parlamentar, esse contra o deputado Natan Donadon, este que foi o primeiro caso de parlamentar a cumprir pena no exercício do mandato.

Esse deputado encontra-se atualmente preso na penitenciária da Papuda, em Brasília, em razão de ter sido condenado por sentença penal transitada em julgado no Supremo Tribunal Federal por crimes de formação de quadrilha e de peculato, tendo inclusive seu pedido de revisão criminal sido rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal recentemente.

Tendo em vista que a condenação criminal transitada em julgado não cassa automaticamente o mandato parlamentar, porquanto cabe ao Poder Legislativo dar a palavra final sobre a perda de mandato[10], o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com uma representação contra Donadon no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, visando à cassação de seu mandato por quebra de decoro parlamentar.

Essa representação visa resguardar a imagem da Câmara dos Deputados, uma vez que a manutenção do mandato de um condenado por crimes contra a Administração Pública macularia a integridade da Instituição Parlamentar.

Nesse sentido, o deputado Beto Albuquerque (2013, online), líder do PSB na Câmara dos Deputados, em sessão realizada no dia dois de setembro de 2013, reforçou a representação apresentada por seu partido político, pronunciando-se sobre o assunto da seguinte maneira:

[...] Deputado Natan Donadon, que se encontra preso na Papuda, tendo sido condenado criminalmente, e havido transitado em julgado o processo.

(...)

A conveniência da quebra de decoro parlamentar está em ofensa à integridade da instituição, do Parlamento, de todos os Parlamentares. O que se julga não é o comportamento do Parlamentar em questão, mas, sim, o ferimento mortal do conjunto da instituição, do próprio Poder Legislativo.

Então, o conceito abrangente de decoro parlamentar na Constituição se dá exatamente no sentido de que esta Casa tenha, de forma pertinente, o juízo de valor de julgar esse tipo de fato.

Hoje, esta Casa não pode negar que está constrangida; não pode negar que está em desconexão com a sociedade brasileira; e não pode negar que há em curso um movimento no sentido de repulsa à decisão tomada.

É flagrante, portanto, que a manutenção do mandato de Natan Donadon ofendia a regra do decoro parlamentar, que, consoante outrora demonstrado, não tem como objetivo tutelar o exercício do mandato, mas, sim, a honra objetiva do Parlamento.

Sobre o tema, Pinheiro (2007, online):

A idéia, portanto, em tema de cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro, é a preservação da intangibilidade do bem jurídico que se pretende tutelar, qual seja, a respeitabilidade, a honorabilidade, da Instituição Parlamentar. (,..)velar pelo funcionamento das instituições democráticas e pela crença na democracia como o único regime capaz de assegurar o pleno exercício dos direitos fundamentais. Sic!

E foi nesse sentido que assim decidiu o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, ao, em fevereiro de 2014, e por votação aberta, condenar o ex-deputado Natan Donadon por quebra de decoro parlamentar, finalmente cassando seu mandato.

Assim, as condutas praticadas por parlamentares que atentarem contra os deveres éticos inerentes ao decoro merecem a devida averiguação e punição, de modo que eles exerçam seu múnus público de maneira proba e, com isso, a vontade popular e, consequentemente, a democracia sejam respeitadas.

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Sobre o autor
João Henrique de Brito Marinho

Defensor Público do Estado de Sergipe.Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Pós-Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela FACET. Pós-Graduado em Acesso à justiça e Defensoria Pública pelo Centro Universitário Uniprojeção em Brasília. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Aprovado nos concursos da Defensoria Pública dos Estados do Maranhão, Sergipe e Rio Grande do Norte. Aprovado nos concursos de Analista Judiciário do MP/CE, TRF - 5ª Região e TJ/PE. Aprovado no concurso de Oficial de Justiça do TJ/PE. Aprovado no concurso de Advogado da FUNSAÚDE. Aprovado nos concursos de Técnico Judiciário do TRF - 5ª Região e TJ/PE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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