A colaboração premiada atualizada: reflexos da Lei n° 12.850/2013 no processo penal brasileiro

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Estudo a respeito da colaboração premiada, abordando a criminalidade organizada; a evolução legislativa sobre o instituto; sua utilização como instrumento de investigação e produção probatória; os aspectos procedimentais; e as polêmicas correlatas.

RESUMO

 O presente trabalho tem o escopo de desenvolver um estudo a respeito da colaboração premiada no Brasil, após o advento da Lei nº 12.850/13. Inicialmente, contextualiza o estudo no âmbito do combate à criminalidade organizada, discorrendo-se sobre suas características, o histórico da evolução legislativa no Brasil e no mundo, bem como analisa a perspectiva de sucesso da colaboração premiada como instrumento de investigação e produção probatória. A seguir, destaca as inovações procedimentais e o estabelecimento detalhado de requisitos e benefícios ao colaborador. Por fim, aprofunda a análise dos aspectos polêmicos correlatos ao tema, que envolvem desde a consolidação da justiça negociada no Brasil, até a refutação das alegadas inconstitucionalidades da norma.

PALAVRAS-CHAVE: Colaboração Premiada. Crime Organizado. Justiça Negociada. Métodos de investigação. Constitucionalidade da Lei nº 12.850/13.

ABSTRACT

 This work develops a study about the witness immunity in Brazil, after the enactment of Law 12.850/13. Firstly, there is a contextualization with fight against organized crime, discoursing on their characteristics, the history of legal developments in Brazil and on the world, as well as analyzes the collaboration prospect of success awarded as a research tool and probative production. Proceeds highlighting the procedural innovations and the detailed establishment of requirements and benefits to the collaborator. Finally, deepens the analysis of the controversial aspects related to the issue, involving the consolidation of plea bargain in Brazil, until the refutation of the alleged unconstitutionality of the law.

KEYWORDS: Witness Immunity. Organized Crime. Plea Bargain. Retroactive lapsing. Research method. Constitutionality of the law 12.850/13.

 

INTRODUÇÃO

  

A segurança pública é talvez, hodiernamente, a mais problemática das funções estatais, haja vista a notória incapacidade do Estado em lidar com a criminalidade, e todos os efeitos sociais dela decorrentes. O enfrentamento do problema resta prejudicado, principalmente, pela inexistência de um planejamento estrutural, que envolva desde a elaboração dos projetos de Lei até a execução das penas; das atribuições do Executivo na prevenção, às funções punitivas do Poder Judiciário, em todos os âmbitos federativos.

Por outro prisma, observa-se eficiente o fenômeno da descodificação, em que se prioriza a construção de microssistemas, para o enfrentamento mais direcionado de questões específicas. Neste contexto se insere a Lei n° 12.850/2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, as infrações penais correlatas e o procedimento criminal.

A Lei do Crime Organizado introduz em nosso ordenamento tanto o conceito quanto a tipificação da organização criminosa, dispondo ainda sobre métodos de investigação criminal e produção probatória. Neste estudo, prioriza-se a análise da regulamentação da colaboração premida, já prevista anteriormente em nosso ordenamento jurídico pela Lei n° 9.034/1995, assim como em outras leis subsequentes sob a alcunha de delação premiada.

Destaca-se, em relação às normas anteriores, a regulamentação de forma mais detalhada do seu procedimento, de seus requisitos, e dos benefícios conferidos ao colaborador, especificamente para as infrações cometidas no âmbito das organizações criminosas, mas com ampla possibilidade de utilização em situações abrangidas por outras leis, por analogia.

Posta assim a questão, é primordial que se proceda ao estudo pormenorizado da nova Lei, que muito tem a contribuir para o combate à criminalidade. A análise crítica dos institutos por ela trazidos, especialmente a colaboração premiada, tem por função auxiliar o manuseio destes pelos operadores jurídicos.

É inegável que o instituto pode se mostrar um eficiente mecanismo estatal para a desestruturação das organizações criminosas, alcançando-se resultados que não seriam possíveis por outros meios, tais como a identificação de seus integrantes, a revelação de sua estrutura hierárquica, a sua divisão interna de tarefas, e até mesmo a “implosão psicológica” do grupo, visto que pode resultar na perpétua desconfiança recíproca de seus membros.

Assim, por se tratar de uma lei recente, há um campo fértil para o desenvolvimento doutrinário, haja vista a inexpressiva quantidade de julgados até então proferidos (considerando-se a complexidade das investigações e dos processos que envolvem organizações criminosas), e a existência de toda sorte de considerações e hipóteses, de cunho jurídico e social, a serem analisadas.

É mister que se atente às críticas realizadas por criminalistas ao instituto, dentre as quais se destaca a resistência à maior abertura da dita justiça negociada (plea bargaining no direito americano), ampliando o rol de exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal — em que já consta a transação penal da Lei nº 9.099/1995.

Não menos importante, relata-se também uma possível inconstitucionalidade da renúncia ao silêncio, e a atribuição do delegado de polícia, estabelecida pela Lei em questão, para propositura e formalização do acordo de colaboração premiada, haja vista a titularidade exclusiva do Ministério Público para formação da opinio delicti.

Questiona-se ainda, por um viés, a moralidade da colaboração premiada, visto que o Estado utiliza-se, para a persecução de seu direito de punir, de um ato de “traição” do colaborador; e por outro, o enfraquecimento das atividades investigativas, servindo o instituto a provocar a falta de zelo das instituições responsáveis em formar um corpo probatório mais robusto e seguro, confiando-se nas informações provenientes do colaborador, ou até a seguir uma linha investigativa errônea, propósito almejado dolosamente pelo membro da organização criminosa.

As outras considerações dizem respeito às divergências oriundas da interpretação dos artigos da norma, que transitam desde meras divergências teóricas, sem efeito prático, até a discordância quanto a entendimentos que interferem de maneira substancial na aplicabilidade prática da colaboração premiada, como é o caso da eventual vinculação — ou não — do Poder Judiciário ao acordo celebrando entre as partes.

Destarte, tem-se que a análise crítica da inovação legislativa é essencial para a correta aplicação de seus dispositivos, para a verificação de seu encaixe nos ordenamentos constitucional e criminal brasileiros, bem como a sua aptidão para atender satisfatoriamente ao objetivo de auxiliar a investigação criminal.

 

  1. O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

 

1.1       CARACTERÍSTICAS DO CRIME ORGANIZADO

 

 

O crime organizado não possui uma faceta homogênea, tornando difícil o apontamento das caraterísticas uniformes que o permeiam. Mesmo no imaginário popular, existem diversos arquétipos que costumam ser atrelados à criminalidade organizada, como são exemplos a máfia italiana (a qual, em si mesma, sofreu transmutação no decorrer dos séculos, como foi a passagem da era das famiglias até a ditadura de Provenzano e Riina na Sicília[1]), e a máfia americana pós-Lei Seca, em que é representante simbólico Al Capone.

Ainda vêm à mente a máfia japonesa Yakuza, as Tríades Chinesas, os Cartéis do narcotráfico na América do Sul, com destaque para o Cartel de Medellín na Colômbia e a organização terrorista Los Zetas, no México, e as facções brasileiras Comando Vermelho e PCC – Primeiro Comando da Capital.

No Brasil, aponta-se que a tradicional máfia oriunda do jogo do bicho[2], criado pelo Barão de Drummond para salvar o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, mas que passou ao controle dos “banqueiros” do jogo, cujo poder se ampliou pela proibição da atividade, levando à corrupção de agentes públicos e diversificação de atividades na área de entretenimento, principalmente.

Outra faceta da criminalidade nacional surgiu da associação de presidiários, dentre as quais se destacam o Comando Vermelho, surgido na década de 70, na cidade do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC), formado em 1993, na cidade de São Paulo. Explica Flávia Ribeiro:

 

O Comando Vermelho tem raízes nos anos 1970, quando bandidos comuns conviveram com presos políticos na prisão de ilha Grande e aprimoraram suas técnicas. Entre seus mentores estavam William da Silva Lima e José Carlos Encina, o Escadinha. Rachas levaram à formação dos outros grupos. Nos últimos 30 anos, as facções se encastelaram nas favelas cariocas, apavorando nas guerras por território. Desde 2008, as comunidades têm sido ocupadas por unidades de polícia pacificadora, precedidas por ações das tropas de elite do Bope. O tráfico de drogas no Rio movimenta cerca de 630 milhões de reais por ano.

Já o PCC, surgiu em 1993, organizado por oito detentos do Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté. Hoje, seu líder é Marcos Camacho, o Marcola. Em seu estatuto há 16 itens, inclusive um que determina a lei do silêncio, como a omertà italiana. O PCC assassina juízes e policiais e comanda 90% dos presos de São Paulo. Seus chefes controlam o crime de dentro das prisões, com celulares e a ajuda de advogados comprados. Em maio de 2006, mostrou toda a sua força ao promover rebeliões simultâneas em dezenas de presídios e o caos nas ruas da capital paulista.[3]

 

Eduardo Araújo da Silva[4], que apresenta um admirável estudo da origem e evolução das organizações criminosas e suas áreas de atuação pelo mundo, aponta que muitas dessas mais tradicionais surgiram como movimento de proteção contra arbitrariedades praticadas pelo Estado, em detrimento das classes mais humildes e desamparadas de serviços públicos, motivo pelo qual conseguiram se desenvolver com o apoio da comunidade circundante.

Nesse ponto, há diversa semelhança com organizações atuais, que transitam, a todo momento, do poder paralelo ao Estado, à provedor social da comunidade em que estão inseridas, como se observa nos morros cariocas.

Comum, de igual forma, é a transição de atividades lícitas (ou não proibidas) para as atividades ilícitas. Assim ocorreu na transição de atuação das Tríades Chinesas do ópio para a heroína, por exemplo. No caminho reverso, as organizações criminosas costumam também expandir seus negócios para atividades lícitas, com o intuito de lavar dinheiro, aumentar a influência social e mesmo multiplicar seus lucros.

O crescimento das máfias está ligado, outrossim, às ações terroristas, das quais a maioria se utilizam como atos simbólicos de afirmação ou demonstração de força; com a crescente influência econômica e política; e com o tráfico internacional de entorpecentes, armas, pessoas, animais silvestres, peças de arte, e tudo quanto possa gerar lucros. Arremata o autor:

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Notam-se, portanto, alguns traços comuns entre as diversas origens das organizações criminosas nos diferentes países: a maioria teve como nascedouro movimentos populares, o que facilitou sobremaneira a sua aceitação na comunidade local, assim como o recrutamento de voluntários para o exercício de suas posteriores atividades ilícitas; muitas delas passaram a atuar no vácuo de algumas proibições estatais (exploração da prostituição, jogos de azar, venda de entorpecentes e de armas sofisticadas); contaram com a conivência de agentes do Estado para o desenvolvimento de suas atividades ilícitas; e impuseram sua lei pelo emprego da ameaça e violência, voltada sobretudo para delatores e integrantes de grupos concorrentes.

 

Convém destacar, ainda, as características gerais apontadas no estudo, quais sejam, a acumulação de poder econômico (um quarto de dinheiro em circulação do mundo, em estimativa), o alto poder de corrupção, em relação a todos os poderes estatais, a necessidade de “legalizar” o lucro obtido licitamente, o alto poder de intimidação (com destaque para a imposição da “lei do silêncio” e a tortura em relação ao membro — e familiares — que prejudicar a organização), as conexões locais e internacionais, a estrutura piramidal e sua relação com a comunidade.

Nesse trabalho, interessa sobretudo a estrutura piramidal e/ou empresarial das organizações criminosas, visto que a colaboração premiada tem, como um dos objetivos, a revelação dessa estrutura, da divisão de tarefas, das áreas de atuação e dos membros componentes. Sobre essa faceta, é precisa a lição de Vicente Greco Filho:

 

Na atualidade, a preocupação maior é a dos crimes praticados por intermédio de empresas, como os delitos contra a ordem econômica, prevendo-se, inclusive, a criminalização da pessoa jurídica. E, sem dúvida, os crimes praticados por organizações criminosas como o tráfico de drogas, o tráfico ilícito de armas, tráfico de seres humanos, a lavagem de dinheiro etc., verdadeiras empresas criminais que constituem real e altamente danoso poder paralelo ao regular poder do Estado, e que pode não se limitar a fronteiras constituindo a chamada criminalidade transnacional.[5]

 

O autor da classificação também explica a forma como as organizações criminosas costumam se organizar:

 

A divisão de tarefas nesses grupos segue a estrutura empresarial, pois na sua base há um elevado número de ‘soldados’, responsáveis pelas mais variadas atividades, os quais são gerenciados regionalmente por integrantes de média importância que, por sua vez, são comandados e financiados por um boss, que não raras vezes se utiliza de sofisticados meios tecnológicos para integrar todos os seus membros.[6]

 

É relevante também a transnacionalidade, problema que movimentou a comunidade internacional a realizar convenções e celebrar tratados, com o intuito de buscar caminhos para o combate sistemático e cooperativo entre as nações, já que as organizações criminosas possuem fácil transição entre elas, dificultando consideravelmente a atuação isolada de cada uma.

Outrossim, a Lei das Organizações Criminosas destaca essa particularidade ao prever, em seu art. 1º, § 1º, o caráter transnacional como hipótese alternativa à prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos. Ou seja, a simples constatação da transnacionalidade é suficiente para a incidência da lei, ainda que as infrações apuradas não alcancem o patamar mínimo indicado, percebendo-se com isso a gravidade genérica que a lei empresta ao atributo.

Nesta esteira, a título de esclarecimento, o caráter transnacional mencionado no fim do dispositivo refere-se aos crimes cometidos pelas infrações criminosas, questão que ganha relevância quando confrontada com o teor do §4º do art. 2º [7], uma vez que este prevê, como causa de aumento de pena se as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização. É o que explicam Eduardo Luiz Santos Cabette e Marcius Tadeu Maciel Nahur:

 

Ocorre que nem toda organização criminosa terá de ser necessariamente transnacional, essa característica é meramente acidental no conceito erigido pelo legislador no artigo 1º, § 1º, da lei de regência. Pode haver tranquilamente organizações criminosas não transnacionais. Observe-se que o § 1º, arrola uma série de características (...). Somente até ai já está caracterizada uma organização criminosa, a qual pode ser ou não transnacional. Depois de todas essas características, vem então o legislador e, de forma facultativa diz: “o que sejam de caráter transnacional”. Aqui o legislador se refere às infrações penais, que, sendo de caráter transnacional, não precisarão ter penas máximas acima de 4 anos, poderão ser inclusive contravenções. Ora, a transnacionalidade claramente é elemento obrigatório do conceito de Organização Criminosa mas meramente acidental. Não constitui a “essência” do conceito. Dessa maneira é incorreto afirmar que o aumento de pena sob comento constitui “bis in idem”. (...)Dessa forma é mais justo que uma organização criminosa transnacional seja mais rigorosamente apenada do que uma de caráter local, estadual, regional ou nacional. O equívoco de Nucci está em entender que somente haverá organização criminosa se a atividade for transnacional, como se a transnacionalidade fosse um elemento essencial do conceito de organização criminosa, quando não o é, mas apenas um elemento acidental e, inclusive, de parca incidência prática.[8] (grifos nossos)

 

Ademais, o §2º direciona a aplicação da lei também às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; e às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em território nacional.

Pois bem, retornando às particularidades das organizações criminosas, verifica-se estas que tendem a tornar ineficazes os métodos tradicionais de combate ao crime, quando a elas aplicados. O alto poder econômico e alto poder de corrupção, principalmente, aliados às peculiaridades do mundo moderno, no qual a circulação de capitais, bens e pessoas facilitam a operação de atividades ilegais, demandam, necessidade de adoção de técnicas diferenciadas pelo Estado.

Nesse sentido, destaca Vicente Greco Filho:

 

Não se quer dizer que desapareceram os crimes contra bens jurídicos individuais nem que tenha desaparecido o crime individual. O que ocorre é que o Direito Penal ainda não encontrou resposta adequada às modalidades modernas de criminalidade, constatando-se que os países ocidentais de influência mundial têm adotado medidas especiais em face delas, medidas essas que são, queiram ou não queiram, a aceitação de que certa criminalidade se põe como um poder paralelo, um Estado paralelo que rejeita o Estado regular e que, portanto, precisa ser combatido com medidas especiais.[9]

 

Também discorre sobre o assunto Juan Muñoz Sanches[10], para o qual a mudança de paradigma constatada, qual seja, da criminalidade individual à criminalidade organizada, levou as instituições policiais a buscarem novos métodos de investigação, já que esta “se serve de meios logísticos modernos e está fechada ao ambiente exterior, em certa medida imune aos meios tradicionais de investigação (observações, interrogatórios, estudos dos vestígios deixados)”.

Nesse cenário, é imperioso que o Estado tome a frente da situação, rechaçando-se a inércia e se desprendendo de tradicionalismos jurídicos, mormente quando os antigos paradigmas comprovadamente não alcança bons resultados seguindo.

 

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