INTRODUÇÃO
Atualmente, a mera atitude de diferenciar seres humanos pelos mais diversos critérios, é logo tachada de “preconceito”, um “chavão” recorrente a fim de se pôr termo a discussões, grosso modo, de profundeza moral.
Todavia, o que se denota nesses nossos dias é a vulgarização do termo, o qual passou por um deslocamento semântico perdendo completamente seu significado etimológico.
A relevância em abordar-se o tema projeta-se na forte tendência política imprimida pelos nossos governantes em se combater preconceitos de toda ordem, inclusive com crescentes interferências na esfera criminal, ameaçando certas salva-guardas individuais.
Exemplo disso é que a nossa própria Constituição Federal invoca em seu preâmbulo a ausência de preconceitos como uma diretriz suprema (artigo 3º inciso IV), empregando o termo como sinônimo de discriminação, no objetivo de expurgar a prática da sociedade.
Todavia, ao contrário da discriminação, que pode ser punida de forma casuística, o preconceito não deve ser passível de pena, como haveremos de demonstrar.
O QUE É PRECONCEITO?
Etimologicamente, o preconceito significa um “conceito ou opinião formada antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos. Calcado no francês préconçu"[1].
Trata-se o preconceito de um juízo pré-concebido, uma ideia não muito amadurecida sobre determinado objeto. Esta ideia formulada sem muita segurança encontra-se em estado de tensão com um conceito. É um estado de tensão, pois não há segurança ainda firme na formulação desta ideia. O que caracteriza o preconceito é justamente isso: ao contrário da ciência, conhecimento certo e seguro, o preconceito é conhecimento inseguro. Mas nem por isso deixa de ser conhecimento.
Preconceitos pertencem ao âmago do ser humano, constituindo-se em reações instintivas, fundadas em cálculos mentais praticamente instantâneos. A diferença do “preconceito” para a “discriminação” consiste no fato de o preconceito ser abstrato, enquanto a discriminação é concreta, colocando o preconceito em ação. Com efeito, o preconceito é uma atitude geralmente defensiva, pouco facultativa, que se abre em momentos de escolhas rápidas e decisivas, não estando no domínio da razão ponderada. São cálculos psicossociais geralmente automáticos, sem sopesada reflexão, guiados em regra pela experiência.
Não se pode confundir preconceito com antipatia, ódio, aversão, intolerância. É bem verdade que um preconceito pode gerar antipatia, ódio, aversão e intolerância, como também pode gerar seu inverso. Obviamente, é possível, sob o véu de um preconceito, encobrir todos esses sentimentos. Porém, tal atitude, além de ser inteiramente subjetiva, não é por si capaz de desfigurar o significado do termo. Por exemplo: uma determinada tese pode muito bem soar como absurda, mas nem por isso “tese” significa “absurdo”. Não é porque um carro pode ser usado como arma que vou chamar um carro de arma. Carro não é arma, mas um veículo de locomoção. A conduta é que pode ser degenerada, como ocorre, semelhantemente, com o mau uso do preconceito. Assim, completamente equivocada a ideia de fazer do termo “preconceito” sinônimo de antipatia, ódio, aversão ou intolerância.
Em suma, os preconceitos refletem uma ideia enraizada, moralmente neutra, que só pode ser provada, na prática, como verdadeira ou falsa, uma vez que pertencerem ao domínio abstrato dos sentimentos.
PRECONCEITOS RAZOÁVEIS
Um exemplo de preconceito razoável é aquele dirigido em desfavor do cão pitbull. Pela experiência somos ensinados a evitá-los, pois geralmente são cães agressivos e perigosos. Isso não significa que todos os cães desta raça sejam perigosos, mas devido a um histórico numeroso de casos que faz a sua má fama, é perfeitamente razoável que os evitemos. Sendo assim, determinados preconceitos podem ser razoáveis quando norteados pela prudência.
O Professor de Lógica, John Grier Hibben, explicou que nem sempre o preconceito é um julgamento não-razoável. Segundo ele, o preconceito é simplesmente um julgamento não-pensado. Um julgamento não-razoável, prossegue, é, obviamente, contrário à razão e, portanto, a própria razão deve repudiá-lo. Mas o julgamento que é simplesmente não pensado pode provar-se no curso dos eventos ser eminentemente razoável, e como tal até em sua forma não pensada pode servir a um propósito mais útil em nosso pensamento[2]. Como ele destaca brilhantemente:
“Esses julgamentos são absolutamente indispensáveis na economia de nossa vida mental. Se nós excluíssemos todos os julgamentos que não são acompanhados por uma prova satisfatória de sua validade, um desperdício tremendo de tempo e energia inevitavelmente resultaria. Por isso é uma lei fundamental de nossa atividade intelectual que o processo da razão pelo qual nós chegamos em certas conclusões freqüentemente perdem-se da memória: mas as conclusões mesmas permanecem como um permanente depósito de conhecimento.”[3] [GRIFAMOS]
Ora, o ser humano não é nem um computador nem um ser infalível. O ser humano não tem a capacidade de armazenar por toda vida todo tipo de conhecimento a ponto de comunicar somente conceitos cirurgicamente precisos. Caso as decisões do ser humano fossem guiadas apenas por conceitos totalmente exatos, as próprias ciências humanas e sociais seriam inviabilizadas, estaríamos numa utopia racionalista e os seres humanos não seriam mais humanos, mas computadores ou deuses.
Logo, a medida da razoabilidade de um preconceito exteriorizado é que deve servir como parâmetro de sua constitucionalidade, o que se discutirá a seguir.
PRECONCEITOS IMPOSTOS POR LEI INFRACONSTITUCIONAL
Obviamente, o preconceito não se pauta na precisa racionalidade, pois, do contrário, deixaria de ser pré-conceito para assumir a qualidade de “conceito”.
Todavia, o fato de um preconceito não revestir-se de certeza não significa que eles possam ser destituídos de razoabilidade, sendo fundamental frisar que a Constituição Federal somente veda os preconceitos arbitrários.
Ora, a legislação infraconstitucional é pródiga em exemplos de preconceitos de diversos tipos. A começar pelo Código Penal.
Conforme se constata da leitura do caput do art. 59 do Código, as circunstâncias a serem analisadas pelo magistrado para aplicação de pena são: "a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do crime, bem como o comportamento da vítima".
Assim, caso a pessoa tenha antecedentes criminais, isso ensejará por parte do juiz um tratamento discriminatório, implicando num pré-julgamento (preconceito) legal em função do que esta pessoa fez no passado, mesmo que tal conduta não tenha qualquer conexidade com o objeto de sua nova capitulação. É o chamado “direito penal do autor”, que não deixa de ser baseado no preconceito, porém, de forma razoável, tendo em vista seu caráter pedagógico.
Mais um exemplo de preconceito encontramos no parágrafo único do art. 137 da Lei nº 8.112/90, de constitucionalidade duvidosa, porque, no caso, aplica uma pena de caráter perpétuo.
Afirma o dispositivo que não poderá retornar ao serviço público federal o servidor que for demitido ou destituído do cargo em comissão por crime contra a administração pública e corrupção. Assim, caso um servidor tenha sido punido há 15 anos por um ato de corrupção, nunca mais poderá voltar ao serviço público.
Outro exemplo está na lei falimentar (Lei nº 11.101/2005), pois, de acordo com seu artigo 48, quem quer que exerça regularmente suas atividades há mais de 02 (dois) anos não poderá requerer recuperação judicial caso tenha sido condenado em qualquer dos crimes previstos na lei (inciso IV).
Ora, fica evidente tratarem-se de preconceitos estabelecidos por lei em desfavor de pessoas portadoras de antecedentes, funcionando como um plus no apenamento em razão de comportamento pregresso. Todavia, nada – a não ser a existência do próprio preconceito – garantirá que tais pessoas assumirão no futuro comportamento inidôneo que justifique o tratamento discriminatório por tais comandos normativos. O que ocorre é que tais preconceitos orientam-se pela prudência e não pelo arbítrio, sendo totalmente razoáveis e, portanto, constitucionais neste tocante.
Poderíamos citar centenas de outros preconceitos presentes no ordenamento infraconstitucional e que nunca tiveram sua constitucionalidade questionada, visto que a vedação constitucional aos preconceitos somente se aplica aos preconceitos arbitrários, ou seja, àqueles que estabeleçam cláusulas de tratamento iníquas, cujo fator de desequiparação “não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados”[4].
O PORQUÊ DA DEMONIZAÇÃO DO “PRECONCEITO”
Feitos tais esclarecimentos, notamos existir um preconceito errôneo enraizado nas mentes de boa parte do povo com o termo “preconceito”. É o preconceito ao “preconceito”.
Seguramente, “preconceito” transformou-se no vício por excelência nesta nova ordem cultural igualitária. A emergência desta “nova ordem” massificou a ideia ética do “ter” ou “não ter preconceito” como novo paradigma das relações humanas. Acusar alguém de ter “preconceito” é projetar-lhe o mal; verdadeira heresia da sociedade contemporânea. Incorrer em “preconceito” tornou-se sinônimo de “praticar o mal”.
Richard Weaver identifica nas doutrinas de Moscou as fontes e origens da grande pressão para erradicar o “preconceito”.[5] Segundo este estudioso, os militantes comunistas fazem isso para produzir um ceticismo social generalizado para que, logo a seguir, possam impor uma reconstrução dogmática no mundo.[6] Ele afirma, igualmente, que o objetivo destes comunistas é reduzir o povo a uma massa disforme, removendo aquelas distinções que são a expressão desta ideia[7], sejam elas de ordem econômica, moral, social ou estética[8].
Constata-se no combate frenético ao preconceito, portanto, uma genuína guerra à tradição; uma hostilidade aos costumes tradicionais, visando apagar os seus vestígios a serem suplantados por uma nova sociedade: a sociedade igualitária; sem classes, regida por ausência de toda sorte de distinções.
John Grier Hibben destaca que amamos ou detestamos alguém pelos seus preconceitos. Extrair os preconceitos de alguém é fazê-lo um depósito de lugares-comuns. A personalidade, segundo o Professor Hibben, é a projeção de nossos preconceitos. Remova os preconceitos e o indivíduo é diluído na multidão. Caráter sem um traço de preconceito é insípido, e um homem assim tomado perde intensidade de convicção[9].
Em conclusão, a ideia engendrada de privar a sociedade de preconceitos acaba por transformar a sociedade numa massa composta de nulidades: cidadãos covardes, débeis, sem espírito criativo, reprodutores de lugares-comuns. A ideologia igualitária subjacente a uma sociedade sem preconceitos transforma o povo numa massa inane e a pessoa num mero fragmento (“indivíduo”) deste aglomerado:
“O nome de indivíduo, ao contrário, é comum ao homem e ao animal, à planta, ao micróbio, ao átomo. E ao passo que a personalidade repousa sobre a substância da alma humana... a individualidade se funda como tal, nas exigências próprias à matéria, princípio de individuação... Como indivíduos, somos apenas um fragmento da matéria... cujas leis sofremos. Como indivíduos, somos sujeitos aos astros. Como pessoas, dominamo-la. O individualismo moderno é um equívoco, um qui-pró-quó: a exaltação da individualidade fantasiada de personalidade...”[10]
As diferenciações de ordem moral desaparecem, pois a ética da igualdade passa a encadear as relações humanas. Eis então uma sociedade sem virtude, sem brilho e sem heroísmo.
Como acentua o Professor Hibben, “se a natureza humana fosse privada do preconceito, os épicos da moralidade nunca seriam escritos.”.[11] O escritor Thedore Dalrymple afirma que:
“O homem sem preconceitos, ou especialmente, o homem que se declara como tal, é um homem que fica apavorado de ser pensado primeiro dogmático, e segundo, tão fraco de mente, tão desprovido de individualidade e poder mental, que não pode pensar por si mesmo. Por suas opiniões, ele tem que retroceder em fragmentos de sabedoria, ou mais propriamente insensatez, que constitui o preconceito.”[12]
Como a sociedade que combate os preconceitos, guerreia a experiência e a tradição, trata-se de uma sociedade em processo de infantilização, pois, no momento em que for chamada a tomar decisões rápidas e impensadas, descartará a experiência por considerá-la “conhecimento precário”. Pela ausência de experiência, a criança escolherá sempre a mesma coisa, a coisa que lhe seja mais imediatamente atrativa ou gratificante, porém não necessariamente a melhor para si. Assim, uma sociedade sem preconceitos é uma sociedade previsível e mais facilmente governável. Em outras palavras, mais fácil de ser domesticada e enganada.
PRECONCEITO PERTENCE À NATUREZA HUMANA
Pertencendo o preconceito ao domínio abstrato dos sentimentos, portanto ao âmago do ser humano, a conduta a ser punida só pode ser a “discriminação injusta”, que degenera o preconceito numa aplicação desarrazoada.
Criminalizar o preconceito é destruir um domínio natural do ser humano, apenas pelo fato de o homem ser animal dotado de racionalidade, o que é uma imputação mais do que exorbitante, mas anti-natural.
Preconceitos constituem normas extraídas da experiência humana, o que, aliás, também ocorre com diversos outros animais, como é o caso da experiência de Pavlov. Quando não estão em desacordo com a reta-razão, não desnaturam sua qualidade, pois o homem não detém a onisciência divina, nem é um computador para atuar conceitualmente cem por cento do seu tempo.
Preconceitos, portanto, completam a personalidade, que não se limita a aspectos substancialmente racionais.
Criminalizá-lo é tão abusivo e arbitrário como criminalizar sentimentos como o choro, a raiva, a dor e o riso.
O princípio da alteridade no direito penal veda a incriminação do pensamento (pensiero non paga gabella). Como assinala Fernando Capez:
“O direito penal não se presta a punir pensamentos, idéias, ideologias, nem o modo de ser das pessoas, mas, ao contrário, fatos devidamente exteriorizados no mundo concreto e objetivamente descritos e identificados em tipos legais.
(...)
Não pode castigar meros pensamentos, idéias, ideologias, manifestações políticas ou culturais discordantes, tampouco incriminar categorias de pessoas. Os tipos devem definir fatos, associando-lhes penas, e não estereotipar autores”[13] [GRIFAMOS]
Prossegue o autor dizendo que:
“Silva Franco lembra que, ‘no Estado Democrático de Direito, o simples respeito formal ao princípio da legalidade não é suficiente. Há, na realidade, ínsito nesse princípio, uma dimensão de conteúdo que não pode ser menosprezada nem mantida num plano secundário. O Direito Penal não pode ser destinado, numa sociedade democrática e pluralista, nem à proteção de bens desimportantes, de coisas de nonada, de bagatelas, nem à imposição de convicções éticas ou morais ou de uma certa e definida moral oficial, nem à punição de atitudes internas, de opções pessoais, de posturas diferentes.’”[14] [GRIFAMOS]
Com efeito, o preconceito não é um dado substancialmente racional, mas nem todo dado que não seja substancialmente racional é irracional, ou seja, contrário à razão. Basta ser ordenado para ser ideologicamente racional, embora não substancialmente.
Exemplo disso é que sentimentos de repulsa ao mal e de satisfação com o bem são perfeitamente ordenados, e por isso são racionais – não substancialmente, mas ideologicamente.
Tudo aquilo que se opõe à reta-razão é anti-natural, mas o preconceito não é, aprioristicamente, contrário à razão. Quando no curso dos eventos o preconceito se demonstra correto, passa a ser ideologicamente racional, e, por conta disso, perfeitamente razoável.
Infelizmente, nossos legisladores não são dados a profundas meditações, o que seria exigível de um múnus de tamanha responsabilidade. Quando não são dotados de indigência intelectual, estão sempre imbuídos de indolência mental, dando-se mais satisfeitos pelo volume de proposições apresentadas do que propriamente pela qualidade destas produções.
O resultado é a concretização de várias leis desastrosas, entre as quais as que buscam punir o preconceito, violando a própria natureza humana.
Ora, se o preconceito é natural e intangível por estar no recôndito da alma de cada ser humano, encontra-se selado no domínio da intimidade, que é protegida pela mesma Constituição, em seu artigo 5º, inciso X.
Por conta disso, o artigo 1º[15] e o caput do artigo 20[16] da Lei 7.716/89 devem ser interpretados conforme a Constituição Federal, pois são literalmente inexequíveis, já que visam punir não apenas discriminações como também preconceitos.
Assim, o preconceito não pode e nem deve ser punido em função de uma vulgarização semântica incorporada à legislação.
Inversamente à ausência de sustentabilidade lógica à criminalização do preconceito, o apenamento da “discriminação” é humanamente possível, desde que esta discriminação seja injusta. A regra de ouro, antes de tudo, é verificar se existe correlação lógica entre o fator de desequiparação entre os regimes outorgados a cada parte.