Capa da publicação No meio do caminho tinha um cachorro: uma análise da responsabilidade civil trabalhista
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No meio do caminho tinha um cachorro

08/05/2019 às 18:25
Leia nesta página:

O empregado motoboy atropelou um cachorro. O TST disse que a empresa tem de pagar-lhe dano moral. Como assim?

De quem é a culpa?

Imagine que você é um motoqueiro e trabalhe com sua moto entregando pizzas, documentos, gás, água, flores, qualquer coisa. Lá um dia, ao dobrar uma esquina, você atropela um cachorro. O vira-latas safa-se e vai cuidar da vida. Você cai, quebra o pé, submete-se a uma cirurgia para corrigir a fratura e fica doze meses em casa num dolce far niente por conta do INSS. Corrijo: por nossa conta, porque é com os nossos caraminguás que o INSS vai custear esse seu ano sabático. Após a alta médica, você se reapresenta à empresa e é dispensado, sem justa causa, recebendo tudo direitinho. Insatisfeito, ajuíza ação trabalhista pedindo indenização por dano moral alegando que o acidente de moto lhe deixou sequelas físicas e emocionais.

De quem é a culpa pelo atropelamento do vira-latas?

O que pensa o TST?

O TST julgou um caso igualzinho e decidiu que a culpa era da empresa[2]. No entendimento da Corte, atropelamento de animais “insere-se no risco da atividade econômica do patrão” e, “mesmo não provada a sua culpa no acidente”, a empresa tinha o dever de reparar porque “se beneficia da mão de obra exercida pelo empregado".

Se a decisão admite que mesmo sem ter culpa no acidente a empresa tinha obrigação de indenizar porque se beneficia da mão de obra do empregado então toda empresa está antecipadamente condenada tenha ou não culpa em acidentes porque, afinal, se beneficia da mão de obra dos seus empregados. Essa é, aliás, a lógica do contrato de trabalho: aquele que explora um negócio paga para que outro lhe preste um serviço e isso, na ótica do TST, é beneficiar-se de mão de obra.

Acompanhe o raciocínio

Para facilitar o raciocínio, consideremos que o TST fundamentou a condenação em duas premissas:

1ª — atropelar vira-latas em via pública é risco da atividade econômica;

2ª  — embora sem culpa no acidente, a empresa responde pela obrigação de indenizar porque se beneficia da mão de obra do empregado.

Quem tem obrigação de indenizar

 O sistema de direito positivo brasileiro admite dois tipos de responsabilidade civil: a subjetiva e a objetiva. A responsabilidade civil subjetiva é a regra e exige prova da culpa. Como regra geral do sistema, aquele que alega ter sofrido um dano tem de provar que esse dano decorreu da prática de um ato ilícito (culpa) de alguém, em qualquer das suas modalidades (negligência, imperícia, imprudência). A responsabilidade civil objetiva é exceção e deve estar expressamente prevista em lei. Na responsabilidade civil objetiva não se fala em culpa porque a lei, antecipadamente, diz em quais casos se presume a culpa do causador do dano. Ou, quando não o diz expressamente, presume a culpa do agressor “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem[3]. Trata-se de um dever genérico in re ipsa de indenizar porque a obrigação de reparar decorre da coisa mesma, do fato em si, da própria atividade do agressor. Se a prova da culpa é indispensável nos casos em que a responsabilidade do agressor é subjetiva, na responsabilidade objetiva o agressor, presumivelmente culpado do dano, tem de provar que não houve o fato, não houve o dano, tratou-se de caso fortuito ou de força maior ou de culpa exclusiva da vítima.

Se o TST diz que a culpa da empresa não foi provada, admite, implicitamente, que se tratava de responsabilidade civil subjetiva. Fosse outro o tipo de responsabilidade, não falaria em culpa. Se se tratava de responsabilidade civil subjetiva, mas não fora provada a culpa da empresa, não havia razão jurídica para nenhuma condenação.

Atividade econômica

Embora o TST tenha admitido não ter havido prova da culpa da empresa no acidente, e, portanto, implicitamente, dito que por esse fundamento não havia dever de indenizar, o acórdão entendeu que o atropelamento do cão se inseria na atividade econômica da empresa. Isso, também, não é correto. O que se insere na atividade econômica de uma empresa é o risco normal do negócio, isto é, aquele risco que decorre naturalmente do seu meio de produção, aquele risco que a atividade cria pelo simples fato de existir como é. Como não há nenhuma lei dizendo que atropelar cachorros vadios em via pública se insere no risco de alguma atividade econômica produtiva, e não há, a priori, nenhuma responsabilidade civil objetiva do empregador, a empresa não poderia ser condenada por simples ilação.

Risco do negócio

O TST também disse que a empresa respondia sem ter tido culpa no acidente pelo “risco da atividade”. Ao tratar da responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade econômica, o art. 927, parágrafo único, do Código Civil, diz:

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

O caput do art. 927 fala em dano decorrente de ato ilícito. Ato ilícito é toda conduta humana, comitiva ou omissiva, contrária ao ordenamento jurídico. Para a lei, ato ilícito é o resultado da conduta de quem, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral[4]. A isso a doutrina chama “ato ilícito puro”. Mas pode haver ato ilícito quando a pessoa simplesmente exerce um direito, desde que o faça com abuso, excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”[5]. A isso, a doutrina diz “ato ilícito impuro”. Atropelamento de animal em via pública não é, necessariamente, ato ilícito. Pode decorrer de caso fortuito, ou força maior, culpa do animal ou de seu dono ou até mesmo de um ato lícito se, por exemplo, o motorista atinge o animal para evitar o atropelamento de uma criança, ou de pessoas num ponto de ônibus. Como a Corte disse que atropelamento de animais em vias públicas é risco da atividade, o fundamento legal para a condenação só pode ter sido o parágrafo único, do art.927, do Código Civil, mas esse parágrafo diz que, independentemente de culpa, também pode haver obrigação de reparar “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Notem que não é qualquer atividade que atrai responsabilidade objetiva de indenizar, mas apenas aquela que, normalmente desenvolvida pelo autor do dano, pode causar dano a terceiros.

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O risco previsto no parágrafo único, do art.927, do Código Civil, é apenas aquele que decorre naturalmente do processo produtivo da empresa. Não se refere ao fato de que a empresa, por algum dos seus prepostos, tenha cometido algum dano. Para esses casos, a disciplina está noutro artigo[6]. Ora, a atividade de uma empresa que se serve de motociclistas para entregar produtos ou prestar serviços não cria normalmente o risco. Pode ser que haja algum risco eventual e, nesse caso, poderá responder por culpa, mas não produz risco nenhum que a obrigue, necessariamente, a indenizar em todo e qualquer tipo de acidente.

Na indenização por ato ilícito puro[7], o ato nasce ilícito e gera consequências ilícitas que devem ser indenizadas; no ato ilícito impuro[8], o ato é lícito quanto ao seu conteúdo, mas ilícito quanto às suas consequências. Talvez este exemplo calhe. Imaginemos dois vizinhos vivendo em condomínio. Ouvir música é direito de ambos. Se um dos vizinhos decide ouvir música tarde da noite, em volume ensurdecedor, sem respeitar os limites da boa convivência, esse ato (ouvir música) é lícito pelo conteúdo (origem), mas ilícito pela consequência (horário e volume exagerado).

Se a empresa cujo empregado atropelou o cachorro não praticou qualquer ato ilícito puro nem excedeu manifestamente os limites de qualquer outro direito, a teoria do risco — convenhamos — não serve de fundamento à condenação.

Caso fortuito e força maior

Já que a culpa não fora provada nem era caso de responsabilidade objetiva pelo do risco da atividade, o único recurso possível para julgar a lide seria examinar se o evento lesivo (atropelamento do cão, do qual teria decorrido a sequela emocional alegada pelo empregado) decorrera de caso fortuito, ou de força maior. O art. 393, do Código Civil brasileiro, não faz diferença entre “caso fortuito” ou “força maior”. Diz, apenas, que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Para completar o raciocínio, seu parágrafo único diz que o caso fortuito ou de força maior se verifica no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. Explico melhor: se os efeitos do fato necessário (aquele que é a causa do evento danoso) não podiam ser evitados, ou impedidos, há caso fortuito, ou força maior, e não é possível imputar a alguém a sua culpa. Dou exemplo para aclarar o conceito: se alguém, em condições normais de tráfego, dirige um carro em meio a uma tempestade, e esse veículo é atingido por um raio e, por conta disso, se desgoverna e atinge outro veículo, não há culpa nem indenização. O raio é um fato natural cuja ocorrência danosa era impossível evitar ou impedir.

Refinando o conceito de caso fortuito, a moderna doutrina processual já fala em fortuito interno e fortuito externo. A obrigação de indenizar somente deixaria de existir nos danos decorrentes de fortuito externo, mas subsistiria nos de fortuito interno. No fortuito interno, o evento danoso é previsível e evitável. É o caso, por exemplo, de clientes assaltados ou furtados no interior de um banco. É do senso comum que o dinheiro circula com maior intensidade no interior de um banco do que em qualquer outro estabelecimento comercial. Sabendo disso, o estabelecimento bancário deve prevenir-se para evitar assaltos e roubos à clientela, inclusive no seu estacionamento e nas áreas próximas de suas agências. Trata-se de fortuito interno porque esses eventos são correlatos à atividade bancária, previsíveis e evitáveis com um pouco mais de diligência. Mas, se um cliente saca certa quantia em dinheiro e é assaltado no ônibus, a caminho de casa, não há responsabilidade do banco porque esse evento era impossível de prever e de evitar. Trata-se de fortuito externo.

O STJ confirma esta afirmação, verbis:

Processo civil. Recurso especial. Indenização por danos morais, estéticos e material. Assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo. Caso de fortuito externo. Exclusão de responsabilidade da transportadora.

1. A Segunda Seção desta Corte já proclamou o entendimento de que o fato inteiramente estranho ao transporte em si (assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo) constitui caso fortuito, excludente de responsabilidade da empresa transportadora.

2. Recurso conhecido e provido. (STJ, REsp 726.371/RJ , Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJ 05/02/2007).

Pondo o pingo no i

O atropelamento do cachorro era um caso de fortuito externo que a empresa não tinha condições de prever ou de evitar.

Assim:

  1. — se não foi provada a culpa da empresa;
  2. — se não era caso de responsabilidade civil objetiva;
  3. — se atividade da empresa não cria normalmente o risco;
  4. — se atropelar cachorro não se insere na sua atividade econômica; e
  5. — se não há fortuito interno,

Alguém me responda, por favor:

— Por qual fundamento a empresa foi condenada?


[1] Desembargador Federal do Trabalho no Rio de Janeiro.

[2] Processo nº RR-227-78.2014.5.03.0102

[3]Código Civil, art.927, parágrafo único.

[4] Código Civil, art.186.

[5] Código Civil, art.187.

[6] Código Civil, art.932,II.

[7] Código Civil, art.186.

[8] Código Civil, art.187.

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Sobre o autor
José Geraldo da Fonseca

Advogado - Veirano Advogados. Desembargador Federal do Trabalho aposentado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, José Geraldo. No meio do caminho tinha um cachorro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5789, 8 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48358. Acesso em: 3 dez. 2024.

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