Desdemocratização da democracia x Regulação autoritária do mercado

04/05/2016 às 11:01
Leia nesta página:

É preciso pensar a crise brasileira dentro da crise maior que está afetando todo Ocidente e ameaçando levar o mundo a uma nova guerra mundial.

A crise em andamento no Brasil é o desdobramento de uma crise mais profunda que afeta a Europa e os EUA. No centro dela está o conflito entre o “povo do mercado” (comunidade internacional de interesses privados que exige a predominância da justiça de mercado contra as interferências da justiça social) e os “povos dos Estados” endividados (cujas soberanias têm sido mais e mais limitadas em razão da predominância da ganância econômica privada sobre as políticas públicas redistributivas).

China e Rússia não foram afetados por esta crise por uma razão muito simples. A ausência ou deficiência da democracia nestes dois países permite aos seus governos liberdade de ação política para limitar a ambição do mercado. O ódio que os analistas do mercado devotam a Putin e ao Partido Comunista Chinês também tem, portanto, origem no conflito que está rasgando o tecido social no Brasil.

O mundo chegou, enfim, a um novo ponto de não retorno. Dois modelos distintos estão se opondo: de um lado o Estado autoritário pretende regular o mercado para proteger seus povos; do outro o mercado que pretende “desdemocratizar” as democracias ocidentais para obter mais lucro sacrificando as populações estatais. A grande questão é saber se a nova síntese deste conflito dialético-histórico será obtida com ou sem violência em larga escala.

No Brasil, o cenário é nebuloso. A vitória do golpe não é previsível, tampouco é certa a continuidade do governo Dilma Rousseff. A violência não pode ser inteiramente descartada, pois qualquer solução (exceto a convocação imediata de eleições gerais) poderá alimentar o rancor genocida dos derrotados, sejam eles golpistas ou petistas.

A grande imprensa brasileira culpa Dilma Rousseff e o PT em razão de um suposto excesso em gastos sociais. O assustador aumento das despesas da União com o Judiciário promovido recentemente por Eduardo Cunha não é objeto de questionamento. A hipocrisia da imprensa é evidente, inclusive porque ela retira outra questão do debate:

“...a crise financeira do Estado não se deve ao facto de a massa da população induzida por um excesso de democracia, ter retirado demasiado para si dos cofres públicos; pelo contrário, os maiores beneficiários da economia capitalista pagaram demasiado pouco, aliás, cada vez menos, aos cofres públicos. Se houve uma ‘inflação de reivindicações’ que levou a um défice estrutural das finanças públicas, esta registrou-se nas classes altas, cujos rendimentos e patrimônio aumentaram rapidamente nos últimos anos, sobretudo também devido às descidas de impostos a seu favor, enquanto os salários e prestações sociais nos estratos mais baixos da sociedade estagnavam ou até baixavam – uma evolução que, tal como referido, foi dissimulada através da inflação, do endividamento do Estado e do ‘capitalismo de crédito’, ou, pelo menos, legitimada temporariamente.” (Tempo Comprado, Wolfgang Streeck, editora Actual, Lisboa-Portugal, 2013, p. 120).

A toxidade do conflito no caso do Brasil está se tornando insuportável principalmente em razão da grande imprensa aprofundar a crise ao se colocar claramente em favor do “povo do mercado” e contra o povo brasileiro que elegeu Dilma Rousseff por maioria. Não existe a menor possibilidade de paz social quando a própria imprensa trabalha para destruir o espaço político onde a mesma existe.

Os EUA parecem apostar na vitória do golpe de estado no Brasil. O silêncio da Casa Branca neste caso é tão revelador quanto a embaixadora que foi nomeada para o nosso país depois de conduzir o golpe no Paraguai. Rússia e China observam, mas tudo indica que Pequim e Moscou não aprovam inteiramente a destruição da democracia brasileira, pois foi justamente ela que permitiu o crescimento das relações diplomáticas e comerciais entre o Brasil e aqueles dois países.

A construção do BRICS parece incomodar os EUA, principalmente depois que o novo bloco criou um banco que rivaliza com o FMI. Em razão de sua arquitetura este novo banco não pode ser controlado pelos EUA nem utilizado para impor políticas em favor do “povo do mercado”. Se o golpe de estado parlamentar-midiático-jurídico for bem sucedido, a missão atribuída a José Serra pelo Tio Sam será, segundo tem se dito, destruir este novo banco. O papel do Brasil dentro dos BRICS está sendo superestimado pelos golpistas e subestimado pelo governo?

Se o Brasil for retirado do novo bloco em razão da vitória do “povo do mercado”, o povo brasileiro será empobrecido, mas não sentirá imediatamente os efeitos da destruição do novo banco. De qualquer maneira, os demais países que compõe o bloco continuarão RICS e seus povos da Rússia, Índia, China e África do Sul (mais da metade da população mundial) não ficarão mais desprotegidos diante da ganância privada que vai “desdemocratizando” as democracias ocidentais em favor da tirania do mercado.

A China é credora dos EUA. O Kremlin rivaliza em poder militar com a Casa Branca. A interferência dos EUA no Brasil pode e deve ser contrabalançada, pelo menos até a normalização da situação política, mediante a tributação dos ricos e a destruição dos monopólios jornalísticos que se colocaram a favor do “povo do mercado” e contra o povo brasileiro. O PT vai exigir dos BRICS garantias maiores ao governo Dilma Rousseff? Como disse a Emir Sader pelo Twitter há alguns dias. Se eu for obrigado a escolher entre duas tiranias rejeitarei enfaticamente a ditadura mercado. Não faço parte de nenhuma comunidade financeira de interesses privados, mas nasci e continuarei sendo brasileiro. 

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos