Sumário: 1. Introdução; 2. Importância da personalidade jurídica; 3. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica; 4. Desconsideração x Despersonalização; 5. Considerações finais; Referências.
Palavras-chave: Direito civil. Direito empresarial. Pessoa jurídica. Sociedade empresária. Desconsideração da personalidade jurídica. Despersonalização.
Keywords: Civil Law. Business law. Legal person. Business company. Piercing the corporate veil. Depersonalization.
1. INTRODUÇÃO
Sendo o ser humano eminentemente social, para que possa atingir seus fins e objetivos, une-se a outros homens formando agrupamentos. Ante a necessidade de personalizar tais grupos, para que participem da vida jurídica, com certa individualidade e em nome próprio, a própria norma de direito lhes confere personalidade e capacidade jurídica, tornando-os sujeitos de direitos e obrigações. Segundo Maria Helena Diniz[1], para o atendimento dessas necessidades surgiram as chamadas pessoas jurídicas.
Trata-se de uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem nenhum vínculo, agindo por si só, comprando, vendendo, alugando etc., sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas físicas que dela fazem parte. Realmente, seus componentes somente responderão por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual. Essa limitação da responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é uma conseqüência lógica de sua personalidade jurídica, constituindo uma de suas maiores vantagens.[2]
No direito brasileiro, essa autonomia surgiu com a regra do art. 20 do Código Civil de 1916, que assim dispunha: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros”. Alerta Sergio Cavalieri Filho[3] que foram tantas as fraudes perpetradas por diretores e acionistas através da sociedade para obter vantagens pessoais, tantas as formas de prejudicar credores ocultando-se atrás da pessoa jurídica, tantas as vezes que a lei foi burlada e a obrigação descumprida com a ajuda da empresa em prejuízo de terceiros, que a doutrina e a jurisprudência construíram o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, a ser detalhado mais adiante.
Entretanto, antes de adentrar nesse estudo, e a despeito das fraudes e abusos cometidos através da pessoa jurídica, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a sua importância no nosso ordenamento jurídico e principalmente nas relações negociais atuais.
2. IMPORTÂNCIA DA PERSONALIDADE JURÍDICA
A fim de incentivar o desenvolvimento de atividades econômicas produtivas, produzindo empregos e incrementando o desenvolvimento econômico e social das comunidades, era necessário encontrar uma forma de limitação dos riscos nas atividades econômicas. Para tanto, se encaixou perfeitamente o instituto da pessoa jurídica, ou mais exatamente, a criação de sociedades personificadas.
Esclarece Marlon Tomazette[4] que as sociedades personificadas são, pois, uma das chaves do sucesso da atividade empresarial, proliferando-se cada vez mais como o meio mais comum do exercício das atividades econômicas. E arremata o referido autor:
“Trata-se de um privilégio assegurado aqueles que se reúnem e desenvolvem conjuntamente determinada atividade econômica. A atribuição da personalidade corresponde assim a uma sanção positiva ou premial, no sentido de um benefício assegurado pelo direito – que seria afastado caso a atividade fosse realizada individualmente – a quem adotar a conduta desejada”.
Desse modo, formada a sociedade empresarial pelo concurso de vontades individuais, que lhe propiciam os bens ou serviços, a consequência mais importante é o desabrochar de sua personalidade. Nesse sentido, destaca Rubens Requião[5]:
“A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade. Seu patrimônio, no terreno obrigacional, assegura sua responsabilidade direta em relação a terceiros. Os bens sociais, como objetos de sua propriedade, constituem a garantia dos credores, como ocorre com os de qualquer pessoa natural”.
No dizer de Fábio Ulhôa Coelho[6], “tem ela personalidade jurídica distinta da de seus sócios; são pessoas inconfundíveis, independentes entre si”. Como se percebe, a pessoa jurídica é um expediente do direito destinado a simplificar a disciplina de determinadas relações entre os homens em sociedade, sendo inegável a sua importância nos dias de hoje, sobretudo nas relações negociais.
3. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Conforme já ressaltado anteriormente, ante sua grande independência e autonomia devido ao fato da exclusão de responsabilidade dos sócios, a pessoa jurídica, muitas vezes, tem-se desviado de seus princípios e fins, cometendo fraudes e desonestidades, tendo provocado reações doutrinárias e jurisprudenciais que visavam a coibir tais abusos. Maria Helena Diniz[7] anota que esses foram os principais motivos para surgimento da figura da “desconsideração ou desestimação da pessoa jurídica”.
Marlon Tomazette[8] ainda destaca outros termos pelos quais é conhecido este instituto:
Surgido na jurisprudência anglo-saxônica a desconsideração lá é conhecida como ‘disregard of legal entity’ ou ‘disregard doctrine’, expressões por vezes usadas pelos autores brasileiros. Nos países da common law usam-se também expressões retóricas como levantar o véu da pessoa jurídica (‘piercing the corporate veil’). No direito alemão fala-se em ‘Durchgriff derr juristichen Person’, no direito italiano ‘superamento della personalitá giuridica’, no direito argentino ‘desestimácion de la personalidad’”.
Acolhido inicialmente pela doutrina e jurisprudência, o instituto foi sendo consagrado em vários diplomas legais – art. 28 do Código de Defesa do Consumidor; art. 2º, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho; art. 135, II, do Código Tributário Nacional; art. 4º da Lei n.º 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente); art. 50 do Código Civil.
Ada Pellegrini Grinover[9] ressalta que atualmente se verifica uma tendência cada vez mais frequente, em nosso direito, de desfazer o mito da intangibilidade dessa ficção conhecida como pessoa jurídica, sempre que for usada para acobertar a fraude à lei ou o abuso das formas jurídicas, rompendo com o esquema rígido da autonomia patrimonial das sociedades personalizadas.
Em linhas gerais, esclarecem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[10], pretendeu-se, com esta teoria, justificar a superação da personalidade jurídica da sociedade em caso de abuso, permitindo-se o reconhecimento da responsabilidade ilimitada dos sócios. Os referidos autores assim definem o instituto:
“A doutrina da desconsideração pretende o superamento episódico da personalidade jurídica da sociedade, em caso de fraude, abuso, ou simples desvio de função, objetivando a satisfação do terceiro lesado junto ao patrimônio dos próprios sócios, que passam a ter responsabilidade pessoal pelo ilícito causado”.[11]
Para Paulo Nader[12], “por desconsideração entende-se o ato de abstração da personalidade jurídica da pessoa jurídica e a concomitante extensão de responsabilidade aos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. Nessa mesma linha de pensamento, Rubens Requião[13] esclarece que tal doutrina visa a desconsiderar a personalidade jurídica, isto é, não considerar os efeitos da personificação, para atingir a responsabilidade dos sócios, arrematando que a intenção é “penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade do sócio”.
Nos precisos dizeres de Maria Helena Diniz[14], a desconsideração ou penetração permite que o magistrado não mais considere os efeitos da personificação ou da autonomia jurídica da sociedade para atingir e vincular a responsabilidade dos sócios, com o intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos de direitos cometidos, por meio da personalidade jurídica, que causem prejuízos ou danos a terceiros.
4. DESCONSIDERAÇÃO X DESPERSONALIZAÇÃO
No Brasil a expressão mais adequada para a denominação desse instituto é a desconsideração da personalidade jurídica, não sendo adequado falar-se em despersonalização. Vale ressaltar que não se trata de mero preciosismo terminológico, porquanto há uma grande diferença entre as duas figuras; despersonalizar é completamente diverso de desconsiderar a personalidade.
Despersonalizar significa anular a personalidade, o que não ocorre na desconsideração. Nesta, não se anula a personalidade, ao contrário, esta resta mais protegida; não se trata de despersonalização (anulação definitiva da personalidade), mas de simples desconsideração, retirada momentânea de eficácia da personalidade.
Nesse sentido é a lição de Marlon Tomazette[15], ao ressaltar essa diferença:
A disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto dentro de seus limites, a pessoa jurídica em relação às pessoas que atrás dela se escondem. A pessoa jurídica é um instituto muito importante para ser destruído, de modo que não deve ocorrer a despersonalização, a destruição da entidade pessoa jurídica, mas a suspensão dos efeitos da separação patrimonial in casu.
Trata-se de uma técnica que se aplica aos casos concretos específicos, daí falar-se em suspensão episódica e temporária. A pessoa jurídica continuará a existir para os demais atos, nos quais não se apresente um motivo justificado para aplicar a desconsideração. Por isso, falamos em desconsideração e não em despersonalização.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[16] também entendem ser necessária essa distinção, esclarecendo a diferenciação das duas expressões: “despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em função de fraude, abuso ou desvio de finalidade”.
Desse modo, claro está que a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade que serviu como escudo para a prática de atos fraudulentos, abusivos, ou em desvio de função não pode significar a sua aniquilação, tendo em vista que a empresa é um polo de produção e de empregos, gerando desenvolvimento à sociedade.
Destacam os referidos autores que o afastamento da personalidade deve ser temporário e tópico, perdurando, apenas no caso concreto, até que os credores se satisfaçam no patrimônio pessoal dos sócios infratores, verdadeiros responsáveis pelos ilícitos praticados. Ressarcidos os prejuízos, sem prejuízo de simultânea responsabilização administrativa e criminal dos envolvidos, a empresa, por força do próprio princípio da continuidade, poderá, desde que apresente condições jurídicas e estruturais, voltar a funcionar.[17]
Sergio Cavalieri Filho[18] ressalta que a desconsideração da pessoa jurídica não importa em considerar ou declarar nula a personalização, mas torná-la ineficaz para determinados atos: “importa dizer que a desconsideração é momentânea e para o caso concreto; retira-se o véu, alcança-se o patrimônio daquele que perpetrou o ato e, novamente, retorna-se o véu à origem. A pessoa jurídica continuará existindo normalmente”. Nessa mesma linha leciona Rubens Requião[19]: “não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la ineficaz para determinados atos”.
Maria Helena Diniz[20], aliás, antes da entrada em vigor do novo Código Civil e, portanto, da entrada em vigor do art. 50 do referido diploma legal, que trouxa a previsão da desconsideração da personalidade jurídica, já se preocupava em fazer essa distinção necessária, lecionando que
“a teoria da ‘desconsideração’ apenas declara que o órgão judicante está autorizado a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica, para coibir fraudes e abusos dos sócios que dela se valeram como escudo, sem importar essa medida numa dissolução da pessoa jurídica”.
Como se vê, a diferença entre a despersonalização e desconsideração da pessoa jurídica é que esta não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que tenha a sua autonomia patrimonial desconsiderada continua válida, assim como válidos são todos os demais atos que praticou. A separação patrimonial em relação aos seus sócios é que não produzirá nenhum efeito na decisão judicial referente àquele específico ato objeto da fraude. Esta é, inclusive, a grande vantagem da desconsideração em relação a outros mecanismos de coibição da fraude, tal como a despersonalização da sociedade. Este inclusive é o pensamento de Fábio Ulhôa Coelho[21], ao ressalvar que vários outros interesses giram em torno da empresa:
“Por apenas suspender a eficácia do ato constitutivo, no episódio sobre o qual recai o julgamento, sem invalidá-lo, a teoria da desconsideração preserva a empresa, que não será necessariamente atingida por ato fraudulento de um de seus sócios, resguardando-se, desta forma, os demais interesses que gravitam ao seu redor, como o dos empregados, dos demais sócios, da comunidade etc.”.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme visto, a pessoa jurídica é um expediente do direito que foi criado para simplificar a disciplina de determinadas relações entre os homens em sociedade, sendo a autonomia e a individualidade da sua personalidade jurídica fatores de suma importância nos dias de hoje, sobretudo nas relações negociais.
Diante dessa grande independência e autonomia, muitas vezes esse instituto foi utilizado de forma indevida, desviando-se de seus princípios e fins, tendo sido aproveitado para o cometimento de fraudes e abusos, o que ocasionou reações doutrinárias e jurisprudenciais que culminaram com o surgimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, hoje amplamente consagrada em nosso ordenamento jurídico.
Essa teoria autoriza o Poder Judiciário a ignorar, momentaneamente, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, e responsabilizar, direta, pessoal e ilimitadamente, o sócio por obrigação que, originariamente, cabia à sociedade, desde que ela tenha sido utilizada como expediente para a realização de fraudes e abusos.
Ressalte-se que muitas vezes tal instituto vem sendo denominado como despersonalização da pessoa jurídica, sendo inadequado denominá-lo desta maneira. Por despersonalização entende-se a anulação ou dissolução definitiva da personalidade da sociedade, não sendo essa a medida mais adequada a ser tomada no caso de abuso ou fraude cometida pela pessoa jurídica, tendo em vista que ela é um pólo de desenvolvimento de empregos e geração de rendas.
Do contrário, a teoria da desconsideração não visa a destruir a pessoa jurídica, que continua a existir, sendo desconsiderada apenas no caso concreto. Não se questiona o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade da dos sócios, mas, simplesmente, coíbe-se o desvio na sua função, evitando-se que seja utilizado pelos sócios como forma de encobrir distorções em seu uso.
Trata-se de uma técnica que se aplica a casos concretos e específicos, daí falar-se em suspensão episódica e temporária, em atenção ao princípio da continuidade da atividade empresarial. A pessoa jurídica continuará a existir para os demais atos, nos quais não se apresente um motivo justificado para aplicar a desconsideração. Por isso, o mais adequado seria falar-se em desconsideração e não em despersonalização.
REFERÊNCIAS
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.
COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de direito comercial. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume I: parte geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
NADER, Paulo. Curso de direito civil, parte geral – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2003.
TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3104>. Acesso em: 09 abr. 2010.
Notas
[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 142.
[2] Idem Ibidem, pg. 142.
[3] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, p. 300.
[4] TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3104>. Acesso em: 09 abr. 2010. (artigo da internet não paginado)
[5] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 303.
[6] COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de direito comercial. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 99.
[7] Op. Cit., p. 172.
[8] Op. Cit. (artigo da internet não paginado)
[9] GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 234/235.
[10] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume I: parte geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 227.
[11] Idem Ibidem, pg. 228.
[12] NADER, Paulo. Curso de direito civil, parte geral – vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 245.
[13] Op. Cit., p. 377.
[14] Op. Cit., p. 173.
[15] Op. Cit. (artigo da internet não paginado)
[16] Op. Cit., p. 230.
[17] Idem Ibidem, pg. 229.
[18] Op. Cit., p. 304.
[19] Op. Cit., p. 378.
[20] Op. Cit., p. 175.
[21] Op. Cit., p. 115.