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Infração (crime) de responsabilidade e impeachment

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3.    IMPEACHMENT

Sob perspectiva histórica, é possível apontar que o instituto do impeachment ou impedimento tem sua origem remota na Grã-Bretanha medieval como processo advindo de prática de fato definido como crime em que o parlamento decidia o destino de um ministro (ou qualquer outro súdito) e podia sancioná-lo com a perda do cargo e penas corporais.53

No século XVIII, entretanto, passou a ser admitido por fato contrário ao Estado quando “se iniciou sua trajetória já nitidamente política, independentemente de uma caracterização a priori penal”54, inclusive com incidência por conduta de ilícito político de mau desempenho no exercício do cargo.

Diversamente da previsão inglesa, o impeachment nos Estados Unidos da América foi criado com viés político, tendo finalidade principal de sancionar a autoridade e não o homem.55

No Brasil, o impeachment, como consequência jurídica, para além de sua fonte primitiva (Constituição de 1824 e Lei de 1827), teve base legal na Constituição Republicana de 1891 e Leis 27 e 30 de 1892, agora com natureza eminentemente política.

Na atualidade, o instituto vem disciplinado na Constituição Federal de 1988 (artigos 85 e 86) e na Lei 1.079 de 1950, que o regulamenta.

No que tange aos aspectos conceituais e referentes à natureza jurídica do instituto sob apreço, deve ser ressaltado que, no Brasil, adere-se apenas em parte ao que fora estipulado na Convenção da Filadélfia, sendo criado aqui – tanto no aspecto processual como material – um modelo próprio de impeachment. Este é, pois, termo designativo tanto do processo como seu efeito.

Do ponto de vista processual, o impedimento vem instaurado na Câmara Legislativa pela suspeita da prática de infração de responsabilidade e seu desfecho ocorre no Senado Federal, cuja competência é julgar e aplicar a sanção correspondente (art. 86, CF; arts. 14-38, Lei 1.079/1950). A iniciativa do procedimento – a denúncia do presidente da República por infração (“crime”) de responsabilidade durante a vigência do cargo pode ser feita por qualquer cidadão, e significa verdadeiro exercício da cidadania (art. 14, Lei 1079/1950).

Nesse sentido, o referido processo gera resposta jurídica outra de que a sanção penal e, ao se examinar a infração (“crime”) de responsabilidade do presidente da República, fica clara a ausência de traços característicos da verdadeira punição  criminal
– pena ou medida de segurança.56 Tal conclusão importa na medida em que o reconhecimento da diferença nuclear entre os ilícitos necessariamente gera modalidades diversas de consequência jurídica.

Desse modo, desvela-se a importante separação formal entre ilícito de responsabilidade  e  crime  propriamente  dito  (ilícito  penal),  que  somente apresentam algum atrelamento por questão de terminologia legal defeituosa, consagrada com o passar do tempo.

No que toca então à consequência jurídica a ser imputada ao sujeito passivo do aludido processo, e sua suposta natureza criminal, sublinha-se que o impedimento ao exercício do cargo presidencial e a perda do mandato em curso não encerram finalidades próprias da pena criminal (v.g., não há efeitos de prevenção geral e de prevenção especial, nem reparação do dano causado, e sequer ressocialização do impedido. Além do mais, não está afeto seu julgamento ao Poder Judiciário).57 Patenteia-se, não obstante, a presença da consequência reafirmação do ordenamento jurídico.

No caso da prática de infração político-jurídica (constitucional-administrativa), opera-se apenas a retirada do ocupante do cargo presidencial, impondo-se obstáculo ao exercício do mandato que, diferentemente da seara criminal, não prevê limitação ao exercício de direito fundamental.

Também, a consequência jurídica de natureza sancionatória (impeachment) não comporta critério mínimo, máximo ou outro elemento quantificador, bastando a descrição constitucional precisa e incontornável.

Para além, o instituto em exame objetiva amplitude maior do que qualquer outro pretendido, qual seja, acionar freios e contrapesos na proteção58 dos elementos essenciais que compõem o Estado democrático de Direito (tais como, separação de poderes, exercício de direitos fundamentais, probidade na Administração Pública, lei orçamentária etc.).

Ainda que considerada sanção de cunho político-jurídica (constitucional- administrativa), frise-se, não quer isso dizer sanção meramente disciplinar ("pena disciplinar"), como aleatoriamente se tem aventado. O presidente da República, enquanto tal, não se subordina a superior hierárquico, como se funcionário público comum fosse. É ele o agente político supremo do país, com elevadas atribuições e responsabilidades.

Em sendo instrumento jurídico legítimo de salvaguarda contra o abuso de poder do presidente da República, o fato de o legislador ter previsto a cumulação de sanções (política-administrativa e criminal) indica maior preocupação com a gestão da coisa pública, como valor político e bem jurídico a ser tutelado. Isso vale dizer: não se deve tolerar nenhum atentado à ordem constitucional (arbitrariedade proibida). Proscreve-se formalmente determinado tipo de poder, entendido como mera expressão da vontade e força do seu detentor.

Dada a concentração de poder político e administrativo pelo presidente da República, apresenta-se indispensável o estabelecimento de critério limitativo para a atividade do chefe do Executivo, até porque a democracia obriga à lei positiva para regular e conter o poder político.59

É certo que a medida em comento deve ser aplicada quando a conduta do presidente da República descumprir ou violar deveres que são inerentes ao exercício do cargo. Aliás, lembra Rui Barbosa, ao tratar do presidencialismo, que “mais vale, no governo, a instabilidade que a irresponsabilidade”, e que a ausência de previsão jurídica do impeachment ocasionaria um poder “irresponsável e por consequência, ilimitado, imoral, absoluto”.60

Como se tem acentuado, não basta a mera conquista da maioria de votos no pleito eleitoral, faz-se imperativa a mantença de condutas legalmente hígidas com o fim de preservar a legalidade e a legitimidade democráticas por aquele investido do cargo presidencial e no cumprimento de suas funções.

Adverte-se sobre a falta de parâmetros à atuação do chefe do Poder Executivo em democracias de países subdesenvolvidos, como o Brasil, ao se indagar: “Resta saber, mormente nos países presidenciais de estrutura subdesenvolvida, até onde se poderá admitir essa expansão jurídica dos poderes do presidente da República, sem acoimar de ‘ditadura constitucional’ os Estados”.61

A resposta está gizada na forma de interpretação e aplicação do arcabouço legal relativamente ao processo e sua consequência.

Vale a pena recordar que o comportamento infracional de responsabilidade consiste em “atentar contra a Constituição por uma forma que o verbo atentar bem exprime: uma contrariedade acintosa. Uma declaração de inadaptabilidade do presidente da República aos valores democráticos da Constituição em seu conjunto. Uma contrariedade à própria inteireza da Lei Maior, tão objetivamente grave e subjetivamente censurável que chega às raias da afronta. Da conspurcação ou defraudação da ética da responsabilidade que é de se exigir de um presidente da República”.62 Assim, quebranta- se de igual modo a lei infraconstitucional.

Justamente por dever atuar segundo o ordenamento jurídico, conformador da existência e da organização do Estado de Direito, que a gravidade do atentado praticado pelo mandatário presidencial acaba por reportar insegurança jurídica e ilegalidade no exercício da função pública que lhe é própria.
A sabendas, cumprir a lei é dever de todo cidadão, especialmente do presidente da República. Com isso, desobedecê-la objetivamente sob alegações diversas, muitas vezes pouco condizentes com a preservação do Estado de Direito e da Constituição, não tem o condão de amparar a legalidade ou a legitimidade do cargo ou função exercida.63

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Por essa razão, a consequência do impeachment, consectário à infração (“crime”) de responsabilidade, vem a ser a resposta ou medida coercitiva acertada quando vem a ser demonstrada a incorreção do ocupante do mais alto cargo da República na prática de atos de governo, consolidando-se a legitimidade proveniente do pleito eleitoral tão somente como um dos elementos imprescindíveis ao exercício pleno da presidência da República.64


SÍNTESE CONCLUSIVA

Em remate, entende-se que o denominado “crime” de responsabilidade elencado na Constituição Federal e regulamentado na Lei 1.079/50 designa, na verdade, infração político-jurídica (constitucional-administrativa), de natureza mista, própria e inconfundível.

Porém, impõe reconhecer tratar-se de infração peculiar (ou sui generis), que não se confunde com a disciplinar, nem com a criminal, o que implica consequência político- jurídica igualmente híbrida, compatível com o antecedente preceito típico.

Para logo, vê-se que o impeachment, como sanção política-constitucional- administrativa, e conforme ao tratamento gizado no texto constitucional, constitui-se, na realidade, em efetiva aplicação da teoria dos freios e contrapesos (checks and balances) inerente ao Estado democrático de Direito contra ato de governo abusivo do mandatário presidencial no exercício de suas funções.

Por derradeiro, destaca-se que entre as tarefas da doutrina se encontram a de ordenar e esclarecer o conteúdo das leis, bem como a correção e o refinamento da linguagem técnico jurídica.

Diante disso, e de lege ferenda, tem-se como necessária a alteração da atual terminologia constante na Constituição Federal, na Lei n. 1079 de 1950 e no Código de Processo Penal, para agasalhar termo mais apropriado e menos confuso: infração ou ilícito de responsabilidade, no lugar de “crime” de responsabilidade.


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Sobre os autores
Diego Prezzi Santos

Doutor em Direito pela Faculdade Autônoma de São Paulo (FADISP). Mestre em Direito pelo programa de mestrado em ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Pós-graduado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor do programa de pós-graduação na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor da Fundação Escola do Ministério Público (FEMPAR). Professor na Faculdade Arhur Thomas (FAAT). Professor no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor no Instituto Catuaí de Ensino Superior (ICES). Parecerista e avaliador em revistas científicas. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado com experiência em direito penal e processo penal.

Luiz Regis Prado

Professor Titular de Direito Penal . Universidade Estadual de Maringá (UEM); Professor Titular do Programa de Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Pós-doutorado em Direito Penal. Universidade de Zaragoza (Espanha); Pós-doutorado em Direito Penal Ambiental Comparado. Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França). Doutor e Mestre em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor honoris causa em Direito. Universidade Nacional de San Agustín (Peru). Professor visitante do Instituto de Direito Comparado e Penal da Universidade de Firenze (Itália); da Universidade Robert Schuman de Strasbourg (França); da Universidade de Zaragoza (Espanha), da Universidade Nacional de Educação à Distância; da Universidade de Castilla-la-Mancha (Espanha). Consultor jurídico da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Diego Prezzi ; PRADO, Luiz Regis. Infração (crime) de responsabilidade e impeachment. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4715, 29 mai. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48934. Acesso em: 22 dez. 2024.

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