« Tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser. Il faut donc que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir » (Montesquieu, De l’esprit des lois, 1748).1
RESUMO: busca-se neste estudo analisar a natureza jurídica dos denominados “crimes” de responsabilidade previstos tanto na Constituição Federal de 1988, como na Lei 1.079 de 1950. Para tanto, versa-se sobre a forma republicana de governo, o Estado democrático de Direito e sobre os deveres que, aliados ao cumprimento das leis e da Constituição Federal, conferem legalidade à atuação do presidente da República. A diferença entre ilícito penal (crime) e infração de responsabilidade, bem como sua consequência jurídica são também destacadas.
PALAVRAS-CHAVE: república; democracia, estado de direito, presidencialismo; crime de responsabilidade; impedimento.
SUMÁRIO: CONSIDERAÇÕES GERAIS 1. REPÚBLICA E ESTADO DE DIREITO 2. INFRAÇÃO (CRIME) DE RESPONSABILIDADE 3. IMPEACHMENT. SÍNTESE CONCLUSIVA. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONSIDERAÇÕES GERAIS
A realização das hipóteses descritas no artigo 85 da Constituição Federal e na Lei 1079/1950 (lei do impeachment ou impedimento) lesa ou coloca em risco bens jurídicos ligados à própria existência e conservação do Estado democrático de Direito.
Por essa razão, a Constituição Federal brasileira coíbe a prática de infrações (“crimes”) de responsabilidade, que envolvem deveres essenciais relativos ao exercício da chefia do Poder Executivo Federal, adstritos a uma variada gama de fatores e institutos. Conquanto de grande relevância, a temática é confusa do ponto de vista técnico jurídico, e alguns esclarecimentos se fazem indispensáveis ao real conhecimento do controle político e jurídico versando sobre a função e correspondente responsabilidade do presidente da República.
Nessa linha de pensamento, calha tracejar algo sobre as noções de república, presidencialismo e Estado de Direito, com objetivo de discernir aspectos nucleares relativos à infração (“crime”) de responsabilidade e consequente impedimento, como limites demarcadores do exercício correto e lícito da atividade presidencial.
Daí que a real natureza jurídica do intitulado “crime” de responsabilidade deve ser vista em se examinando as diferenças existentes entre crime – injusto penal culpável - e ilícito de caráter diverso, capazes de revelar as propriedades de cada um, o que vai dar lugar à conformação de uma espécie peculiar de infração.
É preciso então destacar as diferenças formais vincadas entre as modalidades de injusto, no desiderato de fazer emergir seus consequentes teóricos e práticos, visando o mais correto entendimento da matéria.
Para tanto, além da análise dos deveres inerentes ao exercício do cargo presidencial, no Estado democrático de Direito, deve-se conhecer a essência do ilícito (“crime”) de responsabilidade; examinar se cabível na matéria a aplicação de princípios, teorias, métodos e regras interpretativas, conceitos e institutos de outra seara, inclusive penal, com a devida segurança jurídica, como emergido em inúmeras e variadas ocasiões. O cerne deste estudo, portanto, radica na perquirição sobre a lídima natureza jurídica dos tipos de ilícito de responsabilidade e sua consequência jurídica, epigrafados no artigo 85 da Constituição Federal e regulados na Lei n. 1.079 de 1950.
1. REPÚBLICA E ESTADO DE DIREITO
Como conquista sócio-política e jurídica, os dizeres “República Federativa do Brasil” contêm – além do nome oficial do Estado e país – a forma de Estado, que é federativa e de governo, que é república.4
Este último conceito, res publicum, teve origem, ainda na Roma antiga, nos exatos contornos apresentados pelo tribuno romano Cícero ao narrar os diálogos entre, principalmente, Cipião Emiliano, o Africano ou o Jovem, e seu amigo Lélio, que alcançava o sentido de república como coisa do povo (Est igitur res publica, res populi).5 Como base de tal constructo, Cipião Emiliano narrava que “a causa dessa agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum”.6
Em oposição à monarquia, a república exige a liberdade com a qual é dotada cada pessoa7 e justamente esta última característica torna a responsabilidade do governante, a mais importante de todas, pois visa o bem comum. Ao acentuar o interesse comum e a conformidade à lei (juris consensu) como elementos distintivos da república, erige-se o direito como instrumento de justiça.8 Assim, é antes de tudo e desde sempre a legitimação popular do poder de governar.
Tal forma de governo vem instituída desde a Constituição brasileira de 1889, como cláusula perpétua, ipsis litteris: “Art.1º A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa [...], e constitue-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil”. O regime presidencialista, entretanto, “não foi resultado de elaboração ponderada, de construção racional e cimentada com o tempo – ‘o regime presidencialista não foi instituído no Brasil depois de uma propaganda que tivesse mostrado suas vantagens e desvantagens. Ele apareceu um dia, num projeto de Constituição decretado pelo Governo Provisório. Ninguém o discutiu. Foi aceito, por assim dizer, em silêncio. A verdade, é esta: a propaganda republicana se fez sem que a maioria pensasse no regime presidencial: não se sabia o que era, não se falava nele, ou ainda: Assim, a instituição do presidencialismo entre nós se fez por surpresa. Por surpresa e graças a ignorância geral em que todos estavam a seu respeito. Não foi uma escolha consciente da Nação’”.9
Não obstante, a conservação do sistema presidencial nas constituições brasileiras acaba por sufragar também o estabelecimento do princípio republicano de governo de caráter formal e material,10 impositivo de entidade pública de poderes repartidos e legitimados.11
Acerca da ideia de república, sublinha-se que a “Constituição brasileira proclama o ideal republicano, não só por acentuar logo no artigo 1º que o Brasil é uma República, mas também por adotar a transitoriedade no exercício do poder, a legalidade (governo de leis e não de homens), a moralidade e a eficiência como pautas constitucionais direcionadas aos diversos agentes do Estado (servidores, funcionários públicos e mandatários de cargos eletivos) ”.12
O conceito de república tem reforço de significado na noção de Estado democrático e social de Direito. Em decomposição conceitual, vê-se que Estado de Direito (oposto ao Estado absoluto) vem a ser aquele “cujo ordenamento jurídico positivo confere específica estrutura e conteúdo a uma comunidade social, garantindo os direitos individuais, as liberdades públicas, a legalidade e a igualdade, mediante uma organização policêntrica dos poderes públicas e a tutela judicial dos direitos”.13 Assim, o mérito do Estado de Direito é ter instituído uma garantia constitucional de direitos e liberdades fundamentais e, filosoficamente, baseado esta garantia sobre o misto naturalidade e racionalidade própria ao ser humano.14 Sua estrutura repousa apenas na lei, preenchida com participação livre no sistema político, conferindo legitimidade democrática e exigência de respeito aos princípios fundamentais do Estado de Direito, resultando democrático e social quando se pretende desenvolver liberdade e igualdade.15 Enfim, o Estado de Direito deve ser referência de garantia da liberdade e demais direitos fundamentais e de limitação ao exercício do poder estatal.
Em tal contexto, vigora a irrestrita submissão à Constituição, às leis (legalidade da Administração Pública), como regras essenciais e inarredáveis, enquanto condição de segurança e paz jurídica16 para que os Poderes atuem em prol do povo.
A partir dessa constatação deflui (especialmente da ideia de Estado social) a necessidade de um Executivo mais forte17 para atuar em favor da população, gerando, por ilação óbvia, maior controle e limitação legal àquele que detém a presidência da República, cargo naturalmente estabelecido para se conformar como executante da norma constitucional e das leis18, dada a vigência da separação entre os poderes.19
O domínio político que aparece sob a forma de Estado, como unidade de decisão e poder político, há de estar sempre submetido à Constituição e não faculta acordo lenitivo. Modernamente, em sede democrática, o acesso ao cargo de chefia do Poder Executivo não depende de linhagem familiar e sim do preenchimento de condições constitucionalmente estabelecidas20 e eleição. No entanto, não são apenas condições prévias ao registro da candidatura e o voto que ganham importância no jogo democrático. Mas, outra condição fundamental há para o exercício pleno do mandato: concernente ao estrito cumprimento da legalidade democrática, do imperativo da Constituição e das leis como condição indispensável à existência do Estado democrático de Direito.
A república presidencialista, de inspiração norte-americana (Convenção da Filadélfia de 1787), dá lugar ao presidente responsável por seus atos, limitado pela lei -feita sem sua participação direta21-, e cargo temporário22, aspectos devidamente adotados no Brasil.
A propósito, república e responsabilidade são indissociáveis, interpenetram-se mutuamente. É dizer: república implica responsabilidade do agente político pelos atos praticados. A função presidencial tem feição eminentemente política, daí sua correlata responsabilidade. Não é outro o feliz asserto de que “é da essência do regime republicano que quem quer que exerça uma parcela do poder público tenha a responsabilidade desse exercício; ninguém desempenha funções políticas por direito próprio; nele, não pode haver invioláveis e irresponsáveis, entre os que exercitam poderes delegados pela soberania nacional”.23
Não obstante deva primar pela boa relação com os membros do Congresso, o presidente da República tem autonomia para conquistar e se manter no cargo mediante eleição popular direta ou indireta, não contando, em regra, com impedimentos, eleições outras, sabatinas ou aceites daqueles que compõem o Poder Legislativo.
A inexistência de um chefe do Parlamento ou de um monarca torna o presidente da República uma figura híbrida, conatural ao sistema presidencialista, tanto chefe de Estado como chefe de Governo, com maior relevância político-administrativa e, no âmbito internacional, representativa24, além de agregar a chefia da Administração Pública Federal.
Diante de tão grande cúmulo de poder, a responsabilidade decorrente do cumprimento do dever jurídico advindo do exercício da função não pode ser menor. A respeito, verbera-se com propriedade que “a responsabilidade do presidente da República é substancial no sistema brasileiro. Só ele tem a direção política do Poder Executivo. Na direção administrativa é auxiliado pelos ministros de Estado, que respondem pelos seus próprios atos e pelos crimes conexos com os do presidente da República. Regime de poderes limitados e definidos, o sistema presidencial necessita de um contrapeso, que até certo ponto possa, em dados momentos, neutralizar a ação do titular do Executivo. Não era crucial estabelecer a independência deste e enfeixar nas suas mãos tão grande soma de poderes, sem cogitar ao mesmo tempo de lhe refrear a inclinação para o abuso com a medida capaz de fixar sua obediência aos preceitos constitucionais e induzi-lo a uma gestão moralizada e prudente. Por isto, ad instar (...), a nossa lei básica preceitua a responsabilidade do presidente, por meio de um processo perante juízo especial e cercado de garantias excepcionais”.25
As atribuições do presidente da República estão contidas na Constituição Federal - Título IV (Da Organização dos Poderes), Capítulo II (Do Poder Executivo) seções I e II, estando o conjunto de responsabilidades inserido na seção III. O artigo 85 define de modo amplo os denominados crimes de responsabilidade do chefe do Poder Executivo (não aplicável ao vice-presidente), passíveis de processo e julgamento, seguindo o ritual previsto nos dizeres do artigo seguinte (art. 86 da CF) e na Lei 1.079 de 1950, com o estabelecimento de responsabilidade político-jurídica perante o Congresso Nacional.26
A Lei 1079/1950 tipifica condutas de responsabilidade político-jurídica (constitucional/administrativa), e regula o procedimento a ser adotado com objetivo de impor obstáculo ao exercício do cargo e consequente perda do mandato presidencial. Tal fato conclusivo ressai da ofensa de um ou mais dos deveres jurídicos consagrados na Constituição Federal, e vinculados diretamente à atuação do presidente da República. É dizer: no Estado democrático de Direito, a legalidade e a legitimidade do poder de governo dependem expressamente do cumprimento das normas constitucionais e infraconstitucionais.27
Explica-se, nesse sentido, que “a legalidade de um regime democrático, por exemplo, é seu enquadramento nos moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática”.28
Para situações excepcionais, a Carta prevê medidas também de exceção, instituídas no Título V (arts.136-141, CF), sempre conforme as diretrizes normativas constitucionalmente postas, como por exemplo, o papel decisivo do Congresso Nacional, e nada para além disso. Se assim não for, há abusiva e ilegal atividade do presidente da República, que extrapola os ditames da própria Constituição, e dá ensejo à infração (“crime”) de responsabilidade.
A república presidencial no contexto do Estado democrático de Direito não é assim, frise-se, um regime de ditatura legal do Poder Executivo, não é fundadora de irresponsabilidade sistemática, não importando as tergiversações de ordem política e jurídica emitidas a respeito.
Justamente, e a propósito, calham aqui as palavras de advertência de Rui Barbosa: o presidente da República é “‘o poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos negócios, o poder da força’”.29
A fortiori, emerge o papel do Poder Legislativo no exercício da potestade fiscalizadora e delimitativa do Poder Executivo, com o escopo de corrigir eventuais desvios e abusos. O princípio da separação de poderes constitui explicação do preponderante valor formal atribuído ao Poder Legislativo, que consagra a supremacia da Constituição e do ordenamento legal.
O Congresso Nacional constitui a verdadeira base da democracia, e não pode ser “uma cratera extinta, nem mera sombra da representação nacional”.30
2. INFRAÇÃO (CRIME) DE RESPONSABILIDADE
Como imperativo da forma republicana de governo e do presidencialismo, tanto a Constituição Federal (art.85, CF) como a aludida Lei 1079/1950 (art.2º) carregam expressamente dispositivos que visam a responsabilizar o presidente da República, no exercício de suas funções, pela prática de comportamentos lesivos a bens e interesses gerais (coisa pública). Por consequência, proíbe-se a continuidade do exercício do mandato, com a “perda do cargo, com inabilitação, até 8 (oito) anos, para o exercício de qualquer função pública”.31
As infrações em referência operam como instrumentos de contenção na salvaguarda da coluna vertebral do Estado de Direito: a separação dos poderes, as instituições democráticas, o livre exercício dos direitos, a segurança e probidade, o respeito às diretrizes normativas orçamentárias, entre outras situações imprescindíveis à estabilidade política, econômica e jurídica do país.
Com alguma dessemelhança entre o vetor constitucional e o regulado na lei, os textos atuais seguem uma estrutura legal bastante antiga, e que se manteve ao longo do tempo apesar de seus defeitos.
Em termos cronológicos, a inicial positivação da expressão “crimes” de responsabilidade no Brasil é vista na Lei de 15 de outubro de 1827, que disciplinava a responsabilidade dos Ministros, Secretários de Estado e dos Conselheiros de Estado, além do procedimento para apuração dos crimes de responsabilidade. Esta lei tinha conteúdo criminal.
Ao depois, o Código Criminal do Império de 1830 consignava expressamente o seguinte:
Art. 308. “Este Codigo não comprehende: 1º Os crimes de responsabilidade dos Ministros, e Conselheiros de Estado, os quaes serão punidos com as penas estabelecidas na lei respectiva”.
Na esteira da Lei de 1827, o Código Criminal de 1830 versava sobre os Ministros e Conselheiros do Estado32 (não sobre o imperador – vigorava na época a premissa de que o rei não erra), como eventuais autores do crime de responsabilidade. 33
Mais tarde, o “Código Penal dos Estados Unidos do Brazil” de 1890 inovava ao tratar dos crimes de responsabilidade aplicáveis ao presidente da República:
Art. 6º. “Este codigo não comprehende:
a) os crimes de responsabilidade do Presidente da República”.
A respeito, anota-se que o artigo 6 do Código Penal de 1890 foi anterior à própria criação da espécie constitucional estabelecida na Constituição de 1891, sendo a primeira vinculação legal brasileira entre a figura do presidente da República e os “crimes” de responsabilidade.
É de registrar-se ainda que, mesmo contida em códigos penais (inclusive, no Código de Processo Penal) e em leis especiais, a expressão designava, em geral, crimes funcionais e infrações político-disciplinares.
Com efeito e lamentavelmente, “desde o primeiro reinado, a locução defeituosa se insinuou na linguagem legislativa e não mais foi abandonada”.34
Essa origem, por assim dizer, penal da locução é geradora da equivocidade que ainda hoje consagra o referido conceito (“crime” de responsabilidade), e que muito problematiza seu estudo.35
Apoucadas diferenças surgem posteriormente na Constituição de 1934 (inspirada em Weimar), com previsão similar na disciplina da matéria, inclusive a manutenção da ordem dos dispositivos.36
A Constituição de 1946 trazia modificação para ensejar o “crime” de responsabilidade quando o presidente da República atentasse contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes Constitucionais dos Estados”37, seguido igualmente nas Cartas de 196738 e de 1988.
O atual dispositivo constitucional (art.85, CF) é regulamentado pelos artigos 5 a 12 da Lei 1.079 de 1950, no tocante ao presidente da República, onde se tipificam atuações de caráter misto, político-jurídico (constitucional-administrativo) e não propriamente criminal.
Tal desalinho é visto também no Decreto-Lei 201 de 1967 que nomeia crimes comuns ou funcionais como “de responsabilidade” no caso de infrações praticadas por prefeitos municipais39.
Na Constituição Federal, em vigor, aparece o termo “crime” várias vezes com sentidos bastante diversos, o que denota não ser a terminologia fator decisivo para compreensão do injusto de responsabilidade.40
Apesar da terminologia utilizada, os artigos 52 e 102 da Constituição, por exemplo, tratam de infrações bem diferentes daquelas constantes nos artigos 85 e 86. As primeiras (arts.52 e 102, CF) versam sobre crime funcional, e as últimas sobre ilícito político-jurídico, ressaltando-se que “o crime de responsabilidade não se confunde com o crime funcional, embora este possa constituir face daquele quando o detentor do cargo age contra o dever imposto pela função”.41
Em sequência, no predito artigo 85 da Constituição, o rol de atividades (preceitos legais) que enseja responsabilidade presidencial comporta os atentados contra a existência da União (indissolúvel no dizer do art. 1° da CF), o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das Unidades da Federação, o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais (Título II - Direitos e Garantias Fundamentais, principalmente nos arts. 5 a 17, CF), a segurança interna do país, a probidade na Administração (Lei 8.429 de 1992 - improbidade administrativa), a lei orçamentária (art. 165 a 169 da CF, principalmente) e o cumprimento das leis e decisões judiciais.
No artigo 85 da Constituição Federal e na Lei 1079/1950 constam a ambígua e enganosa expressão “crimes” de responsabilidade.
Lastreados no desazo legislativo – “crimes” de responsabilidade -, autores há que se debruçam sobre o tema, definindo tais ilícitos como de ordem ética, política e, principalmente, criminal, o que salpica nódoas, infama, tanto as análises doutrinárias como suas aplicações práticas.
O enfrentamento do tema, dotado de evidente dubiedade, tem mostrado, no entanto, outro viés. Isto é: o não ser ele (“crime” de responsabilidade) propriamente crime ou ilícito penal, mas sim espécie complexa e distinta.
Para deslindá-lo, faz-se necessário exame mais profundo e abarcante, além da primeira ou superficial impressão, de perspectiva meramente subjetiva ou de sentido partidista.
No âmbito doutrinário, firma-se como missão da lei penal a defesa de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens, e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos custosa, com sanções capazes de séria restrição aos direitos fundamentais.42
A suma importância lei penal para o homem e a sociedade democrática exige ser ela aplicada tão somente pelo Poder Judiciário, por ocasião de sua transgressão (= normas penais incriminadoras). Apresenta-se sempre como a última ratio legis.
Nesse contexto, evidenciam-se significativas discrepâncias entre crime – ilícito penal culpável - e “crime” (ilícito) de responsabilidade, haja vista que este último tem sua fonte no descumprimento do dever atribuído constitucionalmente ao chefe do Poder Executivo durante o regular exercício do mandato que, como implicação natural do regime presidencialista,43 há de atuar de forma política e administrativamente cingida pela Constituição Federal e pelas leis. Na verdade, o presidente da República descumpre obrigação estatuída nos textos constitucional e legal, violando-os.
Por isso mesmo que a “permanência de altos funcionários em cargos cujas competências, se mal exercidas, podem colocar em risco não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição os princípios constitucionais e a própria estabilidade das instituições e a segurança da nação, dá nascimento à necessidade de uma medida também destinada a apeá-los do poder”.44
O crime (ilícito penal) não prescinde jamais da ação ou omissão transgressora da norma penal incriminadora, ao passo que a infração de responsabilidade resulta da violação do contido na norma constitucional e em lei especial de caráter não penal.45 Neste último, o processo e o julgamento não se verificam perante o Poder Judiciário, e sim perante a Câmara Federal e o Senado (Congresso Nacional), transformados em tribunal político-administrativo.
De seu turno, ressalta à evidência que o impedimento (consequência da infração de responsabilidade) “tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos”.46
Diante dessas circunstâncias, compete, por exemplo, ao Congresso Nacional a complementação típica relativamente aos parágrafos 3 e 7 do artigo 9º da Lei 1079/1950, dotados de larga abertura semântica.
Ainda que não se deva confundir processo penal com processo de impeachment, é manifesta a possibilidade de aplicação residual dos princípios penais e processuais penais, consagrados na Constituição (art.5º, CF), no caso de prática do ilícito de responsabilidade, processado e julgado pelo Congresso Nacional. Em que pese à diversidade normativa de cada modalidade de processo, ambas se sujeitam aos princípios constitucionais de garantia.
Todavia, não se aplicam à infração de responsabilidade, tecnicamente de natureza político-jurídica (constitucional-administrativa), as regras, institutos ou teorias que se encontram fora do âmbito jurídico correspondente (constitucional/administrativo), como, por exemplo, a matéria penal estrita, não constituída de princípios constitucionais (entendidos como direitos fundamentais). A construção teorética (regras, institutos, etc.) de cada ramo do Direito lhe é única e peculiar. Não pode ser extensível aleatoriamente à infração de norma diversa, sob pena de romper-se a estrutura do ordenamento jurídico, além de prejudicar claramente a segurança jurídica inerente ao Estado de Direito.
Convém deixar claro nesse particular aspecto que não há correlação direta entre os ilícitos de responsabilidade e os crimes comuns47, podendo existir coincidência entre crimes comuns e de responsabilidade, mas não dependência.48
Nessa perspectiva, tem-se que a transgressão da norma ínsita no artigo 85, VI da Constituição e no artigo 10 da Lei 1079/1950 não tem nenhum caráter criminal.
Na realidade, veda-se o descumprimento do dispositivo constitucional- administrativo, haja vista, por exemplo, a proibição estabelecida ao presidente da República de determinar a abertura de créditos orçamentários sem devida autorização do Poder Legislativo (art. 167, inc. V da CF). Tal autorização compete ao Congresso Nacional (art. 10 da Lei 1.079/50 modificada pela Lei 10.028/00), que impõe relevante e necessário controle à atividade executiva. Os “crimes” de responsabilidade, portanto, não estão contidos dentro do conjunto de infrações penais, tão-pouco se constituem em subgrupo daquelas.
Por sua vez, a infração de responsabilidade não vem cercada de tão grande cautela como o ilícito penal, dado ser a pena criminal bastante restritiva da liberdade individual. O primeiro não obedece, v.g., à estrita legalidade, visto que é julgado politicamente.49
No campo jurídico, a infração de responsabilidade é, de fato, autônoma como o são os ilícitos civis, tributários, eleitorais, porém, tem maior proximidade conceitual (injusto/sanção) com o ilícito administrativo no que concerne ao fato de se perfazer com o descumprimento de obrigação constitucional (e legal) a que está adstrito o mandatário no exercício de sua atribuição em razão do cargo ou função.
Entre o intitulado “crime” de responsabilidade e as outras modalidades de ilícito há diferenças formais, ainda que compartilhem o mesmo núcleo de ilicitude (contrariedade ao direito), comum a todos eles. Mas, de outro lado, há relevantes nuances entre os vários injustos, seja administrativo, seja civil, seja penal, etc.
Depreende-se daí a necessidade de se interpretar a infração (“crime”) de responsabilidade lançando mão de regras e técnicas que lhe são afetas, sem buscar trasladar regras, institutos ou categorias inerentes a outros ramos do ordenamento jurídico.50
Assim e exemplificando, na infração político-jurídica de responsabilidade, os bens e interesses são em geral de ordem meta-individual (in casu, ataque ao texto da Constituição). Em geral, não podem ser titularizados individualmente, e se consumam mesmo na forma tentada, dado seu caráter lesivo.51
É comum distinguir-se entre “crimes” de responsabilidade lato sensu e stricto sensu. O primeiro versa sobre as figuras típicas que envolvem crimes funcionais de ministros, por exemplo; e o último diz respeito a condutas vedadas tão somente ao presidente da República. Entretanto, dada a conexão histórico-conceitual entre crime e pena e os demais fatores distintivos, essa concepção não convence, pois utiliza-se da terminologia “crimes”, remanescendo a problemática conceitual.
Entendido que o “crime” de responsabilidade tem natureza político-jurídica (constitucional-administrativa), sendo, na verdade, infração de responsabilidade, não estranha a sua consequência jurídica ter similar caracterização e não a de “pena”, como parece querer dizer a Lei 1079/1950. Para modalidades diferentes de infração, consequências jurídicas igualmente diferentes.
É imperativo obedecer a certos limites na atividade de interpretação da lei52, especialmente em matéria constitucional. Tanto o intérprete não tem a “livre e absoluta liberdade” no ato de interpretar, como o chefe do Poder Executivo não dispõe de liberdade absoluta no exercício de suas atribuições constitucionais.
Impõe-se, a partir do exposto, que compete ao Poder Legislativo a relevante faculdade constitucional de fazer cumprir a Constituição e as leis nos casos de sua transgressão pelo presidente da República. É simplesmente a efetivação do princípio da separação de poderes.