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Uma análise constitucional da Lei nº 10.259/01

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03/03/2004 às 00:00
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CONCLUSÃO

O conceito atual de infração de menor potencial ofensivo, seja no âmbito estadual quanto federal, é o previsto na Lei 10.259/01 e não mais o até então definido pela Lei nº 9099/95. A novatio legis, neste ponto, é de caráter penal e, assim, sendo a competência para legislar e determinar comandos normativos em toda a federação privativa da União (art. 22, CRFB), não se pode questionar que a norma federal tenha atingido os Estados-Membros federados, sob pena de violação do pacto federativo.

O que se marca com a nódoa da inconstitucionalidade não é a nova lei, mas decisões judiciais que se insubordinem a ela. O Estado-Membro deve, mormente numa federação onde há concentração de competência legislativa privativa na figura da União, colocar-se em seu devido lugar ou lutar, pela via política, para que o federalismo brasileiro se incline a um modelo de maior autonomia das províncias tal qual se observa no sistema norte-americano.

Sustentar que, quando diz a parte final do artigo 20 [27] da nova lei: "... vedada sua aplicação no âmbito da Justiça Estadual" é, senão tendenciosa exegese, interpretação rasteira, porquanto destacada do contexto. A vedação ali posta, claramente teve o condão de afastar a jurisdição estadual de causas de competência da União, já que o artigo 109 da Constituição Federal [28] o permite de maneira relativa, posto que limita esta exceção aos termos da lei. Neste sentido pronunciou-se o eminente Procurador Geral da República, Professor Geraldo Brindeiro, no Processo PGR nº 1.00.000.000801/2002-90, provocado pelo Procurador Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que representava pela inconstitucionalidade dos artigos 2º e 20 da lei:

"Por outro lado, nos parece que a parte final do art. 20 tem aplicação restrita à interpretação do próprio artigo legal, na medida em que externa a vontade do legislador em que sejam propostas ações no Juizado Especial Federal mais próximo, sempre que não existirem Varas Federais no município do requerente."

Em arremate, ponto raramente notado pelos juristas que lidaram com o tema é o de que a redação do artigo 20 fala que "... a causa poderá ser proposta... "; com o cuidado de nos desviarmos de discussões terminológicas infinitas, é de bom tom hermenêutico observar que, desde a Constituição Federal (art. 98), o verbete "causa" foi empregado indicando a lide cível e não criminal; falou a Lei Maior que os Juizados Especiais cuidariam de "causas de menor complexidade" distinguindo-as das "infrações penais de menor potencial ofensivo".

Isto o fez porque em respeito novamente ao pacto federativo que estabelece competência concorrente entre Estados, Distrito Federal e União, para legislar sobre "procedimento em matéria processual" (art. 24, XI, CRFB). Trazendo ao ordenamento, pela Lei nº 10.259/01, mais um aglomerado de normas procedimentais, exclusivamente de natureza cível, aplicáveis à Justiça Federal, teve o legislador federal o cuidado de não invadir a competência dos Estados em regrar os procedimentos em matéria processual e se macular com inconcebível inconstitucionalidade.

Sob o prisma técnico-jurídico, os argumentos apresentados devem bastar a uma reflexão mais acurada, já debaixo do viés criminológico, àqueles de ideologia mais severa e que buscam um Direito Penal mais repressivo, talvez devessem dirigir esforços para trabalhar estudos no sentido de se exasperar os valores irrisórios de fiança e os requisitos objetivos e subjetivos de concessão de liberdade provisória e substituição das penas privativas de liberdade que, talvez, por este prisma da "Lei e Ordem", sejam atualmente os grandes fatores que levam o Direito Penal a perder seu caráter inibitório de prevenção geral e de repressão imediata à criminalidade desenfreada.


NOTAS

01. BITENCOURT, Cezar Roberto. A falência da pena de prisão. São Paulo: Saraiva, 1999.

02. CRFB, Art. 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juizes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;

03. Lei nº 9099/95, Art. 61 - Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

04. Falência fraudulenta (art. 503, CPP), crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (art. 513, CPP), calúnia ou injúria (art. 519, CPP), crimes contra a propriedade imaterial (art. 524, CPP), crimes ligados ao uso de substância entorpecente (Lei nº 6368/76), crime de abuso de autoridade (Lei nº 4898/64).

05. CRFB, Art. 98, Parágrafo único - Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.

06. Lei nº 10.259/01 - Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.

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Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

07. DIP, Ricardo e MORAES JÚNIOR, Crime e castigo – reflexões politicamente incorretas. Campinas: Milleniun, 2002, p. XIII.

08. JESUS, Damásio Evangelhista. Lei dos juizados especiais criminais anotada.São Paulo: Saraiva, 1996, p. 6.

09. Art. 76 - Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

10. Lei nº 9099/95, Art. 72 - Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.

11. Art. 22 - Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

12. CRFB - Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:... X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;

13. CRFB, Art. 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juizes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;

14. ADIN 1807-5-MT, STF - Tribunal Pleno, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, 23.04.98.

15. Art. 20. Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual.

16. * José Renato Nalini - Juiz Presidente do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo. Texto de apoio para aula no Curso de Pós-Graduação em Direito Penal da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 6/II/2002.

17. Mencionem-se o juiz CLÁUDIO DELL’ORTO, os juristas LUIZ FLÁVIO GOMES, DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, CEZAR BITENCOURT, e TOURINHO FILHO, dentre muitos.

18. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, "Instituições de Direito Civil", vol.I, Saraiva, São Paulo, 1995, p.84.

19. JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, "Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador", Coimbra, 1982, p.382.

20. FERNANDO TADEU CABRAL TEIXEIRA, "Primeiras Impressões sobre a Lei nº 10.259 de 12.7.2001", Boletim IBCCRIM, ano 9, nº 106, setembro 2001, p.3, citando NICOLA ABBAGNANO, "Diccionario de Filosofia", tradução Alfredo Galletti, 2ª ed., Fondo de Cultura Econômica, México, 1996, p.642/644.

21. CLÁUDIO DELL’ORTO, "A nova definição de infração penal de menor potencial ofensivo. Efeitos da Lei n º 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, in "Jus Navigandi", n.51 (Internet) www.jus.com.br/doutrina.

22. DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, "A exceção do art.61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais em face da Lei nº 10.259, de 12.7.2001", homepage do Complexo Jurídico Damásio de Jesus, www.damasio.com.br, agosto de 2001.

23. Notícias do Superior Tribunal de Justiça, site www.stj.gov.br, 14.1.2002.

24. Noticiário na GAZETA MERCANTIL de 25.1.2002, p.A-9 e O ESTADO DE SÃO PAULO de 25.1.2002, p.A-10.

25. ITALO MORELLE, "Pseudo-humanismo. Livrar infratores de prisão em flagrante é um erro", in Revista Consultor Jurídico, 27.1.2002

26. MALULY, Jorge Assaf / DEMERCIAN, Pedro Henrique, "A lei dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal e o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo", Texto disponível na internet http://www.direitocriminal.com.br.

27. Art. 20.

Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta lei no juízo estadual.

28. § 3º - Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

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Sobre o autor
Azor Lopes da Silva Júnior

Doutorando em Sociologia (UNESP), Mestre em Direito (UNIFRAN), Professor de Direito Penal e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Azor Lopes. Uma análise constitucional da Lei nº 10.259/01. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 239, 3 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4911. Acesso em: 28 mar. 2024.

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