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Uma análise constitucional da Lei nº 10.259/01

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03/03/2004 às 00:00
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Resumo: O artigo enfoca de maneira funcional a inicial definição das chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo e a subseqüente polêmica gerada com a criação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, centrando as conseqüências da nova ordem jurídica no direitos públicos subjetivos do cidadão infrator.

Palavras-chave: Infração de menor potencial ofensivo, Juizados Especiais Criminais Federais, competência das entidades federativas, princípio da isonomia material, direito público subjetivo, conciliação.


INTRODUÇÃO

Questionamentos quanto à finalidade da pena, especialmente as privativas de liberdade, embalam os sonhos dos criminalistas e os conduzem, quase que maciçamente à idéia de "falência da pena de prisão" [1]. Nesta esteira de um direito penal mais fragmentário, apontou o constituinte de 1988 que seriam criados juizados especiais para julgar as infrações de menor potencial ofensivo, cabendo-lhes, inclusive transacionar com o infrator [2].

Pois bem, em 26 de setembro de 1995 era publicada a Lei nº 9099, cuja vigência se daria 60 dias após, dando vida ao texto constitucional para, definir como infrações penais de menor potencial ofensivo as infrações contravencionais e os crimes cuja pena máxima prevista em abstrato não fosse superior a um ano [3], excetuados aqui aquelas infrações em que a lei previsse procedimento seja especial [4].

Todavia, em 18 de março de 1999, surge a Emenda Constitucional nº 22 que, alargando os juizados especiais à estrutura da justiça federal [5], deu origem à publicação da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001. Maiores reflexões a novatio legis não traria, não fosse o fato de haver dado uma definição legal diversa àquilo que já se sedimentara na jurisprudência e doutrina: o conceito de infração de menor potencial ofensivo.

O ponto de conflito que vem suscitando debates acalorados, nem sempre impulsionados por mera hermenêutica, mas por posturas desencontradas no campo da criminologia e política criminal, é o fato de que, para esta nova lei, consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo não aquelas cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a um ano, mas a dois anos [6]; como elemento complicador àqueles de postura mais rígida na interpretação e aplicação da lei, a norma mais benigna ainda teria deixado de excetuar os delitos cujo procedimento processual seja especial. O resultado seria, numa leitura mais libertária da vontade do legislador, o alargamento do rol de delitos menores, aos quais a própria Constituição e a lei permitem a não aplicação de penas corporais mas aquelas comumente chamadas "penas alternativas": as penas restritivas de direitos.


REFLEXÕES DE POLÍTICA CRIMINAL

O grande ponto de dissonância não tem assento em questões de ordem técnico-jurídica mas sim de política criminal como já o dissemos. Interpretar a Lei nº 10.259/01 como que tendo seu artigo 2º, parágrafo único, derrogado o artigo 61 da Lei nº 9099/95, significa adotar uma política criminal mais próxima dos que postulam pelo chamado "Direito Penal Mínimo" e virtualmente distante dos antitéticos adeptos do "Movimento da Lei e Ordem" (Law and order norte-americano).

O embate é deflagrado na medida em que o vetor político apontado pela corrente do Direito Penal Mínimo, pregando um caráter mais fragmentário, de intervenção mínima, a descriminalização de certas condutas e a substituição das penas privativas de liberdade por outras pecuniárias ou restritivas de direitos. Com todas as suas forças vêem os mais rígidos, por vezes ladeados pelos populistas, e tentam demonstrar que políticas deste jaez libertário são, na verdade oculta, uma alternativa não ao apenado mas ao poder público, que se desonera de investir em um sistema penitenciário que cumpra sua real função punitiva e reabilitadora. Nesta linha doutrina o erudito Magistrado do Tribunal de Alçada Criminal, Dr. Ricardo Dip, na apresentação de "Crime e Castigo, reflexões politicamente incorretas" [7] – uma obra digna de levar os mais doutos à reflexão - :

"Se me for permitido emblematizar nossas conclusões uníssonas, diria que somos, em primeiríssimo lugar, tributários do juízo trivial de que a pena, sendo essencialmente a retribuição de um mal e não de um bem, é um justo castigo e não pode ser falseada com indulgências excessivas, prontas a gerar a falsíssima fantasia de a pena ser um prêmio, no impressivo paradoxo de regalias que fazem do sistema penitenciário o espetáculo de uma "carnavalização" penal – ao que se noticia até mesmo com práticas de canibalismo, a que não faltará a escusa justificadora de meia dúzia de nossos mais convictos tribalistas."

De outro lado, sob a bandeira de uma crescente derrocada de um sistema punitivo corporal, questionam os opostos que a prisão, por mais adequada que seja, fere o homem e o marca eternamente levando-o à reincidência criminal. Nesta linha antagônica, emoldurado por uma plêiade de notáveis mentes, adverte o Professor Damásio Evangelhista de Jesus [8]:

"Está desacreditada a idéia de que o delito é uma atitude anormal do homem e, por isso, deve ser combatido com princípios rígidos da "lei e ordem". Hoje, considera-se o crime como um comportamento "normal", atingindo a humanidade de forma integral no tempo e no espaço, no plano horizontal e no vertical. O delito sempre existiu e sempre existirá. Ocorre em todos os países, em todas as civilizações, sejam quais forem os seus costumes, alargando-se no plano horizontal. Tem o dom da ubiqüidade. No vertical, praticado por homens bons e maus, atinge todas as camadas sociais, do mais humilde agrupamento humano ao mais socialmente desenvolvido. É impossível extingui-lo. Não quer dizer que o aceitamos. Pode-se, entretanto, reduzi-lo a níveis razoáveis e toleráveis (Antonio García-Pablos de Molina, La prevención del delito en un estado social y democrático de derecho, in Estudios penales y criminológicos, 15:183 e s.)."

De fato há verdades relativas em ambos discursos. Se de um lado o desmedido encarceramento não tem o condão de ressocializar o indivíduo, por mais que se doure a pílula, também é verdade que é a pena privativa de liberdade a única que ainda intimida o infrator; é ela a real e mais eficiente forma de manifestação de poder do Estado democrático de direito e, em última análise, do poder do povo em reação legítima à conduta anti-social do infrator.

De nossa parte, não podemos concordar com a flexibilização de regras penais que deveriam ser, na verdade, um reflexo positivado da moral social e mecanismo de prevenção geral pelo método da coação psicológica. Não é porém pela criminalização de condutas ou exasperação de penas dos tipos penais que tal dissuasão da prática criminosa será atingida mas pela flexibilização da burocrática legislação processual rompendo-se paradigmas que sob manto de "garantias processuais" escamoteiam o marasmo da máquina de persecução penal.


O CONCEITO MATERIAL DE INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO

Antecedentes legislativos e o conflito de competência legislativa

A Constituição Federal de 1988 foi quem determinou uma nova guinada principiológica para criar não um procedimento penal especial, mas um verdadeiro novo sistema penal. Fê-lo ao romper o paradigma da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal ao permitir n’alguns casos – as à época (1988/95) ainda indefinidas infrações penais de menor potencial ofensivo – a transação da ação penal2, abrindo vaza do gênero transação lato sensu às espécies transação penal stricto sensu [9] e composição civil dos danos [10].

A partir daí, alguns Estados da federação passaram a legislar no sentido de criarem tais juizados e, por necessidade lógica, conceituar o que fosse infração de menor potencial ofensivo que lhes competisse.

Mato Grosso do Sul rompe a marcha e edita a Lei Estadual nº 1.071, de 11.07.1990, que em seu artigo 69, I, dispõe como infração de menor potencial ofensivo: "I – os crimes dolosos punidos com pena de reclusão até um ano, ou de detenção até dois anos; II – os crimes culposos; III – as contravenções".

Seguidamente a Paraíba promulga a Lei nº 5.466/91 que em seu artigo 59 reproduz a norma sul matogrossense e, por fim, vem o Estado de Mato Grosso e edita a Lei Estadual nº 6.176, de 18.01.1993, que em seu artigo 60 define como infrações penais de menor potencial ofensivo: "I – o furto (art. 155, caput, do Código Penal; II – os crimes dolosos com pena de reclusão até 1 ano ou de detenção até 2 anos; III – as contravenções; IV – infrações penais decorrentes do Código do Consumidor.".

Todavia todas estas normas foram dadas por inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal; a pioneira Lei nº 1.071/90 foi atingida pelo HC nº 72.930-MS – Relatoria do Ministro Ilmar Galvão, a Lei nº 5.466/91 pelo HC nº 71.713-PB – Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence e, por fim, a Lei nº 6.176/93 pela ADI nº 1.807-5-MT proposta pelo Governador do Estado de Mato Grosso, também distribuída à Relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence que, em notável voto suspendeu a eficácia da norma impugnado sob a argumentação de que a Assembléia Legislativa teria violado o princípio de repartição das competências das entidades federativas, na medida em que usurpara a competência privativa da União em legislar sobre matéria penal e processual penal (art. 22, I, CRFB) – argumento sustentado também nos casos anteriores de controle difuso.

A par da importância histórica desta digressão, ressaltam em relevância os fundamentos das declarações de inconstitucionalidade indicados pela Corte Suprema. Deles talvez o principal seja demonstrar que o conceito de infração de menor potencial ofensivo é de direito material – penal – e a competência legislativa é privativa da União [11] e outro é de que não se confundem "juizados de pequenas causas" [12] com "juizados especiais" [13].

Quanto à distinção entre juizados de pequenas causas e juizados especiais vale citar as palavras do Eminente Ministro Sepúlveda Pertence:

"A denominação "juizado de pequenas causas" é adequada aos órgãos judiciários instituídos, antes da Constituição, pela L. 7.244/84, com alçada jurisdicional determinada exclusivamente pelo valor patrimonial da demanda e, por isso, despidos de competência penal. Ao contrário, os "juizados especiais", a que alude o art. 98, I, da Constituição, tem sua competência cível determinada pela menor complexidade da causa – que não se define apropriadamente pelo valor econômico –, e competência penal para julgar infrações penais de menor potencial ofensivo, as quais, no entanto, seria igualmente sem pertinência, conforme o uso comum, da denominação pequenas causas" [14].

O principal, porém, no enfoque buscado nesta nossa análise, é que tenha-se definido o tema como penal pois, daí nossa tese de que a Lei Federal nº 10.259/01, que instituiu os juizados especiais criminais no âmbito da Justiça Federal, alterou sim o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo.

O novo conceito de infração penal de menor potencial ofensivo

A Lei Federal nº 10.259, de 12 de julho de 2001, seja por vontade deliberada do legislador, seja por mais um de seus constantes deslizes, acabou por dizer que são infrações penais de menor potencial ofensivo os crimes cuja pena máxima não ultrapasse dois anos6. A partir daí uns postularam que o conceito de tais infrações passara a ser mais amplo, enquanto outros diziam que esta lei não se aplicava à Justiça Estadual.

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Os ferozes críticos do sistema dos juizados especiais criminais apontavam que o seu artigo 20 expressamente embasava sua tese de inaplicabilidade no âmbito estadual [15], por sua vez seus opositores argumentavam sob a bandeira da isonomia, alegando violação do princípio constitucional se um mesmo fato crime fosse tratado de formas diferentes na Justiça Federal e Estadual. Com efeito, ao lado dos "benefícios" processuais e penais assegurados ao autor de infração de menor potencial ofensivo destaca-se a necessidade de isonomia formal e material processual, sendo inadmissível o exemplo destacado repetidamente por vários articulistas de que o desacato a um funcionário público federal seria delito de menor potencial ofensivo, enquanto o mesmo não se daria em se tratando de funcionário estadual.

Veja-se, acima das cantilenas acadêmicas da isonomia, que a realidade processual e penal seria absolutamente irracional e ilegal: aquele que desacata servidor federal seria chamado "autor do fato", passível de transação penal com o Ministério Público Federal antes mesmo de ser denunciado, resultando que sequer seria condenado e, por via de conseqüência, manteria a primariedade, enquanto o que desacatasse funcionário do Estado seria indiciado, denunciado, processado, condenado, substituída sua pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44, CP) e perderia sua primariedade penal.

Pois bem, numa análise mais técnica que apaixonada, vem em notável magistério o Presidente do Tribunal de Alçada Criminal Paulista em aula proferida na Escola Paulista da Magistratura que ousamos reproduzir em parte, não só pela racionalidade de sua tese, mas também pela riqueza das citações de outros doutos por ele transcritos [16]:

"A imagem carneluttiana é interessante: se quer compreender melhor a relação entre os dois ramos do direito penal, compare-se o direito penal material à patologia e o direito penal processual à farmacologia. Isso explicaria até mesmo o atraso do Processo Penal em relação ao Direito Penal material. Primeiro estuda-se a enfermidade para só depois pensar-se em medicamento."

(...) "A Lei dos Juizados Penais Especiais é o equilíbrio entre várias tendências, num regime híbrido, pois sujeita os delitos dotados de menor potencial ofensivo a novas regras operacionais do sistema penal - regras de direito material e de direito formal.

Aquela classificação tradicional – normas de direito material e normas de direito formal - tem sido desprestigiada. Mauro Cappelletti a critica e propõe uma classificação teleológico-material de normas de garantia e normas técnico-processuais. Enfatiza que a nova categoria de normas de garantia não serve a objetivos conceituais, mas a objetivos de grande importância prática. Tais como a sucessão de leis no tempo, a taxatividade ou liberdade dos meios de provas penais, etc. Decorrência dessa nova tipologia de normas processuais "é a de que toda norma processual idônea a lesar direitos do acusado ou do recluso possui caráter substantivo e não pode ter aplicação em relação a situações processuais anteriores à sua vigência."

"(...)Promove agora o legislador um expressivo alargamento do conceito, para abranger os crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a 2 anos e os apenados com multa.

A leitura de grande parte dos doutrinadores [17] é a de que, a partir da entrada em vigor da Lei nº 10.259/01 – ou seja, 13 de janeiro último – são infrações penais de menor potencial ofensivo: 1. As contravenções penais; 2. Os crimes exclusivamente apenados com multa; 3. Os crimes punidos com pena privativa de liberdade, cuja pena máxima não seja superior a 2 anos.

Estaria derrogado, por essa conceituação mais abrangente, o artigo 61 da Lei nº 9.099/95. A fixação temporal máxima do escarmento, critério legal para a fixação de delito de menor potencial ofensivo, passa a ser de dois anos, em lugar do tento de um ano. E desaparece a menção aos procedimentos especiais, contida no artigo 61 da Lei nº 9.099/95.

Os argumentos de que se vale a doutrina, para esposar orientação tal:

"(...) 1. A Lei de Introdução ao Código Civil

Por incidirem esses preceitos, a lei nova - 10.259/2001 – fez operar a revogação tácita da lei anterior, pelo princípio informador da incompatibilidade. Por ele, inadmissível que o legislador, ao aprovar uma contradição material de seus próprios comandos, adote uma atitude insustentável e disponha diferentemente de um mesmo assunto [18]."

"(...) 2. A retroatividade da lei penal mais benigna

Consoante o inciso XL do artigo 5º da Constituição e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, a lei posterior que, de qualquer modo, favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

A lei 10.259/01, ao ampliar o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo implicou em inegável benefício aos agentes desses tipos. Logo, ela retroage para incidir sobre as situações anteriores, mesmo as decididas por sentença condenatória transitada em julgado."

"(...) 3. O princípio da isonomia

A igualdade é princípio constitucional explícito e reiterado em todo o texto da Constituição da República. Um de seus aspectos é contemplar o legislador, por ele obrigado a elaborar normas jurídicas iguais para todos. Denomina-se igualdade através da lei ou igualdade substancial ou, ainda, igualdade em sentido material.

Ainda na lição de Canotilho, "quando não houver motivo racional evidente, resultante da natureza das coisas, para desigual regulação de situações de fato iguais ou igual regulação de situações de fato desiguais, pode considerar-se uma lei, que estabelece essa regulação, como arbitrária" [19].

Também pelo princípio da isonomia, de se concluir que a valoração mais benéfica das infrações penais de menor potencial ofensivo produziu alteração imediata no conceito contido no artigo 61 da Lei nº 9.099/95.

4. O princípio da identidade

A convivência harmônica dos dois conceitos, fundada na priorização da divisão funcional de serviços judiciais pelo critério da competência, prestigiaria afronta ao princípio da identidade.

Por ele, impossível que a mesma coisa tenha naturezas diversas ou seja, simultaneamente, coisas diversas. Para Fernando Tadeu Cabral Teixeira, "uma coisa não pode ao mesmo tempo, e do mesmo ponto de vista, ser e não ser (princípio da não contradição), ou seja, uma coisa é ou não é, não existindo o meio termo (princípio do terço excluído" [20].

V. A inocuidade do disposto no artigo 20 da Lei 10.259/01

Preceitua o artigo 20 da Lei nº 10.259, de 12.7.2001:

Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual.

A maior parte dos doutrinadores entende que esse dispositivo é inócuo. A não aplicação do preceito do parágrafo único do artigo 2º da Lei 10.259/01 levaria a absurdos. Um deles é o apontado pelo Juiz Cláudio Dell’Orto: "teríamos situações como a do art. 351 do CP, onde a promoção de fuga de preso de um estabelecimento federal, seria infração penal de menor potencial ofensivo, tendo o réu direito a medidas despenalizadoras e ao processo e julgamento pelo Juizado Especial Criminal Federal, enquanto que, no âmbito estadual, o crime seria da competência da Vara Criminal comum, com a aplicação de suspensão condicional do processo, se cabível. A mesma situação se repete em outras hipóteses de incidência comportamental, entre as quais destacamos as tipificadas nos artigos 359-F, 359-B, 359-A, 359, 354, 347, 346, 341, 335, 331, 329, 328, 325, 313-B, 308, 301, § 1º, 289 § 2º, 284, 282, 272 § 2º, 270 § 2º, 269, 267 § 2º, 1ª parte, 262, 253, 250 § 2º, 249, 245, 234, 216, 205, 203, 201, 179, 175, 165, 152, 137 e 134 do Código Penal. A categoria da infração penal dependeria da qualidade do sujeito passivo" [21].

Regra elementar de interpretação jurídica veda admitir-se um absurdo no ordenamento. E tal ocorreria se o artigo 20 da Lei nº 10.259/01 viesse a merecer uma interpretação literal.

Para Damásio, "inconstitucional e totalmente sem propósito o disposto no artigo 20 da Lei nº 10.259/2001" [22]. Inconstitucional porque, a se aceitar sua validade, princípios constitucionais basilares, como os da reserva legal e da isonomia, estariam a ser frontalmente agredidos.

O Ministro Paulo Roberto Saraiva da Costa Leite, Presidente do Superior Tribunal de Justiça, ao instalar o Juizado Especial no âmbito da 3ª Região Federal, em São Paulo, afirmou que o tema será objeto de debates no Judiciário, a quem caberá formalizar o melhor entendimento. "Essa é uma discussão que ainda vai chegar aos Tribunais, com o objetivo de saber se pode ser aplicada a disposição da Lei dos Juizados Especiais Federais, que permite a transação para crimes com pena não superior a dois anos aos crimes cujo julgamento é de competência da Justiça Estadual". Assinalou o seu entendimento pessoal de abono à orientação doutrinal majoritária: "Apesar da Lei nº 10.259/01 prever a aplicação restrita da norma para os casos criminais federais, eu entendo que temos de considerar os princípios constitucionais de aplicação da lei mais benigna ao réu e o da isonomia. Não é possível que o desacato a uma autoridade estadual tenha um tipo de tratamento e o desacato a uma autoridade federal seja tratado de forma diversa" [23].

Acrescente-se que o preceito do artigo 90 da Lei nº 9.099/95 também não teve o alcance pretendido pelo legislador. Argumento a mais para concluir pela derrogação parcial do artigo 61, por força da dicção do parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 10.259/01.

VI. A função do juiz penal

O tema não resta pacificado. Consta que a Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por entender inconstitucional a ampliação dos juizados especiais estaduais, solicitou providências à Procuradoria Geral da República. Nesse sentido, deveria ser argüida, junto ao STF, a inconstitucionalidade da Lei nº 10.259/01 [24].

O juiz Ítalo Morelle, em artigo sob o título "Pseudo-humanismo", critica a ampliação. Sustenta que o parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 10.259/01 é dispositivo "infausto, planejado por pseudo-humanistas que pouco (ou nada) conhecem do dia-a-dia dos que convivem e combatem a criminalidade" [25].

Consistentes motivos no sentido contrário à derrogação foram expostos pelos promotores Jorge Assaf Maluly e Pedro Henrique Demercian, no artigo "A lei dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal e o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo" [26]. Para eles, o STF já teria se posicionado anteriormente em situações de abandono, pelo Estado-legislador, do postulado da isonomia. Dentre as soluções possíveis, não se encontra a extensão de benefícios a pessoas ou grupos inconstitucionalmente excluídos, pela via jurisdicional.".

Nota-se a partir daí que a nova técnica legislativa já não se dedica mais a criar normas de caráter puramente material ou substancial mas, num mesmo texto legal, faz brotarem normas também procedimentais ou instrumentais que interagem em perfeita simbiose. Ao intérprete caberá o alerta de perceber que, por vezes até em um mesmo artigo poderão estar insertos comandos legais materiais e instrumentais.

No caso, da Lei nº 10.259/01, nota-se que o comando normativo insculpido em seu artigo 2º, parágrafo único, ao delimitar as infrações de menor potencial ofensivo, é de nítido conteúdo material e não processual, já que se presta a valorar o desvalor da conduta que a ele se amolda.

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Sobre o autor
Azor Lopes da Silva Júnior

Doutorando em Sociologia (UNESP), Mestre em Direito (UNIFRAN), Professor de Direito Penal e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Azor Lopes. Uma análise constitucional da Lei nº 10.259/01. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 239, 3 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4911. Acesso em: 4 nov. 2024.

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