"Todos os argumentos para provar a superioridade do homem não podem quebrar essa dura realidade: no sofrimento, os animais são nossos iguais." Peter Singer
1. O atual passo evolutivo da condição jurídica dos animais
Nos últimos anos o mundo tem retomado o importante debate sobre o reconhecimento de uma personalidade jurídica própria dos animais, estabelecendo-os como titulares de direitos perante a ordem jurídica.
Após a segunda grande guerra, houve uma completa objetivização das diferentes espécies animais, que passaram a assumir o rol limitado de propriedade, sem qualquer personalidade própria, sendo as ações agressivas a eles somente consideradas como reflexas da proteção ambiental e, então, bastante limitadas.
Rompendo com a coisificação dos animais, em 28 de janeiro de 2015, a França aprovou, no seu Código Civil, a alteração da condição dos animais, definindo-os como seres vivos dotados de sensibilidade, com a retirada deles da condição de coisa e, com isso, proclamando existirem direitos civis dos animais, como seres não humanos capazes de sentir prazer, angústia, pena e sofrimento.
A guinada da legislação francesa tem produzido expressiva mobilização dos movimentos de defesa dos direitos dos animais em toda Europa que pleiteiam o reconhecimento da titularidade de direitos aos animais nos demais países, bem como, no Parlamento Europeu, o que já fez o tema ser inserido na pauta dos debates dos legislativos na Alemanha, Bélgica e Suíça.
Em verdade, alguns países latino-americanos é que foram os precursores da alteração da condição animal de objeto para titulares de direitos, entre os quais tem se destacado o chamado constitucionalismo andino, manifestado nas Cartas Maiores de Equador e Bolívia, com o tratamento da matéria a nível constitucional e na Argentina, com precedentes avançadíssimos, entre os quais o mais conhecido, o da orangotango SANDRA, que teve concedido, em seu favor, um habeas corpus, pela Câmara de Cassação Penal de Buenos Aires, reconhecendo-lhe direitos básicos, como o da liberdade, e impondo ao Zoológico de Buenos Aires garantir sua vivência em outro ambiente, como santuários naturais, reservas ecológicas, que não a minúscula jaula em que passou os últimos 20 anos.
O referido constitucionalismo andino tem impulsionado importantes transformações nos países da América Latina, à exceção do Brasil, onde se observa, por lamentável, após ter sido precursor na região, com os avanços do artigo 225 da Constituição de 1988, uma clara paralização na temática.
Destarte, no Brasil, os animais ainda são irrestritamente submetidos à condição de objeto, dentro de uma lógica econômica de livre exploração de todos os recursos da terra para a obtenção de lucros, com poucas preocupações com os rituais de sacrifício dos animais para fins alimentares, assim como com a manutenção deles em cativeiro, sua criação para combate, utilização para realizarem guarda e segurança, submetidos à privação alimentar e de condições sanitárias mínimas, transporte como bagagem etc.
2. A questão dos animais no Brasil
A despeito do atraso existente no reconhecimento da titularidade de direitos pelos animais na legislação ordinária, é importante se ter em conta a proclamação constitucional do artigo 225, § 1º, incisos I e VII, que impede, desde 1988, a abordagem dos animais como coisas ou objetos pela legislação infraconstitucional, pois, ao reconhecer a obrigação da conservação das espécies dentro do objetivo de preservação e restauração dos processos ecológicos, proibindo a submissão de animais à crueldade, a lei maior implicitamente está a reconhecer a condição de ser não humano, dotado de capacidade de sentir, às diferentes espécies animais, colocando o restante do sistema jurídico positivo e a interpretação que dele tem se feito, em total incompatibilidade com o sentido hermenêutico obrigatório imposto pela Constituição Federal.
Dessa forma, a Constituição Brasileira, mesmo antes da legislação francesa e do constitucionalismo andino já reconhecia a condição de sujeitos dos animais, o que, porém, não produziu a necessária e obrigatória repercussão na legislação ordinária e na exegese dela, colocando o Brasil, precursor no tema, como, atualmente, em defasagem evolutiva na questão.
Esse atraso, com a submissão dos animais à condição de meros objetos, produz, inclusive, leniência com o desrespeito de alguns conteúdos normativos existentes, tanto os que visam punir agressões a eles, quanto os que disciplinam o tratamento respeitoso quando se lhes dá morte.
Claramente, a aplicação do artigo 32 da Lei 9605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) é bastante aquém do que os atos que nela se amoldam e são praticados, pois, segundo o dispositivo acima destacado, qualquer ato ofensivo à integridade do animal, em seu mais amplo sentido, constitui-se em crime, considerando toda e qualquer espécie animal como passível de ofensa, de sorte que a tipificação se preenche com distintas possibilidades de ação, como os enjaulamentos em pequenos espaços, os atos de abandono, as privações alimentares, retirada de filhotes de ninhos etc.
Ocorre que não se verifica a ocorrência tão frequente de denúncias por este delito, quando situações de maus-tratos a animais, que concretamente são observadas na sociedade, em grande parte em decorrência da concepção dos animais como objetos e não sujeitos, o que justifica a omissão em sancionar os atos de maus tratos, pois no inconsciente da coletividade se assimila a ideia de que como são meras coisas, seu proprietário deve ter capacidade livre de uso e disposição sobre eles.
No mesmo sentido, vale referir que há número até elevado de normatizações sobre o abate de animais no Brasil, pois são três Instruções Normativas e cinco Portarias, sendo a mais específica a Instrução Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que aprova o regulamento técnico de métodos de insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue.
A despeito desse número consistente de atos normativos e da presença de regras claras sobre a insensibilização para o abate, afloram registros de abates clandestinos e mesmo de sua realização de forma cruel por estabelecimentos autorizados e controlados, pois não há adequada fiscalização, na medida em que o investimento do poder público nos setor é mínimo e a pouca fiscalização existente é tratada com desconfiança e hostilidade, pois vista como invasiva da propriedade privada na medida em que os animais são caracterizados como coisas.
Outro campo em que a atividade econômica se impõe de forma excessiva é do uso dos animais pela indústria cosmética, na qual a visualização deles como objeto tem permitido que verdadeiros massacres sejam praticados, em que produtos não essenciais para a salvaguarda da vida ou para o combate de doenças são testados de forma geradora de sofrimentos elevados em diferentes espécies animais, até que sejam os produtos considerados aptos para o consumo humano.
3. Consequências do reconhecimento da condição de sujeitos de direitos aos animais
Quando se reconhece a titularidade de direitos aos animais, ato contínuo, resta proibido dar a eles morte sem causa, submetê-los deliberadamente a qualquer tipo de tratamento que lhes imponha sofrimentos, bem como é gerada uma pauta de ações positivas, como a obrigatória geração de maior acompanhamento e fiscalização nas clínicas médico-veterinárias, enrijecimento das regras para a criação de pet shoppings, com exigência de treinamento de seu pessoal que manipula animais, obrigação do poder público de fornecimento de condições médicas e sanitárias mínimas aos seres vivos não humanos dotados de sensibilidade, entre outros campos que a nova lógica interpretativa do tema possibilitará descobrir.
No âmbito penal, as consequências imediatas são notáveis, pois está impedida toda e qualquer ação de agressão a animais que não seja escorada em uma necessidade concreta de defesa da pessoa ou em necessidade alimentar, cercando-se esta última hipótese de uma série de conteúdos que impeçam sofrimentos desnecessários ou que não observem os limites já proclamados na declaração universal dos direitos dos animais, que, no artigo 9º, fixa que “quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor”; no item 2 do artigo 3º diz que “ se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.”.
Outro ponto muito importante é que agressões ilegítimas a animais autorizam qualquer pessoa a atuar em sua defesa, pois o reconhecimento da condição de sujeitos de direito aos animais faz com que qualquer pessoa possa atuar em sua proteção ancorada na legítima defesa de terceiro.
Com efeito, a nova abordagem da condição animal faz com que, nas agressões ilegítimas que sofrer, ele se constitua exatamente no terceiro agredido, permitindo que qualquer um atue em sua defesa dentro dos limites específicos da causa de justificação da legítima defesa.
A questão é, porém, mais ampla, pois o reconhecimento da personalidade jurídica própria, com titularidade de direitos aos animais, fixa que todo animal tem direito a ser respeitado, o que bloqueia ações atualmente muito comuns, que passam a poder, inclusive, sofrer tipificação penal, por exemplo, e sem nem de longe esgotar, sua submissão a espaços reduzidos, privação alimentar, imposição de excesso de trabalho, transporte com carga, utilização de métodos violentos para adestramento, submissão a maus-tratos pela indústria cosmética e farmacêutica, utilização em espetáculos públicos ou em jogos de luta.
Igualmente, há o gerar de obrigação, em relação ao desenvolvimento de políticas públicas, em alguns setores que tratem da oferta de qualidade existencial mínima aos animais submetidos à ação e influência humanas, como, por exemplo, deixa de ser justificável a omissão estatal em relação às populações de animais que vivem nas ruas, sem a existência de programas efetivos de controle populacional de animais domésticos e de apoio às pessoas para a formação de abrigos para aqueles que são abandonados nas ruas ou se encontram em situação de risco.
Também, claro, a característica própria deste titular de direitos, incapaz de ascender por força própria ao sistema de justiça, gera como consequência inexorável do reconhecimento da condição de sujeitos e não coisas aos animais, uma ampla possibilidade de que qualquer cidadão seja legitimado a mover ação popular em favor deles, nas diferentes situações em que se achem ameaçados.
4. Conclusão
Negar a existência de vida sensível aos animais e mantê-los em condição de coisas representa total negativa da realidade, pois diz respeito a confronto direto com a experiência diária das pessoas em suas diferentes relações com eles, experiência na qual, cães, gatos e pássaros compartilham espaço nos diferentes lares, cavalos são vistos como modelos de amizade, entre outros tantos e intermináveis exemplos que demonstram que o ser humano sabe que os animais não são simples objetos.
Nesse sentido, desde 1988, a condição de sujeitos de direitos dos animais se extrai da Constituição Federal, realidade esta hoje reconhecida pelos países andinos e com início de reconhecimento, na Europa, pela França, havendo atraso na adaptação da legislação e da jurisprudência brasileira à realidade constitucionalmente proclamada, o que, uma vez reconhecida, permitirá um novo ciclo de desenvolvimento, calcado em respeito e não em domínio do homem em relação aos animais, o que significa, em última análise respeito com uma família maior de seres vivos habitantes da terra, da qual o próprio ser humano é parte.
Nessa ótica, ao respeitar os animais, o ser humano respeita a si mesmo e a lógica do ser nascido para exercer domínio sede espaço à lógica da integração e do bem viver dotado de responsabilidade coletiva e com o futuro, sem razões para a exploração desnecessária dos recursos, simplesmente para satisfazer a estrutura discursiva da necessidade do ganho permanente e interminável, independente de seus danos, ajudando, em última análise, a sociedade a caminhar com um maior sentimento de solidariedade e respeito.