3. BOA-FÉ: CONCEITOS PARCELARES E REFERENCIAL INTERPRETATIVO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
3.1. Deveres Anexos ao Princípio da Boa-fé Objetiva
A boa-fé objetiva possui papel fundamental no direito contratual por ser norma de grande amplitude e subjetividade.
Desse modo, além de sua generalidade, existem deveres que são anexos à boa-fé os quais atuam como fundamento normativo, e não propriamente fático, do princípio maior.25
O Código Civil não apresenta expressamente os deveres anexos de conduta, contudo, desde o início de vigência do diploma legal, grande parte da doutrina e jurisprudência tem construído importantes estudos e abordagens acerca do tema, de tão modo a ganhar grande relevância.26
Segundo Couto e Silva:
A medida da intensidade dos deveres secundários, ou anexos, é dada pelo fim do negócio jurídico. Mas, tal finalidade, no que toca à aplicação do princípio da boa-fé, não é apenas o fim da atribuição, de que normalmente se fala na teoria da causa. Por certo, é necessário que essa finalidade seja perceptível à outra parte. Não se cuida, aí, de motivo, de algo psicológico, mas de um plus que integra o fim da atribuição e que está com ele intimamente relacionado. A desatenção a esse plus torna o adimplemento insatisfatório e imperfeito.27
Os deveres anexos vislumbram-se como verdadeiros limitadores positivos ou negativos da autonomia da vontade privada, estabelecendo deveres de comportamento e norteando a conduta dos contratantes de forma guiada aos ideais de justiça.28
Eventual violação desses deveres anexos gera, conforme construção doutrinária, violação positiva do contrato mesmo tendo sido a obrigação principal aparentemente cumprida, uma vez que houve violação das obrigações secundárias.29 Ou seja, os contratantes devem “colaborar durante a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva”.30
Os deveres anexos à boa-fé são diversos e possuem grande amplitude, contudo, a seguir passaremos a uma análise mais aprofundada dos principais atualmente verificáveis nas relações contratuais.
3.1.1. Dever de Lealdade e Confiança Entre as Partes
Não há dúvidas de que exige-se, como fator primordial a qualquer relação o dever de lealdade e consequente confiança no desenvolver dos atos.
Conforme dicionário, a palavra lealdade remete ao comportamento sincero, franco e honesto, sendo fiel aos compromissos assumidos.31
Já confiança, demonstra crédito e boa fama do confiável; segurança e bom conceito que inspiram as pessoas de probidade, talento, discrição, esperança firme e familiaridade.32
“Quando se fala em deveres de lealdade e confiança recíprocas, costuma-se denominá-los deveres anexos gerais de uma relação contratual.”.33 Isso no sentido que o contrato deve ser cumprido da forma estipulada e respeitando os princípios norteadores da honra e probidade.34
Tal dever requer que as partes sejam transparentes no negócio firmado de forma a que seja formada segurança jurídica e consequente confiança no cumprimento das obrigações previstas de ilibada.35
3.1.2. Dever de Assistência e Cooperação
O dever de assistência, o qual também recebe a nomenclatura de dever da cooperação entre as partes, visa definir que devem cooperar para o resultado pretendido no contrato, ou seja, para que o que foi acordado seja desempenhado da melhor forma e atingindo previsões recíprocas.36
Verifica-se contrariedade a esse dever quando uma das partes, sempre diligente na relação contratual, é impedida de cumprir com o contrato por atos da outra parte. Como exemplo, podemos citar uma situação em que um Locador oculta-se e evita o pagamento dos aluguéis e/ou deixa de fornecer informações necessárias para tal por própria inércia.37
3.1.3. Dever de Informação
Ter ciência exata do que se está fazendo, o porquê, resultados, consequências, valores, riscos, condições, prazos, obrigações e muitos outros contextos contratuais é de suma importância para que o contrato cumpra sua função social.
Um exemplo claro do dever de informação decorre dos contratos de franquia e a formação jurisprudencial decorrente, que estabelece que a franqueadora, ao formar a oferta de franquia deve especificar com a maior exatidão possível todos as características do negócio, riscos e todas possíveis situações. Eventual descumprimento deste dever de informação é considerada violação positiva do contrato e gera o dever de indenizar. Vejamos julgado recente sobre o tema:
APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE FRANQUIA. QUEBRA CONTRATUAL PELO FRANQUEADOR. DEVOLUÇÃO DOS ROYALTIES. PEDIDO PROCEDENTE. 1. Numa operação de franchising bem estruturada, a circular de oferta da franquia é elaborada por escrito e em linguagem clara e acessível, contendo obrigatoriamente, dentre muitas outras, as informações relativas à remuneração periódica pelo uso do sistema, da marca ou em troca dos serviços efetivamente prestados pelo franqueador ao franqueado (royalties). 2. A mesma exigência – informação clara e por escrito - subsiste na hipótese de renovação ou alteração do contrato. 3. Com o descumprimento das disposições contratuais pela franqueadora - que aumentou o percentual dos royalties - houve prejuízos suportados pela franqueada, o que gera à franqueadora o dever de restituir tais parcelas, devidamente corrigidas e acrescidas de juros moratórios.38
Veja através da decisão supra um nítido caso em que a boa-fé objetiva contratual é desrespeitada, mais especificamente pela quebra do dever anexo da informação.
Utilizando-se do direito comparado, e em uma análise voltada aos contratos de consumo, Marques subdivide o dever da informação em duas necessárias observâncias. Primeiramente o dever de esclarecimento (Aufklarungspflicht, em alemão e obligation de renseignements, em francês) o qual obriga a parte a fornecer informações exatas referentes a riscos de determinado serviço ou negócio, bem como demais informações que, se não fornecidas, poderiam gerar grave consequência a parte desinformada. Também, há o dever de aconselhamento (Beratungspflicht, em alemão e obligation de conseil, em francês), isto é, seria o dever de deixar claro ao contratante determinadas questões técnicas relativas a possíveis escolhas que este pode fazer no contrato e os resultados práticos que isso gera, impedindo frustrações e surpresas.39
3.1.4. Dever de Confidencialidade
O dever anexo da confidencialidade é inerente a toda contratação e conduz ao resguardo de direitos da personalidade dos contratantes.40
Como se sabe, muitos contratos, em especial os que envolvem grandes empresas, acabam possuindo diversa carga de informações confidenciais de extremo valor aos interessados. A proteção destas informações, por consequência, é um dever vinculado à boa-fé objetiva e mesmo não tendo sido expresso em contrato, por óbvio deve ser respeitado, sob pena de resultar em grave lesão de um dos contratantes, gerando, consequentemente, a violação positiva do contrato e consequente dever de indenizar.
Citando Stolze, trazemos exemplo de ofensa ao dever contratual:
Em um determinado contrato firmado entre as empresas OLIVEIRA e TIGO, para fornecimento de ração de pássaros, não se consignou cláusula no sentido de que as partes contratantes não poderiam, durante a vigência do contrato, ou mesmo após, divulgar dados ou informações uma da outra. Ora, ainda que não haja estipulação nesse sentido, é forçoso convir que a boa-fé impõe que se observe o dever de sigilo ou confidencialidade entre ambas.41
Como exemplo mais específico do dever de confidencialidade, podemos citar o caso de uma empresa de tecnologia que firma contrato de licença de software por tempo determinado e após o final do contrato descobre que informações relativas ao seu sistema foram disponibilizadas pela empresa contratante à outra empresa, do mesmo ramo, com quem firmou contrato posterior. Veja que, nesse caso, além da quebra do dever anexo de confidencialidade, ainda verificamos uma consequente violação à propriedade intelectual.
Assim, as informações das partes no contrato restringem-se, obviamente, ao pacto que firmaram, gerando violação da boa-fé objetiva o uso não previsto ou não autorizado.
3.2. Figuras Parcelares à Boa-fé Objetiva
Inerentes à concepção de boa-fé objetiva, existem as figuras parcelares, as quais denotam-se como noções conceituais visando a árdua tarefa de buscar delimitar um conceito aberto.
Conforme Penteado:
A boa-fé, segundo a insuperável classificação feita por Menezes Cordeiro ao tratar do exercício inadmissível das posições jurídicas, apresentaria oito figuras parcelares, ou seja, tipos de argumentos recorrentes com vistas a sua aplicação tópica. Entre eles estariam o venire contra factum proprium, o tu quoque, a exceptio doli, desdobrada em exceptio doli generalis e exceptio doli specialis, a inalegabilidade das nulidades formais, o desequilíbrio no exercício jurídico, a supressio e a surrectio.42
Pretendemos, pois, analisar algumas figuras parcelares da boa-fé objetiva de modo a compreender e criar a visão do conceito de uma forma estrutural.
3.2.1. Supressio
Segundo Gonçalves: “Um direito não exercido durante determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé”.43
O dever anexo denominado supressio, decorrente da expressão alemã werwirkung (em português: perda)44, possui conceito que remete à supressão do direito pelo seu não exercício por período considerável ou de forma a levar a outra parte a considerar que não mais o fará. Isto é, a perda de um direito pelo transcurso do tempo para exercê-lo ou pela demonstração de falta de interesse de exercê-lo.
Diferente de uma prescrição, onde o que se perde é o próprio direito, no caso da supressio, o que de fato ocorre é a inércia da parte em realizar determinado ato, a qual demonstra-se latente ao ponto de gerar expectativas.45
O mencionado comportamento demonstra a necessidade de agir mediante conduta retilínea, impedindo que a parte oposta venha a ser pega de surpresa, possuindo relação de proximidade com o dever anexo venire contra factum proprium.
Stolze cita exemplo clássico do dever anexo ora tratado: “O exemplo tradicional de supressio é o uso de área comum por condômino em regime de exclusividade por período de tempo considerável, que implica a supressão da pretensão de cobrança de aluguel pelo período de uso”.46
3.2.2. Surrectio
Com conceito estreitamente próximo ao da supressio, quando falamos em surrectio tem-se que um comportamento, mesmo que contrário as regras iniciais do acordo, se por muito tempo praticado sem qualquer oposição, acaba tomando proporções de regra.
Seria, conceitualmente, “a outra face da supressio. Acarreta o nascimento de um direito em razão da continuidade da prática de certos atos.”47
A surreição nada mais é do que o surgimento de uma posição jurídica pelo comportamento materialmente nela contido, sem a correlata titularidade. Como efeito deste comportamento, haveria, por força da necessidade de manter um equilíbrio nas relações sociais, o surgimento de uma pretensão.48
Assim, um comportamento contrário seria contrário à surrectio. Como exemplo, podemos citar um contrato de aluguel com data de pagamento fixada para o dia 10 de cada mês. Todavia, o locatário recebe seu salário no dia 20 e, dessa forma, sempre efetua o pagamento nesta data. Veja, transcorrido todo o período contratual de 5 anos configuraria uma quebra de confiança que o locador exigisse juros e correção monetária por todo o período não tendo oposto qualquer impedimento em momento anterior. Falar-se-ia de uma surrectio pelo transcurso do tempo e conduta das partes em aceitar que os atos fossem praticados daquela forma.
3.2.3. Tu Quoque
“Tu quoque, Brutus, fili mi! A célere frase históricamente atribuída a Júlio Cesar, pela constatação da traição de seu filho Brutus, dá nome a um dos mais comuns desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva”49
A aplicabilidade do chamado tu quoque se dá em situações em que uma parte da relação contratual é pega de surpresa por determinada atitude da parte contrária, causando-lhe inegável desamparo e eventual dano em decorrência da atitude.
Diferencia-se do desdobramento da boa-fé objetiva denominado venire contra factum proprium pois não objetiva a tutela de expectativa de continuidade de comportamento, e sim uma manutenção de seus atos visando preservar o equilíbrio contratual.50
Tal conceito, correlato à boa-fé objetiva, “proíbe que uma pessoa faça contra outra o que não faria contra si mesmo, consistindo em aplicação do mesmo princípio inspirador da exceptio non adimplendi contractus.”51
À título de exemplo, podemos citar, conforme ensinamentos de Stolze: “um bom exemplo desse desdobramento da boa-fé objetiva reside no instituto do exceptio non adimplendi contractus. Se a parte não executou a sua prestação no contrato sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação.”52
Explicando a exceção de contrato não adimplido, e sua previsão no Código Civil, em seu artigo 476, Luciano Penteado relata:
O enunciado, em termos de tu quoque, equivale a dizer: você não pode cobrar enquanto não pagar o que deve; se o fizer, surpreende-me sua conduta e o direito fornece um meio de tutela. Em outras palavras, a pessoa que viola uma regra jurídica não pode invocar a mesma regra a seu favor, sem violar a boa-fé objetiva, na modalidade denominada tu quoque.53
“Pela figura do tu quoque objetiva-se a vedação de dois pesos e duas medidas, ou seja, da adoção de comportamentos contraditórios no interior de relações obrigacionais com referência a determinado direito subjetivo derivado do contrato.”54
3.2.4. Exceptio Doli
É conclusivo pelo próprio título do desdobramento da boa-fé denominado exceptio doli que refere-se a uma exceção de dolo. Ou seja, a boa-fé objetiva não se observa quando determinada parte de um contrato vale-se de atitude dolosa com o intuito “não de preservar legítimos interesses, mas, sim, de prejudicar a parte contrária.”.55
Conforme Stolze: “Uma aplicação deste desdobramento é brocardo agit qui petit quod statim redditurus est, em que se verifica uma sanção à parte que age com interesse de molestar a parte contrária e, portanto, pleiteando aquilo que deve ser restituído.”56
O legislador buscou restringir condutas eivadas de dolo ao redigir o art. 940, do Código Civil, o qual garante a possibilidade de quem tenha sido acionado judicialmente por dívida paga, no todo, ou em parte, de cobrar judicialmente o dobro ou o mesmo valor como espécie de sanção.
Cabe pontuar que o Doutrinador Luciano de Camargo Penteado ainda divide a exceptio doli em dois subconceitos, isto é, excepio doli generalis e exceptio doli especialis:
A exceptio doli especialis nada mais seria do que uma participação da exceptio doli generalis referida a atos de caráter negocial e atos dele decorrentes, quando o primeiro houvesse sido obtido com dolo. Assim, a generalis, como o próprio nome já diz, é gênero e a outra espécie. A diferença específica encontra-se nos casos em que a fonte da que dimana o possível direito é um negócio jurídico e não qualque outra fonte. O caráter excessivamente geral das duas figuras acaba por tornar sua aplicação perigosa em termos de segurança jurídica, valor que parece preservado pelas figuras anteriormente consideradas, na medida em que tem pressupostos concretos de verificação.57
3.2.5. Venire Contra Factum Proprium Non Potest
Um dos principais deveres anexos à boa-fé objetiva, sem dúvida é o que iremos abordar neste tópico. Venire contra factum próprium non potest, em uma tradução literal do latim significaria vir contra um fato próprio. No direito, significa agir de maneira contraditória.
Ou seja, o contratante não poderá, no curso da relação jurídica agir de forma confusa e sem a necessária lógica decorrente do contrato, situação que geraria, consequentemente a quebra de confiança da(s) outra(s) parte(s), e a violação do mencionado dever anexo.
“Protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente.”58
Nas palavras do Jurista Luciano de Camargo Penteado:
o venire contra factum proprium que se verifica, basicamente, nas situações em que uma pessoa, durante determinado período de tempo, em geral longo, mas não medido em dias ou anos, comporta-se de certa maneira, gerando a expectativa justificada para outras pessoas que dependem deste seu comportamento, de que ela prosseguirá atuando naquela direção. Ou seja, existe um comportamento inicial que vincula a atuar no mesmo sentido outrora apontado. Em vista disto, existe um investimento, não necessariamente econômico, mas muitas vezes com este caráter, no sentido da continuidade da orientação outrora adotada, que após o referido arco temporal, é alterada por comportamento a ela contrário. 59
Pode-se afirmar que existem quatro pressupostos para a configuração do venire contra factum proprium, quais sejam: a) um comportamento; b) a geração de expectativa pela parte contrária da relação; c) o investimento (intelectual, financeiro, de tempo etc) na expectativa gerada; d) comportamento contraditório, o qual frustra as expectativas do outro.60
Como exemplo podemos citar uma situação hipotética em que um locatário deixa o imóvel locado, informa o locador e não realiza o pagamento de qualquer despesa de rescisão. Logo após tomar conhecimento da situação, a locadora coloca o imóvel como disponível para locação e consegue firmar contrato após doze meses transcorridos desde o abandono do antigo locatário. Transcorrido todo o acontecimento, move ação de execução em face do locatário inadimplente, cobrando-o por todo o período desde sua saída do imóvel até o novo contrato de locação. Veja, nesse caso, o locador pratica indiscutível venire contra factum proprium, quebrando o dever anexo e, consequentemente, ferindo a boa-fé objetiva da relação contratual.
No mesmo sentido, p Doutrinador Pablo Stolze cita alguns exemplos positivados no próprio Código Civil:
O primeiro deles reside no art. 973, CC-02 (sem equivalente no CC-16), em que se estabelece que a “pessoa legalmente impedida de exercer atividade própria de empresário, se a exercer, responderá pelas obrigações contraídas. Ou seja, embora impedido de exercer a atividade, se o faz, gera a expectativa, nos contratantes, do cumprimento pactuado, não pondendo o indivíduo invocar a sua própria torpeza para se desvencilhar das obrigações celebradas.
Outro exemplo reside no art. 330, CC-02 (também sem equivalente no CC-16), em que o credor, que aceitou, durante a execução de pacto de trato sucessivo, o pagamento em lugar diverso do convencioado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato, para alegar descumprimento. A Idéia, inclusive, poder ser desdobrada para o tempo do descumprimento do contrato, emq ue a tolerância habitual de determinado atraso, sem oposição, impede a cobrança de sanção pela mora do período.
Mais um exemplo pode ser encontrado no art. 175, CC-02 (art. 151, CC-16), explicitandoque o contratante que, voluntariamente, iniciou a execução do negócio jurídico anulável, não pode mais invocar essa nulidade. Isso porque, o cumprimento voluntário do negócio anulável importa, na dicção legal, em extinção de todas as ações ou exceções de que dispusesse o devedor, uma vez que esse livremente pratica o pactuado, não podendo surpreender a outra parte com a alteração de seu comportamento.61
3.2.6. Duty to Mitigate the Loss
O supracitado desdobramento da boa-fé objetiva observa que o credor, dotado de certos poderes na relação com o devedor, deve evitar o agravamento do próprio prejuízo.62
Nesse sentido é o Enunciado n. 169, do CJF/STJ na III Jornada de Direito Civil: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Conforme Tartuce, o mencionado enunciado encontra inspiração no art. 77, da Convenção de Viena de 1980, sobre a venda internacional de mercadorias:
A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída.
De forma exemplificativa à aplicação do duty mitigate the loss pode-se citar caso em que determinada empresa aluga uma sala comercial a uma pessoa física. Acontece que, já no início do contrato o locatário acaba tendo que mudar de cidade devido a motivo pessoal e simplesmente abandona o local. Nesse caso, não pode o Locador valer-se da situação e, mesmo sabendo que o Locatário abandonou o local persistir na cobrança de aluguéis até que consiga firmar contrato com terceiro. Tal situação configura verdadeira quebra da boa-fé objetiva ligada a duty mitigate the loss.
3.3. A Evolução Constante da Boa-fé como Referencial Hermenêutico
Toda manifestação interpessoal pressupõe, necessariamente, uma futura interpretação pelos envolvidos para que seja dotada de eficácia e segurança jurídica aos interessados no sentido de verem seus direitos amparados por norma criada por eles próprios visando atender suas necessidades.
Os contratos escritos, num exercício constante da linguagem, necessitam ser interpretados para que possam possuir validade e exercer, de fato, o interesse das partes.
Um dos maiores problemas da linguagem63 é a interpretação, uma vez que, por ser subjetiva, acaba gerando diversas compreensões baseadas em diversos fatores inerentes à condição humana.
Nas palavras de Gonçalves: “Nem sempre o contrato traduz a exata vontade das partes. Muitas vezes a redação mostra-se obscura e ambígua, malgrado o cuidado quanto a clareza e a precisão demonstrado pela pessoa encarregada dessa tarefa.”64. Isso ocorre em virtude das peculiaridades do caso específico e a dificuldade de positivar – muitas vezes às pressas -, o que as partes realmente buscam por meio daquele acordo que estão firmando.
As cláusulas gerais, presentes no Código Civil, permitem ao operador de direito interpretar o negócio conforme as suas características de modo que o direito esteja em constante evolução mesmo sem que sejam criadas normativas constantes de modo a preencher cada lacuna que diariamente é apontada.65
“Este é o principal sentido da cláusula geral: servir de meio de adaptação da lei às modificações verificadas no contexto social e, inclusive, no contexto político.”66
Interpretar o negócio jurídico é, portanto, determinar o sentido e alcance do que as partes buscam em determinado acordo67.
Mas não é só isso, a interpretação do negócio firmado entre as partes deve tomar como referencial hermenêutico 68 a boa-fé objetiva e todos os desdobramentos necessariamente observáveis com sua decorrente aplicação, principalmente quando falamos na sua função de interpretação. Isto é, na análise do negócio jurídico por meio de um contrato, muito necessário se faz ter em mente o contexto histórico cultural e ambiente em que o negócio foi firmado de modo a poder estabelecer se houve extrapolamento dos direitos de uma ou ambas as partes.
Conforme bem descreve o professor Rosenvald:
“[...] a boa-fé servirá como parâmetro objetivo para orientar o julgador na eleição das condutas que guardem adequação com o acordado pelas partes, com correlação objetiva entre meios e fins. O juiz terá que se portar como um “homem de seu meio e tempo” para buscar o agir de uma pessoa de bem como forma de valoração das relações sociais.” (grifei)
Veja que a boa-fé objetiva, como princípio contratual e observando seu potencial de interpretação do negócio jurídico, encontra-se em evolução constante como referência interpretativa aos contratos, uma vez que deve ser observada à luz dos usos e costumes e ideais de boa-fé, probidade, honestidade e lealdades extraídos da situação específica analisada.
Por isso, apesar de sempre melhor a manutenção do que foi pactuado entre as partes, deve ser utilizada como ferramenta essencial na análise contratual por parte dos operadores de direito, de modo que seja pregada a justiça, equidade e respeito aos interesses sociais e individuais em cada relação.