O acesso à justiça em casos de litígio internacional: foro de necessidade, assistência judiciária gratuita e cautio iudicatum solvi

30/05/2016 às 16:37
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Este estudo busca conceituar e analisar brevemente os institutos do foro de necessidade, assistência judiciária gratuita e cautio iudicato solvi em casos de litígio internacional.

 

INTRODUÇÃO

Em países como o México é comum considerar o Direito Internacional Privado (DIPr) como uma matéria especializada. Este pensamento faz com que algumas pessoas creiam que se trata de uma disciplina excepcional, com alto grau de complexidade em grande parte derivada do seu pressuposto básico: a pluralidade de sistemas jurídicos que só atendem necessidades de um reduzido número de pessoas e de grandes multinacionais.

Diante dessa visão, encontramos que dentro da globalização as situações jurídicas privadas com caráter internacional se apresentam com maior frequência e envolvem sujeitos e situações que geralmente encontravam soluções dentro do sistema interno.

A barreira cada vez mais porosa, as grandes transações comerciais e financeiras internacionais, os fenômenos migratórios temporários e permanentes e o desenvolvimento tecnológico criam um grande numero de problemas de DIPr.

Pessoas que nunca visitaram outros países podem ver-se demandadas em Tribunais de outros Estados. Por outro lado o auge do turismo e as visitas temporais por razões acadêmicas ou laborais podem desembocar em conflitos relativos à filiação, matrimônio, uniões de fato, obrigações alimentícias, contratos, dentre outros.

Ante tal perspectiva urge a existência de um verdadeiro sistema sofisticado de DIPr. Os princípios de igualdade jurídica consagrados nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos e o art. 1º da Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos transcenderam o âmbito do direito processual civil dentro do principio da igualdade processual das partes. Devido ao lex fori regit processum encontramos uma impregnação de valores constitucionais nas ações  em matéria de direito internacional privado (DIPr) .

O art. 8º da Declaração Universal de Direitos Humanos  prevê que toda pessoa tem direito a um recurso efetivo ante os tribunais nacionais competentes, preceito que se encontra perfeitamente sincronizado com o art. 17 Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos. O Pacto de Direitos Civis e Políticos, no seu art. 14, reconhece o princípio da igualdade ante os Tribunais, direito a audiência, imparcialidade e independência dos Tribunais. A Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, em seu art. 18º, inclui o direito de toda pessoa ao acesso aos Tribunais em busca de seu direito, e outros.

Um fato importante para eliminação de qualquer tipo de discriminação na União Europeia é o que dispõe o art. 2º do Tratado da União Europeia, proibindo toda discriminação por razão de nacionalidade no seu âmbito.

Em geral, podemos dividir o estudo do acesso à justiça no DIPr em três grandes âmbitos: o foro de necessidade, a possibilidade de benefícios de acessória jurídica gratuita e, por último, a eliminação de toda caução judicial para a parte estrangeira ou domiciliada no estrangeiro. Vejamos cada um separadamente:

1 FORO DE NECESSIDADE

O estabelecimento de foros de competencia adequados deve ser um principio que impregne de maneira geral todo o sistema de competencia judicial internacional do ordenamento jurídico. A ausência de um corpo normativo especifico em matéria de Cortes de Justiças Internacionais é uma grande lacuna no sistema de DIPr, inclusive mexicano, aspecto que se agrava devido à inexistência de critérios judiciais que dotem de certa particularidade internacional as normas de competencia territorial nacionais.

A influencia do foro de necessidade da Convenção Interamericana parece  arraigar-se não somente na legislação interna, se não também no modelo convencional mexicano. Considerando que o acordo com Espanha é o único tratado bilateral que o México tem sobre reconhecimento e execução de sentenças e a Convenção Interamericana o único multilateral, podemos dizer que o foro de necessidade se encontra integrado no sistema jurídico mexicano.

O forum nessecitatis se manifesta de maneira positiva em outras convenções e legislações internas de diversos Estados, como por exemplo, o art. 8.2 da Convenção entre Espanha e Romênia que versa sobre competencia judicial, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e mercantil de 1997, bem como a Convenção de Bruxelas de 1968.

Por outro lado, o modelo suíço introduz uma variação com relação ao modelo mexicano, tendo em vista que amplia o foro de necessidade, abrangendo não só as situações de impossibilidade de acesso a algum foro, mas também inclui um critério de razoabilidade na obtenção de justiça no foto estrangeiro. No caso de um conflito negativo de competencia, se apresenta a necessidade que um tribunal se declare competente para evitar ausência de acesso à justiça.

Segundo esse critério, se destacariam hipóteses como as mencionados por M. Virgos e F. Garcimartín:  casos de impossibilidade de fato como situações de conflito bélicos ou revoluções internas ou a negativa de reconhecimento por parte de um Tribunal estatal de uma decisão estrangeira, caso o autor não puder satisfazer a sua pretensão em outro país, nem iniciar um outro processo em tal Estado devido a ausência de tribunais de foro de competencia para conhecer desse objeto.

No que se refere a fontes de lex mercatória  (direito comercial internacional costumeiro)  nos princípios e regras  de procedimento civil transnacional do Unidroit (Unidroá) e o Amerian Law Institute o ponto 2.2 dispõe que excepcionalmente pode ser estabelecida a competencia quando não se possa  chegar de maneira razoável a nenhum outro foro e, com base na sua presença ou nacionalidade no Estado do foro ou a presença de seus bens no foro, trate o mesmo ou não sobre questões de propriedade.

A diferença essencial este foto de necessidade é que tanto o modelo suíço quanto o mexicano o foro de necessidade somente se aplica sob certos requisitos de proximidade com o foro (presença, nacionalidade e bens) e não de maneira ilimitada, o que realça o enfoque de acesso à justiça com tons de proximidade e de efetividade na execução de uma sentença futura.

Um caso relevante é o Emilia Cura de Vlasov contra Alejandro Vlasov da Corte Suprema da República Argentina no qual se declarou competente os juízes de Buenos Aires para conhecer do divórcio de casamento celebrado na Romênia com domicílio conjugal em Buenos Aires em que o esposo alegava ser domiciliado em Gênova.

Segundo Boggiano, tal sentença “conjuga admiravelmente o principio de direito internacional público que veda a negação internacional de justiça com o principio de direito constitucional argentino de acesso à justiça”, pois respeita um possível foro de necessidade no caso de existir um vínculo com o foro, mas as normas de competencia do foro indiquem outro foro competente.

2 ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA

 Diferentemente do foro de necessidade, que emerge de sua incorporação legislativa por sua aplicação judicial com base em princípios constitucionais e convênios internacionais, a assistência judicial gratuita goza de um grande desenvolvimento no âmbito dos tratados internacionais. Todavia, o maior problema do desenvolvimento convencional é que se introduz o elemento de reciprocidade a tal “beneficio” e possivelmente coexista com uma discriminação geral aos estrangeiros ou imigrantes que não estejam considerados em tais acordos.

As convenções internacionais que incidem sobre o regime de assistência judiciária gratuita têm, portanto, um significado limitado, já que não obrigam o Estado a modificar o seu regime material interno, tão somente elimina a discriminação em razão de nacionalidade, residência ou domicilio para os sujeitos contemplados nos tratados. Por tal razão e não obstante que um Estado participe nos tratados que contenha tal prerrogativa, a assistência judiciária gratuita universal pode desenvolver-se por meio da aplicação de preceitos constitucionais ou instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos.

Tanto a Convenção Interamericana sobre Recebimento de Provas no Estrangeiro de 1975 (art. 7º) como a Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias da mesma data (art. 12) estabelecem que o benefício do estado de pobreza se regulará em conformidade com leis do Estado requerido, sem criar um sistema de cooperação. Este método  é completamente contrário ao estabelecido pelo art. 5º da Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial da Sentença e Laudos Arbitrais Estrangeiros de 1979, que reconhece o benefício do estado de pobreza outorgado pelo Estado de origem da sentença no Estado da representação.

A diferença essencial se encontra no fato de que em caso de reconhecimento e execução de sentenças, uma negativa do reconhecimento de assistência judiciária gratuita pode supor uma denegação de justiça em caso de que se negue o reconhecimento e o autor não possa ter acesso a outra jurisdição.

A Convenção Haya sobre procedimento civil teve um impacto muito importante, já que contém um título IV dedicado ao tema. Inclui, portanto um principio de não discriminação com base na nacionalidade (art. 20), um procedimento para confirmar o estado de necessidade (certificado de pobreza contemplado nos arts. 21,22 e 23) e gratuidade nas notificações, cartas rogatórias (art. 24).

Por fim, dentro do sistema de integração da União Europeia existe um avanço muito mais considerável sobre o assunto. Isso se deu em virtude de oRegulamento 44/2001, em seu art. 50, estabelecer que:  o solicitante que no Estado membro de origem houver obtido total ou parcialmente o benefício da justiça gratuita ou isenção de custas e gastos gozará, no procedimento previsto na execução, do benefício de justiça gratuita mais favorável ou da isenção mais ampla prevista pelo direito do Estado-membro requerido.

3 CAUTIO IUDICATUM SOLVI

Outra prática que prejudica consideravelmente o acesso à justiça no DIPr é o estabelecimento de uma garantia para ter acesso a um jurisdição estrangeira, seja por não ser nacional em determinado Estado, seja por não estar domiciliado no mesmo. A cautio iudicatum solvi  é baseada em uma clara desconfiança do legislador sobre o estrangeiro, principalmente pela “falsa” ideia se que o estrangeiro tem mais possibilidade de sair do país durante a demanda.

Existem convenções que proíbem claramente o estabelecimento de tal caução. Em matérias específicas encontramos a eliminação da caução em convenções sobre menores e obrigações alimentícias como, por exemplo, o art. 22 da Convenção de Haya sobre sequestro de Menores e o art. 9.2 da convenção de Nova Iorque de 1965 que versa sobre alimentos no estrangeiro.

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A convecção de Haya sobre Procedimento Civil tem um capitulo inteiro sobre cautio iudicatum solvi, que em grande medida foi substituído pela Convenção de Haya para Facilitar o Acesso Internacional à Justiça para os Estados. Tal convenção funciona sob a combinação de uma proibição de estabelecimento de caução ou deposito em razão de nacionalidade, domicilio ou residência, sendo aplicada diversas vezes por Tribunais Argentinos e espanhóis.

Dentro do Mercosul, o art. 4º do protocolo de Las Leñas  proíbe exigir caução ou deposito em razão da qualidade de cidadão ou residente permanente em outro Estado-parte.

CONCLUSÃO

No que tange ao foro de necessidade, a existência se uma regulamentação legislativa sobre  tema deve ser valorada de maneira positiva. Sem embargo, deve ser complementada por critérios claros, desenvolvidos de maneira interpretativa pela doutrina e jurisprudência, para evitar abusos e outorgar segurança jurídica com relação à definição dos casos em que exista impossibilidade de acessar outros foros, caso contrário os Tribunais exerceriam um imperialismo jurisdicional completamente distanciado do caráter extraordinário do foro de proteção.

O benefício de litigar sem custas no DIPr é muito limitado. Não se pode confiar este direito somente às autoridades diplomáticas e consulares. Seu efetivo estabelecimento, assim como um politica convencional favorável à cooperação nesta matéria, teriam o efeito indesejado de abrir a possibilidade eleição entre assistência diplomática e consular de um lado e os serviços de assistência judicial gratuita (com base na reciprocidade) nacionais dos Estados.

Por derradeiro, excluir critérios de nacionalidade, residência ou domicilio da aplicação da caução de vinculação no juízo eliminaria um critério incorreto e discriminatório nos sistemas jurídicos. Os Estados podem melhorar esse ponto por meio da jurisprudência ou modificação da legislação.

 

REFERÊNCIAS

AMARAL, Antonio Carlos et al. Direito do Comércio Internacional: aspectos fundamentais. São Paulo, Lex Editora, 2.ª ed., 2006.

CASELLA, Paulo Borba. Autonomia da vontade, arbitragem comercial internacional e Direito Brasileiro In: TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luis Roberto. O Direito Internacional Contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

CASTRO, Amílcar. Lições de Direito Processual Civil e Direito Internacional Privado. São Paulo: Editora do Brasil, 2000

DORBEKER. Miguel Rábago. El acceso a la justicia en casos de litigio internacional. Anuario del Departamento de Derecho de la Universidad Iberoamericana, ISSN 1405-0935, Nº. 34, 2004, págs.81-106.

FUX, Luiz. Homologação de sentença estrangeira. In: TIBÚRCIO, Carmen. BARROSO, Luis. Direito Internacional Contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006

VIRGOS. M. GARCIMARTÍN. F. Derecho procesal civil internacional. 2 nd ed., 2007.

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Sobre a autora
Ingrid Paula Gonzaga e Castro

Servidora do TJ-GO, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UCAM/RJ, Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC/GO, Doutora em Função Social do Direito pela FADISP, Pós-Doutora em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra-PT, Instrutora em técnicas autocompositivas, Professora na graduação e pós-graduações em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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