A possibilidade de usucapião dos imóveis vinculados ao sistema financeiro de habitação.

Uma análise jurisprudencial sobre o tema

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O presente artigo trata-se de um estudo acerca da possibilidade de usucapião dos imóveis oriundos do Sistema Financeiro de Habitação, discutindo-se a atual posição jurisprudencial sobre o tema.

1. INTRODUÇÃO

Devido às incipientes políticas habitacionais e urbanas instituídas no Brasil, que eram segregacionistas e de pouco alcance, surgiu a necessidade de se criar um programa mais amplo, mais palpável, que realmente tornasse concreto os meios de aquisição da casa própria pela população de baixa renda. Para esse mister, foi criado o Sistema Financeiro de Habitação, por intermédio da Lei 4.380 de 21 de agosto de 1964.

O SFH trata-se de uma modalidade de financiamento que permite a compra, construção ou reforma de um dado bem imóvel. Esse sistema foi criado com a finalidade de facilitar o acesso à casa própria pela população de baixa renda, mediante taxas e parcelas atrativas, inferiores ao cobrado nos financiamentos de instituições privadas que não o operam.

Em que pese ter sido instituído pela União Federal, pessoa jurídica de direito público interno, a operacionalização do sistema ficou a cargo de entidades privadas, a exemplo da Caixa Econômica Federal, intermediário financeiro mais comumente procurado para a celebração de contratos dessa natureza.

Os recursos destinados ao Sistema são de natureza pública, oriundos, na maioria dos casos, das Cadernetas de Poupança e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

A adesão ao programa é realizada por meio de contrato de mútuo -  avença pela qual uma das partes transfere coisa fungível a outra, obrigando-se a devolver-lhe coisa do mesmo gênero, quantidade e qualidade (PEREIRA, 2003, p. 220) - ou por alienação fiduciária, situação em que o devedor/fiduciante contrata a transferência ao credor da propriedade resolúvel do imóvel, nos moldes do que prescreve o art. 22 da Lei 9.514/97[1]. Surgindo como instrumento de efetivação e ampliação do direito à moradia, considerável parcela da população, especialmente os desfavorecidos economicamente, buscam a alternativa do SFH.

É cediço que a Caixa Econômica Federal é uma das principais operadoras do sistema, sendo esta artigo destinado, especificamente, à análise acerca da natureza dos recursos utilizados por esse agente econômico no financiamento dos imóveis e, consequentemente, a natureza desses bens. Com esse estudo, busca-se defender a tese de que esses imóveis, financiados pela Caixa Econômica Federal, não devem ser considerados bens públicos, não gozando, portanto, da proteção a que estes estão submetidos: a alienabilidade condicionada, a não onerabilidade, a impenhorabilidade e a imprescritibilidade.

Será dado maior enfoque na apreciação Jurisprudencial acerca do tema, registrando-se o atual posicionamento dos Tribunais e os fundamentos das decisões, posicionando-se contrariamente ao que vem sido dito.

Os Tribunais Pátrios, majoritariamente, apregoam que os imóveis oriundos de financiamento pelo SFH são impossíveis de serem usucapidos por serem considerados bens públicos, invocando, ainda, o caráter social do sistema. Ao contrário do que dispõe o Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o Judiciário respalda essa classificação dos bens em razão de sua destinação e não da natureza de seu titular, o que vai de encontro às disposições da Constituição Federal e do Código Civil.

De fato, não se duvida do caráter social do SFH, ocorre que não é concebível forçar a interpretação de que os bens provindos da Caixa Econômica Federal, pessoa jurídica de direito privado, entidade que representa o Estado despido das prerrogativas das pessoas jurídicas de direito público, sejam públicos.

O Estado, no âmbito da exploração de atividade econômica – não há como negar essa natureza nos financiamentos de imóveis -, comporta-se como verdadeiro empresário, não gozando de benefício que não seja extensível aos particulares.

A CEF é uma entidade exploradora de atividade econômica e não prestadora de serviço público como o é a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, por exemplo, empresa pública federal que teve reconhecida, pelo STF, prerrogativas de Fazenda Pública.

É indiscutível a natureza privada da CEF uma vez que promove diariamente contratos regidos pelo Direito Civil, tais como abertura de contas, financiamentos, empréstimos, contratos de penhor e até mesmo patrocínio de grandes e milionários clubes de futebol.

As empresas estatais, apesar de sujeitas às limitações de Estado, como o concurso público, a licitação e a vinculação aos princípios do Direito Administrativo, não gozam das prerrogativas conferidas aos entes da Administração Direta, autarquias e fundações públicas de direito público. Estas são agasalhadas por proteções especiais, de natureza material e processual. 

Dentre as benesses garantidas às pessoas jurídicas de direito público estão a proteção ao seu patrimônio, respaldado na supremacia e na indisponibilidade do interesse público e os privilégios processuais.

Frise-se, de logo, que a defesa da possibilidade de usucapião dos imóveis do SFH não deve ser entendida como temerária e apta a gerar burla ao sistema. Por óbvio, a análise dessa possibilidade deve ser submetida ao atendimento da legalidade, devendo sempre o magistrado estar atento a possíveis fraudes, evitando o desvirtuamento do instituto.

2. OS BENS DE TITULARIDADE DA CEF, VINCULADOS AO SFH, COMO BENS PRIVADOS

Antes de analisar a natureza dos bens de titularidade da CEF, necessário tecer breves considerações acerca da organização da Administração Pública.

O Estado pode desempenhar suas atividades de forma centralizada ou descentralizada. Naquela as diversas pessoas políticas que compõem nosso sistema federativo – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios - assumem a execução direta das atividades administrativas, valendo-se de seus inúmeros órgãos internos (CARVALHO FILHO, 2015, p. 475) Já nesta, o Estado cria pessoas jurídicas para a prestação de certos serviços ou atividades ou delega a sua execução para pessoas jurídicas já existentes: os particulares, surgindo os institutos das permissões e concessões.

A Caixa Econômica Federal surgiu nessa lógica da administração descentralizada, integrando a chamada administração indireta. O Decreto-Lei 200/67 estabelece que a Administração Indireta, compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: Autarquias, Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista e as fundações públicas. O referido decreto define empresa pública como:

 a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Govêrno seja levado a exercer por fôrça de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito

A descentralização administrativa decorre da incapacidade estatal de sempre se fazer presente nas diversas contingências que exigem a gestão da coisa pública. Em que pese o dispositivo acima colacionado afirme que empresa pública é criada por lei para exploração de atividade econômica, é cediço que a lei apenas autoriza a criação de referida entidade, sendo que sua personalidade somente se aperfeiçoa com o registro de seu respectivo ato constitutivo. Outrossim, a sua criação pode se dar especificamente para a prestação de serviços públicos, não se limitando a exploração de atividade econômica. Esta, na realidade, somente pode ser desenvolvida em caráter excepcional, para atender aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

A Caixa Econômica consiste em uma empresa pública vinculada à União criada para desenvolver atividades de cunho bancário, com o intuito de competir com as demais instituições privadas, não lhe sendo aplicada nenhuma prerrogativa de Fazenda Pública. Trata-se de atuação do Estado-Empresário, intervindo no domínio econômico, por oferecer os mesmos serviços privados que os demais bancos.

Entende-se como razoável o argumento de que certos bens de pessoas particulares podem se submeter ao regime dos bens público, desde que afetados a prestação de algum serviço público pela Administração, preconizado pela doutrina da professora Di Pietro. No entanto, as empresas públicas e sociedades de economia mista, como a CEF e o Banco do Brasil S/A, respectivamente, são entidades voltadas para o serviço privado, estando seus bens atrelados a esses serviços.  

Serviço público pode ser definido como toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material, com a finalidade de satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como seu dever e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público. (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 687)

Deveras as empresas estatais podem ser criadas para a prestação de serviços públicos, a exemplo da ECT que detém a titularidade do serviço postal, no entanto as entidades bancárias que integram a Administração Pública oferecem serviços eminentemente privados, tais como depósitos, empréstimos, financiamento, penhor, dentre outros não regidos pelo Direito Público. Essas atividades, ao contrário dos serviços públicos, são prestadas em grau de igualdade com os particulares, para assegurar o valor da livre concorrência estabelecido pela Constituição Federal de 1988.[2]

O próprio Decreto 7.973/13[3], que aprovou o Estatuto da CEF, previu as finalidades da empresa dentre as quais se incluem a de  realizar quaisquer operações, serviços e atividades negociais nos mercados financeiros e de capitais, internos ou externos; prestar serviços bancários de qualquer natureza, por meio de operações ativas, passivas e acessórias, inclusive de intermediação e suprimento financeiro, sob suas múltiplas formas,  realizar operações de câmbio, dentre outras, ou seja, atividades típicas da inciativa privada.

Não se pode dizer, assim, que os bens de uma empresa que opera circulando riquezas e obtendo lucros vultosos sejam considerados bens públicos, tanto pelo fato de pertencerem a pessoas privadas como por estarem atrelados a um serviço de natureza privada.

Destarte, ainda que se tenha como aceitável a tese de que os bens de pessoas privadas vinculados à prestação de serviços públicos estão sujeitos ao regime jurídico dos bens públicos, não se concebe que os imóveis do SFH, comprados pela CEF, sejam públicos já que provêm de um financiamento, ou seja, de um contrato regido puramente pelas normas do Direito Civil, sendo indiferente o fato de a empresa integrar a Administração Indireta.

Entende-se que conceder um privilégio à CEF como se pessoa pública fosse é inconstitucional, porquanto teríamos violado o princípio da ordem econômica que estabelece o valor da livre concorrência, pois a instituição estaria se beneficiando em detrimento das empresas privadas comuns.

3. O ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS E SUAS RESPECTIVAS FUNDAMENTAÇÕES

Ampla jurisprudência, em especial a dos Tribunais Regionais Federais, tem inadmitido a possibilidade de usucapião dos imóveis adquiridos sob o regime do Sistema Financeiro de Habitação, financiados pela Caixa Econômica Federal, por entenderem que estes detêm natureza pública. 

O fundamento é que a empresa pública, embora seja constituída sob personalidade jurídica de direito privado, vale-se de recursos públicos para a manutenção do Sistema.[4]

Oportuno ilustrar esse entendimento por intermédio do voto do Desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Luiz Carlos Cervi:

Esta Corte entende não haver possibilidade de usucapir imóveis hipotecados em virtude da aplicação de recursos públicos de fomento a construção civil e aquisição da moradia própria (Sistema Financeiro de Habitação).

A CEF, enquanto responsável pelo Sistema Financeiro de Habitação, é o órgão condutor da política habitacional, tendo por finalidade estimular a construção e o financiamento de habitações de interesse social. Permitir a aquisição por usucapião de imóvel acometido desse tipo de impasse consiste em privilegiar o interesse meramente particular em prejuízo da sociedade e do interesse público, o que não se pode aceitar, tendo em vista que o imóvel, nessas condições peculiares, reveste-se da qualidade de bem público.

Invoca-se, também, a função social estabelecida em lei que reveste o sistema Financeiro de Habitação, ao proporcionar à população de baixa renda o acesso à moradia própria.[5] Em suma, os argumentos giram em torno do aspecto diferenciado do financiamento – voltado para os hipossuficientes de recursos – e a natureza da verba empregada para a aquisição dos imóveis.

Não obstante o entendimento acima exposto, tem-se que se trata de verdadeira inovação do Poder Judiciário, porquanto o nosso ordenamento não veda essa possibilidade de aquisição da propriedade sobre os bens do SFH. Ademais, a jurisprudência tem caminhado em sentido contrário ao que dispõe a legislação, pois o Código Civil, em seu art. 98, foi claro ao estabelecer que bens públicos são apenas aqueles pertencentes às pessoas públicas, o restante, todos são bem privados.

4. CRÍTICA AO POSICIONAMENTO DA JURISPRUDÊNCIA

Antes de se articular as opiniões a respeito do entendimento jurisprudencial acima revelado, necessário traçarmos o panorama em que se poderia cogitar a incidência da usucapião.

O reconhecimento do instituto pressupõe o inadimplemento contratual por parte do financiado, já que o cumprimento regular do contrato tem o condão de desonerar a propriedade (mútuo) ou de convertê-la definitivamente em nome do devedor (alienação fiduciária). Destarte, são necessárias duas circunstâncias: a extinção do contrato de financiamento e a consequente retomada do imóvel pelo agente financeiro.

O requisito do tempo e da posse mansa e pacífica, portanto, começam a valer apenas depois da extinção do contrato, já que não se pode exigir do banco, na vigência do contrato, qualquer posição de interferência ou reinvindicação no exercício da posse do financiado. (CARVALHO, 2012, p. 76)

Logo, partimos do pressuposto de que o agente financeiro conquistou a propriedade do bem e não reivindicou a posse do mutuário, deixando passar lapso temporal que será contabilizado para a usucapião. Antes disso, na vigência do contrato, portanto, não se pode falar em animus domini exercido pelo possuidor, pois ainda está vinculado a uma relação obrigacional.

O que se defende aqui é justamente o reconhecimento do instituto da usucapião, se o juiz, no caso concreto, observar os requisitos de sua configuração. Para isso, é necessário que haja inércia da instituição bancária e, como veremos adiante, a boa-fé do ex-mutuário que invocar esse direito.

A jurisprudência, especialmente a dos TRFs, não parece crer na possibilidade de usucapião dos imóveis do SFH, julgando, por vezes, antecipadamente a lide por, supostamente, tratar-se de questão unicamente de direito. É comum, assim, que nem mesmo seja oportunizado ao pleiteante o direito de produzir provas acerca do preenchimento dos requisitos para essa aquisição de propriedade.

Destacaremos neste capítulo as principais críticas ao posicionamento dessa jurisprudência que, embora, não embasadas em qualquer dispositivo legal ou constitucional, tem sido majoritária. As críticas versarão sobre a suposta precariedade da posse invocada pelos Tribunais, sobre a natureza privada da CEF, que é uma das principais operacionalizadoras do sistema, e a inexistência de norma que proíba o reconhecimento da usucapião dos imóveis do SFH.

4.1 A ausência de norma constitucional ou infraconstitucional vedando a usucapião dos bens em discussão: A inovação do Judiciário no conceito de bem público, objeto já delimitado pelo legislador no Código Civil de 2002

Frequentemente os Tribunais pátrios têm invocado a finalidade social do SFH como argumento sustentador da tese de que seus bens são públicos. Quando não isso, atribuem esse caráter pela participação de verbas públicas na aquisição dos imóveis objetos do contrato de financiamento.

Trata-se de verdadeira criação jurisprudencial, uma vez que não existe omissão legislativa sobre o tema. Ao Código Civil coube delimitar o conceito de bens públicos no qual não se incluem os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito privado. Demais disso, o legislador não impôs nenhuma vedação à usucapião em comento, pois se assim o quisesse teria estabelecido já na lei de criação do SFH ou nas leis posteriores que o regulamentam de alguma forma.

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A Lei 5.741/1971 prevê que é crime o fato de alguém invadir ou ocupar, com o fim de esbulho possessório, terreno ou unidade residencial, construída ou em construção, objeto de financiamento do Sistema Financeiro da Habitação.[6]

Essa regra visa a intimidar as ocupações eivadas de má-fé, no entanto, parece ser de pouca aplicação em razão da dificuldade de se aferir o dolo específico de esbulho da propriedade. A disposição, por si só, não sugere a impossibilidade de usucapião dos bens do SFH, já que veda exclusivamente a ocupação com fins de esbulho, ou seja, as posses regulares, sem interferência ou reinvindicação da parte contrária não são, em tese, proibidas pelo dispositivo em comento.

A eventual destinação de recursos públicos para a aquisição dos imóveis não afasta a natureza privada do ajuste. De fato, toda pessoa jurídica de direito privado criada pelo Poder Público inicialmente tem seu patrimônio formado por recursos públicos, todavia, uma vez feita a incorporação esse capital vai se transmutando em privado. (CARVALHO, 2012, p. 77)

 Cabe ressaltar, ainda, que o critério de classificação dos bens como sendo públicos ou privados adotado pelo nosso Ordenamento foi o da titularidade do bem e não a fonte dos recursos que o custeiam. Logo, pelo simples fato de pertencerem a uma pessoa jurídica de direito privado, exploradora de atividade econômica, diga-se, já é possível afastar o regime jurídico dos bens públicos e de afastá-los da órbita de seu conceito.

De fato, poderia se entender que esse critério admite mitigação, de forma que, mesmo pertencendo à pessoa privada, estando os bens sujeitos à prestação de um serviço público poder-se-ia cogitar de aplicar o regime dos bens públicos. No entanto, em que pese a razoabilidade desse argumento, tem-se que a situação específica de um financiamento habitacional não se insere no conceito de serviço público. Portanto, a exploração de atividade econômica pelo Estado-Empresário constitui óbice à incidência do regime de direito público aos bens destinados a essa finalidade.

Ademais, não é pelo fato de a CEF pertencer à Administração Pública e de sua atividade bancária ser autorizada, regulada e fiscalizada pelo Poder Público que a transforma em entidade de direito público, sujeita a todas as prerrogativas de Fazenda Pública. Ora, podemos dizer que essas prerrogativas foram criadas para proteger patrimônio vinculado a serviços públicos e a atividades de interesse coletivo. O objetivo do legislador não foi estendê-las a certas pessoas privadas que competem com os particulares que não integram a Administração, pois a nossa ordem constitucional vigente assegurou o princípio da livre concorrência e estabeleceu a regra da sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.

Assim, conceder privilégio aos bens da CEF seria elevá-la a um patamar diferenciado das demais instituições financeiras, situação vedada pela ordem jurídica que impõe o princípio da paridade de direitos e obrigações entre as empresas estatais que desempenham atividade econômica e as demais empresas privadas. (CARVALHO, 2012, p. 79)

Quanto à posse precária e clandestina, também invocada pelos magistrados, conveniente primeiramente defini-las.

Posse precária, nas palavras de MONTEIRO (2012, p. 51), “é aquela que se origina do abuso de confiança por parte de quem recebe a coisa com obrigação de restituí-la e, depois, se recusa a fazê-lo”. Já a posse clandestina consiste naquela exercida às ocultas, às escuras, sem publicidade.

O art. 1.200 do Código Civil estabelece que “é justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária”.

Não há falar em posse precária se a instituição financeira simplesmente não reivindica o bem. Não há recusa, portanto, em devolvê-lo se o próprio titular não o requer. Assim, à medida que o tempo suficiente para a aquisição da propriedade for passando, sem embaraços da CEF, desse ser reconhecida a usucapião.

Quanto à clandestinidade, vale frisar que é comum que os possuidores arquem com o pagamento de IPTU do imóvel, bem como realizem benfeitorias, tais como instalação de telefone, água e rede elétrica, o que teria o condão de afastar a tese da posse às escuras.

Posse violenta igualmente não pode se cogitar, já que sua instauração se deu diante da celebração regular de um contrato.

Não sendo violenta nem clandestina nem precária, a posse, portanto, mostra-se justa e legítima, apta a ser reconhecida para fins de usucapião.

Outro ponto que merece ser comentado é que essas decisões oriundas dos TRFs vão de encontro à própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.[7]

Faz-se oportuno ilustrar o entendimento do Pretório Excelso por excerto de decisão monocrática da ministra Ellen Gracie, ao julgar o Recurso Extraordinário 536297.

"O recurso não merece prosperar. A possibilidade de os bens da Caixa Econômica Federal serem adquiridos por usucapião decorre da sua natureza de pessoa jurídica de direito privado, que realiza atividade tipicamente econômica (realização de empréstimos e financiamentos) em concorrência com outras instituições financeiras privadas.

 Corroborando esse entendimento, destaco do parecer do Ministério Público Federal:

“O cerne da controvérsia cinge-se à análise da natureza jurídica dos bens das empresas públicas e sociedades de economia mista, tendo em vista que, se forem considerados bens públicos, submetem-se ao regime jurídico da imprescritibilidade, ao passo que, se detiverem a natureza privada, podem ser adquiridos por usucapião.

O conceito de bem público foi estabelecido pelo art. 98 do Código Civil, que dispõe: ‘são bens públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem’. Também são considerados bens públicos aqueles que, embora não pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, estejam afetados à prestação de um serviço público.

Com relação às empresas públicas e sociedades de economia mista, cuja natureza jurídica é de direito privado, há duas situações distintas, uma vez que essas entidades estatais podem ser prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica.

Os bens das empresas públicas ou sociedades de economia mista prestadoras de serviço público e que estejam afetados a essa finalidade são considerados bens públicos. Já os bens das estatais exploradoras de atividade econômica são bens privados, pois, atuando nessa qualidade, sujeitam-se ao regramento previsto no art. 173, da Carta Magna, que determina, em seu § 1º, II, a submissão ao regime jurídico próprio das empresas privadas.

Nessa linha de entendimento, esse Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 220.906/DF, declarou a impenhorabilidade de bens da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, tendo em vista que a atividade econômica precípua da ECT está direcionada à prestação de serviço público de caráter essencial à coletividade.

Esta, entretanto, não é a hipótese dos autos, na medida em que a Caixa Econômica Federal, quando atua na realização de empréstimos e financiamentos, exerce atividade tipicamente econômica, inclusive, em concorrência com outras instituições financeiras privadas.

Por essa razão, insere-se a Caixa Econômica Federal, no caso presente, no regime normal das demais pessoas jurídicas de direito privado, não havendo óbice a que seus bens sejam adquiridos por usucapião, caso presentes os pressupostos constitucionais e legais."

A fundamentação do Supremo se pauta justamente no reconhecimento de que a CEF, sendo pessoa jurídica de direito privado que intervém no domínio econômico prestando serviços de natureza bancária, tipicamente privados, portanto, não poderia gozar da proteção que é conferida aos bens públicos.

Na decisão destaca-se a comparação feita entre ECT e CEF, aplicando-se àquela prerrogativas de Fazenda Pública por desempenhar serviço público de caráter essencial e a esta o regime jurídico a que estão sujeitas as empresas privadas, por prestarem serviços tipicamente privados, em concorrência com os particulares.

Em que pese a existência de precedentes do STF no sentido da possibilidade de usucapião dos imóveis adquiridos pela CEF, os demais tribunais, inclusive o STJ[8], não têm acompanhado esse entendimento nas suas decisões, por vezes negando direito patente do pleiteante da usucapião. Os tribunais preferem fazer tábula rasa aos precedentes do Tribunal Mor, decidindo tão somente com respaldo em suas convicções pessoais, muitas vezes nem oportunizando a produção de provas no processo.

Não se entende esse posicionamento persistente, pois não há respaldo legal, muito menos constitucional e vai de encontro até mesmo ao que entende o STF, que já se manifestou especificamente sobre a matéria em discussão.

Apesar de pouco comum, também se pode observar alguns precedentes seguindo a esteira do que aqui se defende. Em abril de 2012, o magistrado da 4ª vara federal da seção judiciária de Alagoas julgou procedente pedido feito por assistido da Defensoria Pública da União em Alagoas, reconhecendo a possibilidade de aquisição por usucapião de bem hipotecado, em razão da necessidade de cumprimento da função social do imóvel, a despeito de ser financiado pelo SFH.[9] 

Em pesquisa aos precedentes do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, foi percebido que a argumentação principal das decisões que denegam o reconhecimento de usucapião dos imóveis atrelados ao SFH é a natureza pública da verba empregada para a construção desses bens, embora esse não seja o critério adotado pelo ordenamento para se aferir a qualidade de um bem como sendo público ou privado. Não obstante essas recorrentes decisões, já há precedentes[10] da Corte permitindo a incidência do instituto quando o possuidor não ostentar a qualidade de ex-mutuário ou seu sucessor e o imóvel não for reivindicado pela CEF, mesmo que este tenha sido adquirido mediante recursos do SFH.

Esse entendimento parece ser contraditório e carecedor de isonomia, pois reconhece a usucapião apenas à pessoa que não tenha vínculo com a instituição financeira, em detrimento de ex-mutuários que pleiteiam o mesmo pedido. Ora, se a fundamentação do Tribunal repousa no caráter público dos recursos que são empregados para a construção dos imóveis, porque então reconhece a usucapião apenas a certa categoria de pessoas? Afinal, é ou não possível adquirir imóveis do SFH mediante usucapião? Parece que para algumas pessoas sim, outras não.

O Tribunal parece vacilar em suas razões, pois o que dá a entender é que a grande finalidade das negativas de usucapião aos mutuários em débito com a CEF é a proteção do contrato de financiamento da instituição financeira, mesmo que seja constatada a boa-fé do possuidor.

4.2 Decisões Judiciais “engessadas”, sem análise do caso concreto: Julgamento Antecipado da Lide

É comum nos depararmos nas lides judiciais em que se pleiteia o reconhecimento da prescrição aquisitiva dos imóveis do SFH com a figura do julgamento antecipado, hoje previsto no art. 355, inciso I, da Lei 13.105/15[11] (Novo Código de Processo Civil). Os juízes, ao conhecer da demanda, julgam-na antecipadamente por, supostamente, tratar-se de questão unicamente de direito, tratando-a como incontroversa. Ocorre que essa temática é passível de discussão e de análise fático-probatória, já que o direito invocado não é afastado pelo nosso ordenamento.

Essas decisões comumente violam os princípios basilares estabelecidos pela CRFB: o do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal[12], pois impedem a produção de provas pelo demandante que quer demonstrar o atendimento aos requisitos da usucapião e a legitimidade de sua posse.

O contraditório consiste no direito das partes de terem conhecimento de todos os atos do processo e de poder dele participar.

Já a ampla defesa consiste em um desdobramento do princípio do contraditório, pois oferece os meios necessários ao jurisdicionado para que leve ao processo civil, criminal ou administrativo os argumentos necessários para esclarecer a verdade, ou, se for o caso, faculta-lhe calar-se, não produzindo provas contra si mesmo. (BULOS, 2014, p. 696)

Os juízes, assim, decidem de forma inexorável, caindo na superficialidade ao esquecer que cada processo que se responsabilizam representa a vida de um ser humano, que sob certo aspecto, precisa de solução.

Infelizmente, o que percebemos é que nosso Judiciário tem se mostrado, por vezes, alheio às demandas sociais que lhe são levadas. É lamentável tal conduta, pois na maioria das vezes quem busca o reconhecimento do direito são pessoas de baixa renda que não possuem qualquer outro imóvel para morar e não pessoas abastadas que querem acumular patrimônio. Para proteger instituições bancárias, ao revés, nota-se verdadeiro ativismo.

O magistrado, ao exercer a jurisdição, deve garantir às partes igualdade de tratamento, a fim de que se evite o excesso e o abuso de poder econômico sobre os cidadãos, principalmente sobre os menos favorecidos na relação jurídica material ou processual.

A produção de provas é inerente ao exercício do direito de defesa pelas partes em um dado processo. Não oportunizar essa etapa processual foge aos ditames do devido processo legal, constitui cerceamento do direito de defesa.

O STJ, ao julgar Recurso Especial em que se que se questionou o julgamento antecipado da lide, ratificou o entendimento de que o julgamento antecipado de uma ação, sem a necessária produção de provas, constitui cerceamento de defesa e ofensa aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal[13]

Faz-se oportuno colacionar excerto do voto do Ministro Luis Felipe Salomão ao se debruçar sobre a questão.

"No caso, observa-se que o juízo de piso não indeferiu as provas requeridas, a tempo oportuno, pela autora. Na verdade, o julgador passou ao exame direto da lide, julgando-a antecipadamente, dando pela improcedência do pedido por ausência de provas.

De fato, verifica-se que a recorrida, por duas vezes, requereu a produção de prova. A primeira à fl. 39, ao impugnar a contestação da ora recorrente, indicando rol de testemunhas. A segunda, às fls 45/46, quando, em cumprimento ao despacho ordinatório de fls. 43/43v, especificou as provas documental, pericial e testemunhal que desejava produzir (fls. 45/46).

2.1. O procedimento caracteriza, além de cerceamento ao direito de defesa da parte, que lhe é constitucionalmente assegurado, também ausência de fundamentação válida da sentença.

2.2. Com efeito, a efetividade do processo não é princípio disponível pelas partes.

Portanto, com a angularização da relação processual, a instrução probatória, questão de ordem pública, deve ser observada.

Evidenciada a necessidade da produção de provas pelas quais protestou a autora, constitui cerceamento de defesa o julgamento antecipado da demanda,e violação aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, - preceitos de ordem pública - conforme o disposto no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal."

A produção de provas nesses processos que tratam de usucapião é imprescindível para se demonstrar a posse não precária do imóvel, bem como os requisitos dessa prescrição que dependem da modalidade invocada.

O julgamento antecipado, nas hipóteses de questões unicamente de direito, é cabível se o direito pleiteado pela parte não encontra guarida no ordenamento jurídico, quando existe uma súmula, por exemplo, vedando terminantemente aquele direito. Nessas situações, conseguimos ver sentido no julgamento antecipado, já que em qualquer instância que o pleiteante recorra, o seu direito será negado. Ao contrário dessa situação, a questão da usucapião dos imóveis do SFH admite discussão, tendo respaldo até mesmo em precedentes do STF.

Logo, se a questão de direito não é pacífica, não cabe ao Judiciário impô-la como verdade absoluta, sem uma análise aprofundada dos casos concretos. O papel do julgador não é criar suas convicções particulares, sem respaldo no ordenamento jurídico, e aplicá-las indiscriminadamente a cada processo que achar semelhante a outro que já viu. Ao contrário, é analisar cada processo como sendo único, consciente de que está lidando com vidas humanas que precisam de uma solução legal e justa.

Ao Judiciário cabe a salvaguarda dos princípios fundamentais consagrados pela Constituição Federal, dentre eles o da ampla defesa e do contraditório, pautando sua atividade na observância atenta e séria aos argumentos e às provas de ambas as partes, sem favoritismos e sem a influência de convicções pessoais, alheias ao processo. Deve-se garantir às partes do processo a possibilidade de defenderem o seu direito, de torná-lo visível, do contrário teremos decisões arbitrárias e ilegais, violadoras de garantias inafastáveis.

4.3 A imprescindibilidade da boa-fé do possuidor para o reconhecimento da usucapião, a fim de se afastar possíveis burlas e distorções do Sistema.

Como já foi dito, o pressuposto para se cogitar uma ação de usucapião é a extinção do contrato entre financiado e o banco, com a respectiva transferência ou consolidação da propriedade em favor deste. A partir desse marco é que irá começar a contagem do tempo e que serão averiguadas as condições da posse exercida sobre o imóvel.

Importante destacar, de antemão, que não se pretende defender a utilização da usucapião como meio de isentar o devedor do cumprimento contratual, mas tão somente o reconhecimento de um direito que, por vezes se configura sob os auspícios da boa-fé, mas que não é amparado pelo Judiciário.

Na praxe forense é comum nos depararmos com demandas de usucapião manejadas pelos chamados “gaveteiros”. 

O contrato de gaveta deriva de uma relação jurídica informal entre mutuário e um terceiro. Nessa relação, o mutuário, titular do contrato com o agente financeiro, repassa o imóvel a terceiro, sendo estipulado na avença que este ficará responsável pelo pagamento do restante das parcelas do financiamento até sua integral quitação. Ocorre que muitas vezes essa transferência não é comunicada ao banco e também não conta com o respectivo registro em cartório, o que tem levado o Judiciário a não reconhecer esse tipo de contrato.

Conquanto haja norma expressa que veda esse tipo de transação sem a interveniência do agente financeiro[14], para não desproteger aquele adquirente de boa fé, que comprou o imóvel na certeza de estar realizando um negócio definitivo e dotado de força jurídica, a Lei nº 10.150 de 21 de dezembro de 2000 alicerçou no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de regularização desses contratos, que tenham sido celebrados até 25 de outubro de 1996, e sua consequente validade perante o universo jurídico[15].

Desta feita o terceiro adquirente passou a ser reconhecido como mutuário perante as instituições financeiras, o que implica dizer que também poderá ser titular da ação de usucapião.

As demandas que chegam ao Judiciário comumente são a usucapião especial urbana, individual e coletiva.

Na usucapião especial urbana individual, também chamada de constitucional, o possuidor deve ter pelo menos cinco anos de residência em imóvel de até 250m², de forma ininterrupta e sem oposição, utilizando-o para fins de moradia e desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Para a usucapião especial urbana coletiva, prevista no art. 10 do Estatuto da Cidade, além da limitação da área, da posse ininterrupta e sem oposição, é necessário que o solo seja ocupado por população de baixa renda para sua moradia e que não seja possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor. Aqui, também, os possuidores não poderão ser proprietários de nenhum outro imóvel.

Julgado procedente o pedido da usucapião coletiva, o juiz assim a declarará na sentença que servirá como título para registro no cartório de registro de imóveis[16]. Nessa sentença o juiz fixará igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão de área que cada um ocupava incialmente, salvo acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. [17]

A finalidade da lei é atender aos reclamos da justiça social e do direito à moradia, pois somente admite a aquisição da propriedade por pessoa de baixa renda que, comprovadamente, não tenha recursos para comprar um imóvel e que não tenha onde morar.

Nessas duas modalidades de prescrição aquisitiva, a legislação não exige expressamente a presença da boa-fé do possuidor nem mesmo o justo título devido à presunção de suas presenças.

Não obstante isso, tem-se como imprescindível, na análise do caso concreto pelo juiz, que seja aferida a boa-fé do requerente quando se tratar de posse sobre imóvel do SFH. É que é necessário resguardar a seriedade e a lisura do sistema contra possíveis fraudes e condutas incompatíveis com a política do programa governamental. Não se pode olvidar a sua verdadeira finalidade: propiciar o acesso à moradia própria, especialmente para as pessoas de baixa renda. Assim, presumir sempre boa-fé por parte do possuidor, pode ser medida temerária e negligente, principalmente porque o direito invocado decorre de um inadimplemento contratual.

Se não for perquirida a boa-fé, poderemos nos deparar com os mais diversos contrassensos, verdadeiras burlas ao sistema. Uma situação que se pode antever é o inadimplemento contratual com a finalidade ilícita de adquirir o imóvel mediante usucapião.  Dessa maneira, o contrato restaria extinto e a propriedade do imóvel, que foi garantido em hipoteca, seria transferida ao agente financeiro. A partir daí, se o banco, já sendo proprietário do imóvel, mantivesse conduta desidiosa e não reivindicasse o bem por qualquer motivo, poderia perdê-lo pela usucapião invocada pelo possuidor.

Outra situação esdrúxula seria a ocupação por terceiro no imóvel com a aquiescência do titular do contrato de financiamento, também com vistas a adquiri-la posteriormente pela usucapião.

O caput do art. 1.201 do Código Civil dispõe que "É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa" e completa em seu art. 1.202 que “a posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente”.

Silvio de Salvo Venosa, (2013, p.70) ao discorrer sobre a boa-fé do possuidor, assim leciona:

"No caso em exame, o julgador avaliará as circunstâncias referidas na lei, concluindo que na espécie reunia o agente, tomando-se como padrão o homem médio, condições de conhecer a ilegitimidade de sua relação de fato com a coisa. O critério é a subjetividade. Não bastará, contudo, alegar apenas ausência de ciência de ilicitude, atitude passiva do sujeito. A consciência de possuir legitimamente deve vir cercada de todas as cautelas e investigações idôneas para caracterizar o fato da posse. Há necessidade, portanto, de um aspecto dinâmico nessa ciência de boa-fé. Não basta ao possuidor assentar-se sobre um terreno que se encontra desocupado, sem investigar se existe dono ou alguém de melhor posse. Tão somente a atitude passiva do agente não pode caracterizar boa-fé, porque é curial que ao homem médio incumbe verificar ordinariamente se a coisa tem outro titular. O estado de boa-fé requer ausência de culpa, devendo, pois, o possuidor empregar todos os meios necessários, a serem examinados no caso concreto, para certificar-se da legitimidade de sua posse. A situação poderá exigir o exame da gradação de culpa, equivalendo a culpa grave ao dolo."

Para a aquisição de propriedade dos imóveis vinculados ao SFH mediante usucapião pressupõe-se o inadimplemento contratual e sua consequente extinção, mas o motivo que enseja essa inadimplência não deve ser o propósito de aquisição do bem mediante usucapião. Essa situação deve ser averiguada pelo juiz no caso concreto justamente pata evitar a aquisição do imóvel mediante má-fé.

A inadimplência, assim, deve se dar por circunstâncias alheias à vontade do devedor, tais como o desemprego, doença grave em si próprio ou em pessoa da família, dentre outras situações que evidenciem a boa-fé do possuidor e que não deixou de pagar sponte própria o financiamento.

Poder-se-ia questionar se, ciente do inadimplemento contratual e permanecendo no imóvel, não já se estaria configurada a má-fé do possuidor. Na verdade, não se mostra razoável exigir que o possuidor, destituído de qualquer local para morar, entregue espontaneamente sua moradia porque sabe que está inadimplente, já que o ato de permanecer no imóvel revela comportamento instintivo, decorrente de uma necessidade vital à sobrevivência. É necessário que se esclareça que o inadimplemento deve ser escusável, pois do contrário não há falar em boa-fé.

Nas palavras de CARVALHO (2012, p. 16) “a moradia é uma das condições de existência humana, pela qual o indivíduo supre a sua necessidade de ter um local para viver, e daí determinar-se de acordo com as suas pré-disposições pessoais”.

Faz parte da própria natureza humana ater-se à sua moradia, ainda que se saiba que não há condições financeiras de custeá-la, principalmente se não existem outras alternativas a se recorrer. É que o ser humano necessita de um teto para se resguardar, para guardar seus bens, para abrigar a família e para se autodeterminar. A conduta de permanecer do imóvel é, pois, automática e espontânea, já que decorre de instinto natural de preservação.

Exigir conduta diversa, para fins de apontar a boa-fé na posse aqui preconizada, seria ir contra a própria reação natural e esperada do ser humano.

Perquirir a boa-fé do possuidor é medida que se impõe, principalmente porque o SFH detém, inegavelmente, uma destinação social, uma vez que possibilita às famílias de baixa renda a aquisição de moradia própria. Desta feita, o Estado-Juiz deve ter o dobro de cautela ao reconhecer uma usucapião dos bens vinculados a esse sistema, pois uma vez que eivada de fraude, toda a massa destinatária do programa restaria prejudicada.

É necessário que se tenha em mente que, conquanto a CEF seja pessoa jurídica de direito privado e seus bens sejam considerados particulares, esta integra a Administração Pública, de forma que a má-fé de quem quer que detenha os seus bens deve ser considerada ato atentatório aos próprios interesses do Estado, o que deve ser reprimido pelo Poder Judiciário.

5. CONCLUSÃO

Do exposto, conclui-se que o pedido de usucapião de imóvel vinculado ao SFH encontra respaldo no Ordenamento Jurídico quer pela ausência de norma vedando o reconhecimento do instituto quer pela expressa definição feita pelo CCB dos bens públicos, na qual não se inserem os bens das pessoas jurídicas de direito privado.

Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão, reconhecendo que a CEF, por ser pessoa jurídica de direito privado que intervém no domínio econômico prestando serviços de natureza bancária, não pode gozar da proteção que é conferida aos bens públicos.

Por mais que a finalidade, de fato, tenha um caráter social, já que é voltado para as pessoas de baixa-renda que não tenham casa própria, não se vislumbra que um financiamento habitacional bancário seja considerado serviço público, já que qualquer particular da iniciativa privada pode também fazê-lo.

Além do mérito do tema propriamente dito, questionou-se a condução de alguns juízes nos processos que envolvem usucapião do SFH, ao julgar antecipadamente a lide, sem oportunizar ao requerente a produção de provas do direito que alega ter. Foi visto que essa extinção do processo viola os princípios basilares assegurados pelo art. 5º da Constituição Federal: o contraditório e a ampla defesa, já que a possibilidade de prescrição aquisitiva dos bens atrelados ao SFH é tema passível de discussão, principalmente porque existem precedentes positivos no âmbito do STF.

Essa suposta “questão unicamente de direito” e incontroversa, alegada pelos Tribunais, mostra-se como verdadeira criação do Judiciário, pois não tem nenhum respaldo legal muito menos constitucional. Ao contrário, não há legislação que proíba a espécie de usucapião sob análise e, além disso, a própria Constituição, ao estabelecer disposições sobre a ordem econômica, ampara o princípio da livre concorrência, vedando a extensão de prerrogativas públicas às entidades da Administração Pública que não possam ser aplicadas aos particulares em geral.

Por fim, mostra-se necessário, no caso concreto do processo de usucapião, que seja averiguada pelo juiz a boa-fé do pleiteante a fim de se evitar fraudes ao SFH. Essa necessidade decorre do fato de que somente se pode cogitar uma usucapião de imóveis vinculados ao SFH diante de um inadimplemento contratual, de forma que o agente financeiro, no caso a CEF, já tenha adquirido a propriedade do bem. Foi visto que no contrato de mútuo, diante da inadimplência, a Caixa poderá adjudicar o imóvel concedido em hipoteca, caso não seja adquirido por algum particular em leilão. Na alienação fiduciária, tem-se que a propriedade do bem sempre foi do banco, consolidando-se em seu favor definitivamente com a extinção do contrato pelo seu não cumprimento.

Já que a possiblidade de usucapião pressupõe o inadimplemento do financiamento, o juiz deve estar atento a possíveis burlas ao sistema, a exemplo do requerente por livre e espontânea vontade deixar de pagar o empréstimo tomado perante a empresa bancária para adquirir o imóvel pela usucapião.

Cumpridos os requisitos da boa-fé e os previstos em lei, que irão variar conforme a modalidade de usucapião, tem-se que esse instituto pode ser reconhecido pelo Judiciário. A análise atenta do caso concreto é dever do julgador que deve sempre estar aberto às teses que revestem um determinado assunto. Os magistrados devem, também, atentar para os imperativos da justiça social, do direito à moradia e do princípio da dignidade humana em seus julgamentos e, principalmente, evitar inovações sobre questões que não possuem amparo no Ordenamento Jurídico e que provêm exclusivamente de suas imaginações. 

REFERÊNCIAS

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STJ - REsp 1221243/PR, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/2014, DJe 10/03/2014

TRF-5ª Região, PROCESSO: 08012679720134058000, EIAC/AL, DESEMBARGADOR FEDERAL EDÍLSON NOBRE, Pleno, JULGAMENTO: 12/08/2015, PUBLICAÇÃO:

STJ - REsp: 714467 PB 2005/0003958-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 02/09/2010,  T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/09/2010

TRF5 PROCESSO: 200683000005358, AC406029/PE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ MARIA LUCENA, Primeira Turma, JULGAMENTO: 21/08/2008, PUBLICAÇÃO: DJ 15/09/2008 - Página 345

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Sobre a autora
Maria Tereza Arruda Silva do Nascimento

Advogada. Servidora Pública Federal atuante na área de Gestão de Pessoas. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-Graduanda em Direito Público pela PUC-Minas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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