DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:
UMA ABORDAGEM DA QUESTÃO PRISIONAL FEMININA.
Área de conhecimento: Direitos Humanos.
Autor: Luiz Júnior Nunes de Carvalho[i]
RESUMO
O presente trabalho partiu do anseio em abordar a condição das mulheres apenadas, que encontram-se dentro das estruturas prisionais de nosso país, sendo que os direitos e garantias fundamentais inerentes a todos os cidadãos, normatizados a partir da Constituição Federal de 1988, também são direcionados para as detentas, que pelo fato de terem sua liberdade temporariamente restringida, não perdem esses direitos; porém, a compreensão do quadro estrutural da maioria dos presídios leva ao entendimento que a dignidade humana, na grande totalidade dos casos e inteiramente ou parcialmente negligenciada, estando estas mulheres a mercê de uma estrutura falida e que não ressocializa as apenadas após o término do cumprimento da pena.
Palavras-Chave: Constituição Federal; Dignidade Humana; Mulheres apenadas;
ABSTRACT
This work was the desire to examine the status of women apenadas, which are structures inside the prisons of our country, and the fundamental rights and guarantees inherent to all citizens, normalized by the Constitution of 1988, are also directed to the inmates, that because they have their freedom restricted temporarily, do not lose these rights, but the understanding of the structural framework of most prisons leads to the understanding that human dignity, in all cases large and wholly or partially neglected, these women being at the mercy of a structure that does not bankrupt and reintegrating the apenadas after the end of the sentence.
KEYWORDS: Constitution, Human Dignity; Women apenadas;
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa, além de encerrar um período de estudos acadêmicos, iniciados em Agosto de 2008, que deverão serem complementados com a pós graduação nesta área de conhecimento; também tem por objetivo promover à abordagem acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, a partir do levantamento bibliográfico concernente a questão prisional feminina no Brasil; demonstrando a importância da efetivação deste princípio fundamental contido dentro do nosso ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
Neste sentido, tal fundamento de nosso Estado democrático de Direito, tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna, seja na esfera da ordem social, considerando as origens remotas a que podem ser reconduzidas a noção de dignidade, estando a mesma cada vez mais valorizada e reconhecida a partir do século XX, especificamente ao término da Segunda Guerra Mundial.
Desta maneira, a dignidade humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições notadamente após ter sido consagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948, onde o fato de que cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para com base em sua própria decisão, torna-se consciente de si mesmo, de auto determinar sua conduta, bem como de formatar a sua existência.
Assim, assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais, apontando para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade, levando todos a buscarem a efetiva legitimação das garantias constitucionais, para qualquer pessoa, independentemente da situação que se encontra ante ao Estado (livre ou presa).
A Constituição de 1988 buscou estruturar a dignidade da pessoa humana de maneira a conferir plena norma, projetando-a sobre todo o sistema jurídico, contido e nele disciplinados todos os demais sistemas que constitui um principio base da própria existência do Estado Democrático de Direito do Brasil, conforme Art.1º, inciso III, é um valor guia que imanta toda a Constituição e através dela, todo sistema jurídico.
As violações à dignidade da pessoa humana ao longo da história foram, gradativamente, perdendo espaço para um conjunto de princípios, que passaram a reconhecer direitos intrinsicamente ligados a pessoa humana, sendo que, o estabelecimento destes direitos de forma constitucional possui caráter de fundamental relevância.
O direito é um sistema concebido como sendo um conjunto de princípios e normas com finalidade básica de reger a sociedade e organizar o Estado, sendo objetivo do mesmo alcançar um bem comum, uma sociedade justa, com a finalidade de reduzir as desigualdades sociais, é por isso, a Constituição Federal se preocupou em, expressamente consignar, como princípio, a dignidade da pessoa humana.
Esta dignidade permeará o presente trabalho, que possuí sua divisão em três capítulos, sendo os mesmos, direcionados para a análise deste referido princípio, a partir da questão prisional feminina e a consequente desvinculação dos direitos inerentes a pessoa humana, em especial os direitos das apenadas do Sistema Prisional Feminino brasileiro.
Neste sentido, nos últimos anos, tem-se observado que inúmeros são os estudos acerca das relações de gênero, como sobre a ocupação da mulher no mercado de trabalho, sua ascensão política, participação em ONGs e Movimentos Sociais. Apesar disso, são incipientes os estudos sobre a ascensão da mulher no mundo do crime e principalmente no estudo referente ao Sistema Penitenciário brasileiro.
O primeiro capítulo trabalha a questão da dignidade da pessoa humana no contexto brasileiro, destacando as inúmeras transformações do conceito de dignidade em diferentes períodos da história; demonstrando como as diferentes sociedades passaram a encarrar este conceito de forma a possibilitar sua aplicabilidade, em casos concretos.
Este conceito de dignidade também emerge no Brasil, sendo realizado um levantamento de toda sua caminhada histórica, ao longo de nossa formação institucional; assim como; as diversas influências externas que contribuíram para alicerçar a dignidade ao patamar de Clausula Pétrea em nosso ordenamento jurídico, a partir da Constituição de 1988.
No segundo capítulo o princípio da dignidade humana é trabalhado de forma mais pontual, concernente a situação do Sistema Penal Brasileiro, destacando se a figura feminina, dentro deste cenário; para tanto, é realizado um levantamento acerca das diversas definições de pena, para os doutrinadores que abordam a questão penal.
Após a análise da pena, temos o cumprimento da mesma e a busca pela compreensão sobre as dificuldades enfrentadas pelas apenadas dentro das estruturas prisionais brasileira, demonstrando a relevância do respeito ao princípio da dignidade humana, principalmente devido as características peculiares intrínsecas as mulheres apenadas.
No terceiro capítulo temos a abordagem dos direitos inerentes as apenadas dentro das estruturas do sistema penitenciário brasileiro, norteado pelo cumprimento da pena de forma digna; pois o fato de as mesmas encontrarem-se nesta situação de tolhimento de sua liberdade, não retira delas os seus direitos fundamentais, reconhecidos em nosso ordenamento jurídico.
A questão da valorização da instituição familiar durante o cumprimento da pena é outro importante elementos que visa possibilitar a ressocialização das apenadas, devendo estas após o período estipulado pelo Estado, reintegrar-se ao seio da sociedade; porém, durante o cárcere as mesmas não poderão perder o vínculo afetivo familiar, principalmente a figura materna que lhes cabe muito bem, sendo necessárias as efetivas transformações dentro do ambiente penitenciário, para comportar as peculiaridades femininas.
2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO CONTEXTO BRASILEIRO
2.1 AS TRANSFORMAÇÕES AO LONGO DOS TEMPOS DO CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA
A análise da dignidade da pessoa humana encontra-se inicialmente ligada ao cristianismo, sendo sua base amparada no fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, adotando a idéia de liberdade do ser humano como atributo da sua condição racional, onde este recebeu como virtude o livre-arbítrio.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2007) no pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, observava-se que questão da dignidade da pessoa humana fazia referencia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo, assim como, o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade; desta forma, poder-se-ia falar em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas.
Neste sentido, a concepção de dignidade na antiguidade estava atrelada basicamente a questão social do individuo. Porém, especialmente em relação a Roma, destacadamente através das formulações de Cícero, que desenvolveu uma compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social, sendo possível reconhecer a coexistência de um sentido moral e sociopolítico de dignidade.
Durante o período denominado de Idade Média, pela quase totalidade dos historiadores contemporâneos, a concepção de inspiração cristã e estoica (a dignidade era tida como que a qualidade do ser humano e por isso, este se diferenciava dos demais seres), seguiu sendo sustentada, destacando-se o pensamento de São Tomás de Aquino, o qual chegou a referir-se expressamente no termo ‘dignitas humanas’. Nesta linha de entendimento, o professor Sarlet (2007, p. 30) contribui dizendo que:
[...] no pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distingui das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo (o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.
Este pensamento presente durante a Idade Média europeia, configura-se como base de entendimento para a valorização da figura humana, em detrimento aos demais seres vivos, como dotado de liberdade, sendo esta inerente ao indivíduo e possibilitando a elaboração na noção de igualdade em termos de dignidade, entre todos os seres humanos. Sendo que São Tomás de Aquino, também é defensor desta dignidade, como afirma Sarlet (Idem, p. 31):
Com efeito, no pensamento de Tomás de Aquino, restou afirmada a noção de que a dignidade encontra seu fundamento na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus; mas também radica na capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, de tal sorte que, por força de sua dignidade, o ser humano, sendo livre por natureza, existe em função de sua própria vontade.
A ideia de liberdade também configura-se enquanto alicerce para a formulação do pensamento tomista, durante a Baixa Idade Média, no tocante a dignidade humana, colocando homem enquanto capaz de formular sua própria condição de vida ou se autodeterminar por natureza, através da força de sua dignidade.
No começo da idade Moderna, durante a renascença, passou-se a advogar que a dignidade humana era atributo da racionalidade, como qualidade peculiar inerente ao ser humano, afirmando-se sua fundamentação na competência de determinar por si mesmo e por sua natureza humana, sua vontade própria; possibilitando-o construir de forma livre e independente sua existência e seu destino, como corrobora Sarlet (Idem, p. 31-32):
[...] em plena Renascença e no limiar da Idade Moderna, o humanista italiano Pico dela Mirandola, partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano, advogou ser esta a qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino [...] Mirandola, no seu opúsculo sobre a dignidade do homem, ao justificar a idéia de grandeza e superioridade do homem em relação aos demais seres, afirmou que, sendo criatura de Deus, ao homem (diversamente dos demais seres, de natureza bem definida e plenamente regulada pelas leis divinas) foi outorgada uma natureza indefinida, para que fosse seu próprio arbitro, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e obter aquilo que ele próprio quer e deseja.
O período da renascença europeia foi propício para a formulação de conceitos capazes de atribuir a figura humana os elementos necessários para valorização da liberdade, onde o homem possui uma natureza indefinida, possibilitando assim construir de forma independente sua própria existência e destino, que serão elaborados através do seu livre arbitro.
No pensamento jusnaturalista dos séculos XVll e XVlll, o debate acerca da dignidade da pessoa humana e a ideia de direito natural, passaram por um processo de racionalização e laicização; porém, mantendo-se, todavia a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. Neste período vamos destacar a importância de Immanuel Kant, pois, segundo seu pensamento, o ser humano tinha sua autonomia e sua própria vontade ética, como base da dignidade do homem, onde as ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas que se dirigem a outros seres racionais, sempre de ser considerado simultaneamente como um fim; desta forma, o ser humano não podia ser tratado nem por ele mesmo, como objeto. Segundo o professor Ingo Wolfgang Sarlet (2007), em sua obra Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, temos a compreensão que:
[...] Kant sinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana [...] sustenta que ‘o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe com um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros serem racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim [...] os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio em que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).
Para Kant o homem é o elemento principal dos atos constitutivos da sociedade, pois este consegue formular representações e agir em conformidade com as leis, utilizando-se da sua racionalidade; sendo esta, uma atributo inegável para a constituição do fundamento da dignidade da natureza humana.
O pensamento de Kant sustenta a concepção de dignidade como atributo exclusivo da pessoa humana; sendo esta visão ampliada, pois não mais está em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta.
Desta forma, a concepção jusnaturalista consagra a idéia da dignidade da pessoa humana, partindo do pressuposto de que o homem, em virtude de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado.
Com o passar dos séculos a preocupação com os Direitos do Homem começou a ganhar maior relevância a partir do estabelecimento da burguesa enquanto classe social dominante na sociedade, através da associação da idéia de liberdade e igualdade defendida durante a Revolução Francesa de 1789.
Sendo, porém, que os Estados Unidos foram os primeiros a formularem expressamente uma declaração de direitos do homem, configurando-se na Declaração de Virgínia, em 1776. No entanto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi a que obteve maior expressão, devido às repercussões da Revolução Francesa.
A Constituição Francesa de 1791 incorpora a Declaração de 1789, e a partir daí os direitos do homem ingressam no constitucionalismo moderno, expressos nos direitos do cidadão; deve-se ressaltar o perfil liberal dos direitos consagrados nas constituições burguesas, assim iniciando-se a fase histórica contemporânea de preocupação formal com os direitos e liberdades individuais, cuja concepção, no entanto, revela-se formal e abstrata, sem considerar as condições materiais de sua aplicação.
Neste sentido, a incorporação dos Direitos Humanos à ordem internacional envolve-se em um processo de lutas, sendo decorrente de um longo período de avanços e retrocessos políticos e sociais. Gradativamente, os Estados começaram a estabelecer normas internacionais que, embora não reconhecessem a personalidade, pretendiam proteger a pessoa humana.
Após a Segunda Guerra Mundial acentua-se a necessidade da criação de mecanismos eficazes que protejam os direitos fundamentais do homem nos diversos Estados contemporâneos; sendo que o modelo de política não intervencionista dos Estados liberais tornou-se obsoleto e permissivo, no tocante as práticas e atos que agrediam diretamente os direitos fundamentais da pessoa humana.
Nesse sentido, o Direito Internacional se revela a partir da internacionalização dos direitos humanos, que surge em decorrência do pós-guerra, haja vista as monstruosas violações dos direitos humanos durante a era Adolf Hitler e os demais Regimes Totalitários do período Entre-Guerras (1918-1939); assim como, à crença que parte dessas violações poderiam ter sido prevenidas, se existisse um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos, pois segundo Flávia Piovesan (2012. p. 184):
No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral.
Durante a 2ª Guerra Mundial inúmeras atrocidades foram cometidas pelos Regimes Totalitários, em especial pelos nazistas (sendo o holocausto do povo judeu, onde aproximadamente 6 milhões foram mortos nos campos de concentração, uma mancha negra na história da humanidade), sendo necessária a reconstrução do modelo de direitos humanos, tendo como referência os valores éticos e morais, objetivando a valorização da pessoa humana.
Esse processo de internacionalização pressupõe a delimitação da soberania estatal, sendo que esta, não deve ser considerada como um princípio absoluto, devendo estar sujeita a certas limitações em prol dos direitos e da dignidade humana, pois nas palavras de Sarlet (2007, p. 90), percebemos esta preocupação referente a condição humana:
Da mesma forma, não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente respeito e proteção da integridade física e emocional em geral da pessoa, do que decorrem, por exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura e da aplicação de penas corporais e até mesmo a utilização da pessoa para experiências científicas.
Neste sentido, a dignidade deve ser respeitada e protegida, sendo a pessoa em nenhuma situação, deverá ser submetida a tratamento humilhante e degradante; desta forma, o caminhar histórico da dignidade humana teve um grande fortalecimento a partir da Carta das Nações Unidas de 1945, que possibilitou a organização de vários órgãos, dentre os quais a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela e o Secretariado.
Assim, após um período da história contemporânea, de extrema obscuridão em relação aos direitos da pessoa humana, temos a elaboração de diversos instrumentos, tratados e órgão que possibilitaram a consolidação do movimento de internacionalização dos direitos humanos. Sendo que acerca da legitimação destes direitos, a autora Piovesan (2012. p. 204.), escreve que:
A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos e valor intrínseco à condição humana é concepção que, posteriormente, viria a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passaram a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.
A elaboração da Declaração de 1948 demonstra a sensível busca por parte os Estados Nacionais, reconfigurados no pós-guerra, de assegurar que atrocidades e atos cruéis não seja mais admitidos ou tolerados; assim sendo, a dignidade humana adquire a importância de valor básico universal, sendo necessária apenas a condição de pessoa, para a salvaguarda deste direito.
Dessa forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se impõe como um código de conduta para os Estados integrantes da comunidade internacional e consolida um parâmetro internacional para a proteção desses direitos, que têm sido incorporados em Constituições nacionais, servindo de fonte para decisões judiciais nacionais, reconhecendo o ser humano como um ser pleno de dignidade e direitos.
Tendo em vista a Declaração Universal, o Estado adquire a responsabilidade, no tocante, a ratificação de princípios e fundamentos normatizadores da dignidade humana; sendo conveniente então observar as diretrizes de 1948, onde foram fortalecidos os laços internacionais, para que se estabeleça um núcleo fundamental de Direitos Internacionais do Homem, como afirma Piovesan (Idem. p. 85):
É justamente sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos que é possível compreender, no pós-guerra, de um lado, a emergência do chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, de outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, em resposta ao impacto das atrocidades então cometidas. No âmbito do Direito Constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições europeias do pós-guerra. Observa-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política. Basta atentar à Constituição brasileira de 1988, em particular à previsão inédita de princípios fundamentais, entre eles o princípio da dignidade da pessoa humana.
Esta abertura das Constituições latino-americanas possibilitou aos países formularem novas formas de elaboração de suas leis, norteadas por princípios antes relegados a segundo ou terceiro plano, ou simplesmente negligenciados. A Dignidade Humana é, pois, calcada nos princípios de todos os direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais), em que cada indivíduo possui sua liberdade e, especificamente, o princípio da dignidade estabelece não só os direitos individuais, mas também os de natureza econômica, social e cultural, reconhecido pelo Estado Democrático. Como complementa Moraes (2007, p. 47) “O Estado democrático de direito, que significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais [...]”.
Neste sentido, um conceito analítico de dignidade da pessoa humana foi formulado pelo professor Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 62), condizente com a importância da legitimação deste princípio por parte do Estado e da sociedade como um todo, sendo que para ele a dignidade humana é:
a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Observa-se que a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois se configura enquanto qualidade intrínseca, envolvendo direitos e deveres, garantindo assim as mínimas condições de existência digna para o indivíduo; representando um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana.
A vida digna é então aquela onde estão presentes os valores essenciais para o pleno desenvolvimento da pessoa, próprios para as suas necessidades, aptos para as suas características, identificados e individualizados de forma a satisfazer o seu titular. Para isto, se faz necessário entender e compreender o que é a pessoa humana, não devendo esta ser tratada apenas como sujeito de direito, mas sim como um ser humano, pessoa concreta, com suas possibilidades, aptidões, necessidades e singularidades.
Assim a dignidade da pessoa humana sustenta e agrega o sistema constitucional ao redor de seu conteúdo fundamental: direito à igualdade material, à integridade psicofísica, à liberdade e à solidariedade. Desta forma, a dignidade então, apresenta-se como paradigma e referencial ético, por isso é considerada por muitos autores, como um verdadeiro “superprincípio” orientador e limitador das legislações dos Estados.
Todas as normas necessariamente devem respeitar a dignidade da pessoa humana, a qual, se violada, impõe-se a declaração de inconstitucionalidade, tanto na sua forma concentrada como difusa; desta forma, como analisa Sarlet (Idem, p.129-130) acerca da dignidade enquanto bem jurídico absoluto, tem-se que:
Se partirmos da premissa de que a dignidade, sendo qualidade inerente à essência do ser humano, se constitui em bem jurídico absoluto, e, portanto, inalienável, irrenunciável e intangível, como parece sugerir a expressiva maioria da doutrina e da jurisprudência [...] Mesmo assim, ninguém será capaz de negar que entre nós [...] a dignidade da pessoa humana [...] é desconsiderada, desrespeitada, violada e desprotegida, seja pelo incremento assustador da violência contra a pessoa, seja pela carência social, econômica e cultural [...].
Para o autor, esta dignidade enquanto bem jurídico absoluto, fica margeada pelos fatores externos ao princípio constitucional, pois diversos elementos, como os sociais, econômicos e culturais, afetam a sua efetiva aplicação; faz-se necessário que os detentores das funções públicas, promovam a aplicabilidade deste superprincípio constitucional. Sendo que esta aplicabilidade por parte dos detentores das funções soberanas do Estado, muitas vezes são margeadas ou esquecidas pelos agentes públicos, devido a estabelecimento de imunidades em diversos cargos, como corrobora para tal entendimento Moraes (2007, p. 54-55):
O objetivo colimado pela Constituição Federal, ao estabelecer diversas funções, imunidades e garantias aos detentores das funções soberanas do Estado, Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e a Instituição do Ministério Público, é a defesa do regime democrático, dos direitos fundamentais e da própria separação dos poderes [...] Nesse sentido, orientou-se o legislador constituinte ao prever a existência de imunidades e garantias aos agentes políticos, exercentes das precípuas funções estatais, visando o bom e hamônico funcionamento e perpetuidade dos poderes da república e a salvaguarda dos direitos fundamentais.
A concessão de imunidades e garantias para determinados agentes públicos, com o intuito de promover o harmônico funcionamento dos poderes; contribui em certo sentido para a suavização da aplicação dos princípios constitucionais, haja vista que os mesmos podem negligenciar determinadas situação ou não conceder o devido apreço ao caso concreto apresentado, que venha a atacar um direito fundamental. Desta forma, Sarlet (2007, p. 113) reforça este entendimento sobre a importância dos agentes públicos, em garantir a aplicabilidade dos direitos fundamentais em nosso Estado democrático:
Neste contexto, não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la [...] contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência [...]
Neste entendimento, percebe-se nas palavras do autor o papel do Estado enquanto responsável pela proteção da dignidade pessoal, referente a agressões de terceiros; assim como, o respeito por parte do próprio Estado acerca dos assuntos vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana.
No dizer de Mello (2009, p.21), ao se referir aos direitos sociais: "O respeito à dignidade humana, [...] é patrimônio de suprema valia e faz parte, tanto ou mais que algum outro, do acervo histórico, moral, jurídico e cultural de um povo." Na realidade, a Constituição reconhece a dignidade humana não somente na relação do cidadão com o Estado, mas ainda nas relações intersubjetivas dos próprios cidadãos, visto que tais relacionamentos podem acarretar sérios ferimentos à dignidade humana. Como exposto nas palavras de Ingo Salert (Idem, p. 135):
Assim, considerando que também o princípio isonômico (...) é, por sua vez, corolário direito da dignidade, forçoso admitir (...) que a própria dignidade individual acaba, ao menos de acordo com o que admite parte da doutrina constitucional contemporânea, por admitir certa relativização, desde que justificada pela necessidade de proteção da dignidade de terceiros, especialmente quando se trata de resguardar a dignidade de todos os integrantes de uma determinada comunidade.
Esta interpretação da dignidade humana contribui para o entendimento de que esta pertence a cada indivíduo de forma inerente e irrenunciável, porém, admite uma certa relativização concernente ao objetivo maior de garantir a resguarda da dignidade de uma coletividade, dentro de uma determinada comunidade.
Sendo assim, as pessoas que, por quaisquer razões, estejam em níveis de superioridade, ou mesmo, em não o estando, achem-se no direito de diminuir seus semelhantes, violentando a sua dignidade, como no caso das práticas discriminatórias de natureza racial, da tortura ou até mesmo de situações onde o Estado deveria garantir a integridade e a dignidade; passam a confrontar o princípio, cometendo conduta tipificada pelas normas contidas nos códigos de leis do país.
Neste sentido, observamos que no tocante aos presos de modo geral e especificamente, as mulheres que se encontram apenadas, temos a legitimação do princípio da dignidade da pessoa humana, norteando a aplicação e o cumprimento da pena, como preceitua o ilustre doutrinador Salert (Idem, p. 140-141):
no que diz com a proteção da dignidade, percebe-se a existência de consenso no sentido de que a consideração e o respeito pela pessoa como tal [...] constituem simultaneamente tarefa e limites intransponíveis para a ordem jurídica [...] Assim, ainda que se possa reconhecer a possibilidade de alguma relativização da dignidade pessoal e, nesta linha, até mesmo de eventuais restrições, não há como transigir no que diz com a preservação de um elemento nuclear intangível da dignidade, que justamente [...] consiste na vedação de qualquer conduta que importe em coisificação e instrumentalização do ser humano.”
Desta forma, não deve ser admitido qualquer prática ou conduta que vislumbre transformar as mulheres apenadas em coisas os instrumentos de controle estatal, pois a condição vivenciada por elas, no tocante a privação temporária da liberdade, não retira das mesmas o direito a dignidade; devendo-se reconhecer a atuação deste princípio nas relações travadas entre o Estado e as detentas. Tratando a dignidade como um direito inerente ao ser humano, sendo o princípio máximo, em relação aos quais os outros são menores, mesmo porque, o homem (e somente ele) é a medida do Direito.
2.2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
A Constituição da República do Brasil, em razão das várias violações aos Direitos Humanos, como a prática da tortura e outras formas de desrespeito à pessoa humana; sendo que muitas dessas violações foram praticadas durante o Regime Militar, iniciado em 1964, possibilitou ao constituinte brasileiro de 1988, a motivação e a justificativa para inserir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, ao dispor, no artigo 1º, inc. III, da Magna Carta, representando norma constitucional, central de todo o ordenamento jurídico pátrio.
O Professor Silva Neto (2013, p. 252), preleciona que “a dignidade da pessoa humana é o fim supremo de todo o direito; logo, expande os seus efeitos nos mais distintos domínios normativos para fundamentar toda e qualquer interpretação”. Sendo importante referir que o princípio constitucional da pessoa humana há de ser visto sob a dimensão da plenitude ou amplitude; plenitude, esta, que significa dizer que o ser humano merece reconhecimento na sua parte mais íntima e no seu todo mais amplo.
A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, na precisa prescrição do art. 1º da Lei Magna. Na democracia, o Estado não é fim mas meio, concebido como instrumento a serviço do ser humano. A vigente Constituição da República, ao dispor o princípio constitucional da pessoa humana, fê-lo sob motivações várias, dentre as quais a de exorcizar o período autoritário antecedente à sua edição, porquanto violador de direitos fundamentais e, por isso, desrespeitador da dignidade da pessoa humana, na condução dos negócios de Estado.
A atual Constituição da República foi a primeira, no constitucionalismo brasileiro, a instituir um título próprio para os princípios fundamentais, situado em homenagem ao especial significado e função destes, na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais. Também há de se notar igualmente, que, na história do constitucionalismo pátrio, é a primeira vez que aparece positivado o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, como destaca o professor Sarlet (2007, p. 63-64) em sua obra:
Como já tivemos oportunidade de sinalar, mediante tal expediente, o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar os princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, que igualmente integram [...] aquilo que se pode [...] denominar de núcleo essencial da nossa Constituição formal e material. Da mesma forma, sem precedentes em nossa trajetória constitucional o reconhecimento, no âmbito do direito constitucional positivo, da dignidade da pessoa humana como fundamento de nosso Estado democrático de Direito [...].
Temos então no Título I da CF/88 a denominação “Dos princípios fundamentais”, onde estão presentes os vários fundamentos, os objetivos fundamentais e os princípios de nosso ordenamento pátrio; tendo destaque para o presente trabalho o princípio contido no art. 1º, Inciso III, referente a dignidade da pessoa humana, enquanto conquista normativa da democracia atual.
Assim sendo, o princípio da dignidade esta no núcleo central da CF/88, sendo positivado pelo constituinte, que lhe concedeu caráter formal e material, possibilitam sua integração no conjunto das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, contidas no Título II da Carta Magna. Neste sentido, é de extrema importância destacar o papel do poder constituinte originário, colocando em destaque a pessoa humana e consagrando a sua dignidade, pois com esse ato pugna pela humanização do sistema constitucional e o papel do Estado, pois:
Se a Constituição é o jurídico dentro do qual foram disciplinadas questões da mais alta importância para a organização do Estado brasileiro, como a previsão de eleições, duração dos mandatos, competências das unidades federativas, organização das funções estatais legislativa, executiva e judiciária, intervenção federal e tantas outras disposições da ordem, a referência à dignidade da pessoa humana funciona como cláusula de advertência para a circunstância de que, não obstante seja a Constituição o texto que disciplinará as relações de poder, o que mais importa, em suma, é colocar a serviço do ser humano tudo o que é realizado pelo Estado. (SILVA NETO, 2013, p. 252).
Partindo deste entendimento do autor, a Constituição Federal objetiva garantir que o Estado funcione enquanto um agente que garanta a plena realização dos cidadãos, possibilitando as condições necessárias para a sobrevivência, de forma digna, pois o princípio constitucional da dignidade humana, deverá funcionar como um balizador para todas as questões referentes aos direitos de cada indivíduo, dentro ou fora das estruturas do Estado.
O legislador deixou clara sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais o corolário de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, quando colocou os princípios fundamentais em título próprio; criando assim, um núcleo essencial da nossa Constituição material. Sendo tal o relevo dado pelo legislador constituinte ao princípio da dignidade da pessoa humana que aparece ele expresso em várias outras disposições da arquitetura constitucional[2].
Neste sentido, Moraes (2007, p. 65-7) preceitua acerca da atuação do poder público no tocante a construção de meios e instrumentos para propiciar uma igualdade real entre os cidadãos:
Os poderes públicos devem buscar os meios e instrumentos para promover condições de igualdade real e efetiva e não somente contentar-se com a igualdade formal, em respeito a um dos objetivos fundamentais da República: construção de uma sociedade justa [...] Os direitos e garantias fundamentais têm como base três grandes princípios: autodeterminação, igualdade e não-discriminação [...] As legislações constitucionais modernas pretendem basicamente defender as minorias étnicas [...], religiosas, linguísticas, políticas de discriminação.
A busca pela construção de uma sociedade justa, perpassa pela defesa, por parte do Estado, das minorias existentes e secularmente marginalizadas dentro dos limites do nosso país, tal objetivo tende a legitimar a prática da autodeterminação, da igualdade e da não-discriminação, como alicerces para uma sociedade consciente e voltada para a manutenção da dignidade de todos os seus cidadãos.
Logo, a dignidade da pessoa humana, constitui, sem dúvida, princípio normativo fundamental; o Parlamento Pátrio tomou uma decisão política fundamental relativamente ao sentido, à finalidade e à justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, quando inseriu tal princípio na tessitura constitucional, definiu, de forma categórica, a relação homem-Estado; sendo que este existe para aquele, ou seja, o Estado enquanto instrumento a serviço da pessoa humana e jamais o inverso. Neste sentido, o pensamento doutrinário de Sarlet (2007, p. 105-106) a respeito do princípio da dignidade de forma genérica dentro da CF/88, estabelece que:
Para além de servir de critério de justificação da fundamentalidade material de direitos positivados ao longo do texto constitucional e de reconhecimento de direitos implícitos [...] resta a indagação se do princípio da dignidade da pessoa [...] poderão ser deduzidos direitos fundamentais autônomos. Nesta linha de raciocínio, sustenta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana, em relação aos direitos fundamentais, pode assumir, mas apenas em certo sentido, a feição de lex generalis, já que, sendo suficiente o recurso a determinado direito fundamental [...] inexiste, em princípio, razão para invocar-se autonomamente a dignidade da pessoa humana [...].
Para o doutrinador a dignidade humana, configura-se dentro do ordenamento jurídico, como princípio embasador dos demais direitos existentes; sendo que, na atual Constituição brasileira, do art. 5º ao 17º estão elencados os Direitos e Garantias Fundamentais, estabelecendo que o país seja um Estado Democrático de Direito, sobrevendo assim a sensação social de justiça, onde as leis devem ter conteúdo e adequação social e o Estado, consequentemente, deve está a serviço do bem comum, assegurando a dignidade da pessoa humana.
Desta maneira, o indivíduo prevalece sob o próprio Estado, pois existe a normatização constitucional dos direitos do cidadão brasileiro, estando presentes em uma infinidade de dispositivos sobre garantias que compõem o conceito de Direitos Humanos, sendo que logo no preâmbulo constitucional temos este esclarecimento acerca destas garantias[3].
Determinou, ainda, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu art. 5º, §2º, que os direitos e garantias “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Portanto, a Constituição Cidadã, é clara na concepção de que o Estado existe para servir o homem, e não o homem servir o Estado. Dessa forma, são valorizados os direitos e garantias fundamentais do cidadão, confirmados pelo artigo 5º, caput: “Todos são iguais perante a Lei, sem, distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Observando o referido artigo acima, faz-se necessária a distinção entre os direitos e as garantias constitucionais, sendo que os direitos se referem aos aspectos e manifestações da personalidade humana e todas as situações relacionadas com a convivência em sociedade; ao passo que as garantias referentes a esses direitos se embasam na criação de leis, em outras palavras, na tutela desses direitos contra os abusos de poder, como o exemplo do instrumento jurídico do Habeas Corpus e Mandado de Segurança.
Nesse sentido, vale ressaltar que todos os direitos individuais garantidos e protegidos pela Constituição Federal incorporam-se imediatamente no ordenamento interno brasileiro (CF, art. 5º, § 1º), e por serem normas também definidoras dos direitos e garantias fundamentais, passam a serem cláusulas pétreas, não podendo ser suprimidas nem mesmo por Emenda Constitucional, como demonstra Bonavides (2009, p. 288) acerca dos princípios:
Tudo quanto escrevemos fartamente acerca dos princípios, em busca de sua normatividade, a mais alta de todo o sistema, porquanto quem os decepa arranca as raízes da árvore jurídica se resume no seguinte: não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie.
Desta forma, a árvore jurídica brasileira possui suas raízes nos princípios, sendo estes a base, que comporta ainda as normas e as regras; desta forma, o indivíduo possui, independentemente de nacionalidade, assegurados os seus direitos fundamentas e garantias individuais, que são garantidos e protegidos pela Constituição, sendo os mesmos importantes porque confirmam a verdadeira Democracia, e, contudo, inerentes à dignidade da pessoa humana, ou seja, são considerados o respeito à criatura humana e os limites do poder através dos direitos inerentes ao cidadão.
Ademais, entender-se o princípio da dignidade da pessoa humana como aquele que está na base do estatuto jurídico dos indivíduos, havendo de ser interpretado como individual e universal e a cada homem como se autônomo fosse; constituindo-se em atributos jurídicos essenciais da dignidade dos homens concretos, assim possuindo o objetivo de proteger a dignidade essencial da pessoa humana. Como explica o autor Sarlet, (2007, p. 101-2):
Outro aspecto de transcendental importância para a compreensão do papel cumprido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, designadamente na sua conexão com os direitos fundamentais, diz com sua função como critério para a construção de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais na nossa ordem constitucional [...] Nesta quadra, um dos maiores desafios para quem se ocupa do estudo da abertura material do catálogo de direitos e garantias é justamente o de identificar quais os critérios que poderão servir de fundamento para a localização daquelas posições jurídico-fundamentais como tais não expressamente designadas pelo Constituinte.
O autor defende o pensamento de que é necessário o entendimento acerca do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto um conceito material aberto, corroborando para uma melhor visualização deste princípio dentro dos direitos fundamentais, pois algumas normatizações jurídicas não foram expressamente colocadas pelo constituinte na elaboração da Carta Magna de 1988.
Sendo importante perceber que a dignidade é uma qualidade necessária da pessoa, e por isso é irrenunciável e inalienável, não podendo existir a possibilidade de uma pessoa renunciar a seu direito titular, pois esta é qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, não podendo ser criada, concedida ou retirada, porque já existe em cada ser humano, e deve ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Nesta linha de raciocínio o autor Da Silva (2009, p. 105), conceitua a dignidade da pessoa humana como sendo:
Um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [...], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir "teoria do núcleo da personalidade" individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana". Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.
Como observamos na citação, a dignidade humana é suprema, sendo que esta acima de tudo, representando o elo mais importante enquanto principio fundamental na CF\88; sendo esta analisada em amplo sentido normativo, envolvendo não somente os direitos fundamentais, mas aqueles que estão contidos nos títulos das ordens Econômica e Social, e demais títulos normativos.
Neste sentido, podemos destacar que a dignidade humana, é a concepção majoritária dos constitucionalistas brasileiros, não dependendo esta das condições concretas, pois a mesma é própria a todas e quaisquer pessoas; desta maneira, na origem, todos são iguais em dignidade, até mesmos os maiores delinquentes, pois são reconhecidos por serem pessoas, e não pelos atos cometidos; como afirma Sarlet (2007, p. 45) que:
como forma de comportamento (admitindo-se, pois, atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por constituir - no sentido aqui acolhido - atributo intrínseco da pessoa humana (mas não própria mente inerente à sua natureza, como se fosse um atributo físico) e expressar o seu valor absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração e esse entendimento e o mesmo do Art. 1º da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual - todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito. Dotado de fraternidade.
Desta maneira, a dignidade da pessoa não desaparece por mais baixa que seja a conduta do ser humano, pois é uma qualidade para que ele possa ser reconhecido. Neste sentido, a dignidade não pode ser criada pelas constituições ou por algum tratado, porque ela já é própria de cada pessoa, pois não nasce uma sem a outra, elas estão sempre juntas.
O autor entende que a dignidade humana não depende das condições concretas, pois esta é peculiar e própria a todas e quaisquer pessoas humanas, sendo que todos são iguais em dignidade, ate mesmos os indivíduos classificados como criminosos ou delinquentes; pois estes são reconhecidos como detentores de dignidade pelo simples fato de serem pessoas, mesmo não se comportando de forma digna com seu semelhantes, e as vezes até consigo próprio.
Assim sendo, fica evidenciado de forma inequívoca que a dignidade não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito, pois esta qualidade esta em cada pessoa e não depende deste para existir, mas não podemos esquecer que o Direito poderá exercer papel crucial na sua proteção e promoção; sendo que a dignidade da pessoa humana tem caráter multidimensional, em condição de principio e norma embasadora de direitos fundamentais, como complementa Sarlet (Idem, p. 61):
Do até agora exposto, há como sustentar, com segurança, o caráter multidimensional da dignidade da pessoa humana, considerando sua dimensão ontológica [...] sua dimensão histórico-cultural e sua dupla dimensão [...] objetiva e subjetiva [...] na condição de princípio e norma embasadora de direitos fundamentais [...] “onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direito e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.
Segundo o entendimento, a base para se confirmar o princípio da dignidade humana estão ancoradas nos valores democráticos, assim como, o respeito a vida e a integridade física das pessoas, assegurando-se as mínimas condições básicas de existência; sendo que a falta de observância destes valores acarretará em um estado de injustiças e intolerância.
Desta maneira, não se deva buscar uma definição antecipada do que deve ser protegido, mas o entendimento dessa dificuldade à luz das circunstancia do caso, quando existir uma violação da dignidade da pessoa humana. Podemos dizer que a dignidade é o patrimônio jurídico de seu povo e, elevado à condição de princípio, representa um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
2.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
A dignidade da pessoa humana como um direito fundamental que esta inscrita na Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III, é condição sine qua non para a identificação material de todos os direitos fundamentais. Esta dignidade consagra um valor que visa proteger o ser humano, em face das influências das constituições internacionais e devido os horrores das torturas e os demais tratamentos desumanos praticados durante o Regime Militar brasileiro, em um resgate à dignidade, ao humano; como demonstra Piovesan (2012, p. 77-79) a partir da análise do processo de democratização do país:
Após o longo período de vinte e um anos de regime militar ditatorial que perdurou de 1964 a 1985 no país, deflagrou-se o processo de democratização no Brasil. Ainda que esse processo tenha se iniciado, originalmente, pela liberalização política do próprio regime autoritário – em face de dificuldades em solucionar problemas internos –, as forças de oposição da sociedade civil se beneficiaram do processo de abertura, fortalecendo-se mediante formas de organização, mobilização e articulação, que permitiram importantes conquistas sociais e políticas. A transição democrática, lenta e gradual, permitiu a formação de um controle civil sobre as forças militares.
As articulações e as mobilizações promovidas pela sociedade civil organizada permitiu que as conquistas sociais e políticas daquele período fossem ratificadas em nossa atual Constituição; tendo assim como principal bandeira de luta o fortalecimento dos direitos humanos, como expõem Piovesan (Idem, p. 80) acerca de um conjunto de valores que exprime os direitos individuais, sociais e políticos de todos os cidadãos:
A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil [...] a consolidação das liberdades fundamentais e das instituições democráticas no país, por sua vez, muda substancialmente a política brasileira de direitos humanos, possibilitando um progresso significativo no reconhecimento de obrigações internacionais nesse âmbito [...] no caso brasileiro, as relevantes transformações internas tiveram acentuada repercussão no plano internacional.
A valorização dos direitos humanos, após um longo período de Ditadura Militar, ganhou contornos internacionais, a partir do momento em que o Brasil passou a demonstrar para os demais países do mundo, que o novo regime, agora democrático, possuía e possui como direcionamento principal a figura humana e todos os seus direitos e garantias fundamentais inerentes a esta.
Assim, os direitos fundamentais, tem como valor a dignidade da pessoa humana na qual o Estado Democrático de Direito se baseia, e é através da efetivação desses direitos constitucionalmente protegidos, que temos um Estado garantidor da justiça social, como aborda o autor Sarlet (2007, p. 79) a respeito dos valores fundamentais presentes na Constituição, pois:
A Constituição, a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância pratica ao sistema de direito fundamentas, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado, razão pela qual se chegou a afirma que o principio da dignidade humana atua como o “alfa e omega” do sistema das liberdades constitucionais e, por tanto, dois direitos fundamentais.
Sob este vértice, acrescenta que a Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais, sendo que ela repousa na dignidade da pessoa, ou seja, na concepção que a faz pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado, conferindo a mesma uma unidade de sentido.
Segundo o entendimento acerca das citações dos autores utilizados, passamos a compreender a importância do comprometimento do Estado brasileiro com o bem estar da população, sendo necessária a asseguração de direitos e garantias fundamentais. E esses objetivos, traçados pela Constituição, são espécie de limite para o Estado, e se faz necessário para preservar os direitos e garantias expressos na Constituição Federal Brasileira.
O Princípio da Dignidade Humana, estando na base da normatividade constitucional possui eficácia hermenêutica e normativa decisiva, para constitui-se como a mola-mestra de todas as análises e interpretações acerca das leis vigentes em nosso país, a partir da observância do caso concreto e preponderando a figura humana como sendo o principal vetor na busca pelo direito.
Desta maneira, o princípio da dignidade humana possui força normativa autônoma a partir do entendimento de que é parte elementar do constitucionalismo, elevado à condição de princípio fundamental, assim ocupando estágio de “relevância ímpar no ordenamento jurídico”, pois se revela decisivo aos intérpretes e aplicadores da Constituição. Importante observar que acima de tudo, a proteção a esses direitos fundamentais constituem-se como uma forma de garantia básica para se viver melhor; contribuindo com esta visão, Sarlet (Idem, p. 72) aborda importância ao direito que cada pessoa possui, no tocante a uma existência digna:
Assim, quando se fala em direito à dignidade, se está, em verdade, a considerar o direito a reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade, podendo inclusive falar-se de um direito a uma existência digna, sem prejuízo de outros sentidos que possa atribuir aos direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa [...] A qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva adotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto, a condição de valor jurídico fundamental da comunidade; importa considerar, neste contexto, que, na sua qualidade de principio e valor fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui [...] autêntica fonte que anima e justifica a própria existência da um ordenamento jurídico.
Neste sentido, a constituição da dignidade da pessoa humana como norma positivada em nosso ordenamento jurídico e sendo esta possuidora de características formais e materiais, ratifica a preocupação do constituinte em garantir a existência dos valores éticos e morais, necessários para o regime democrático brasileiro.
O autor salienta que os direitos fundamentais são inerentes ao ser humano e, por isso, são de valor jurídico fundamental para a constituição do viver em comunidade, sendo que o mesmo possibilita a formação de uma unidade de valores, sem os quais o ser humano não vive dignamente; estes princípios fundamentais tornaram-se institucionais com a volta do regime democrático no Brasil e, desta forma, representa o respeito e a proteção dos cidadãos como seres humanos, evitando atitudes que degradar a sua dignidade.
Estes direitos fundamentais configuram como elementos indispensáveis para que os indivíduos vivam dignamente e que a sociedade alcance o objetivo traçado pela Constituição, atingindo a justiça, a igualdade e a paz social, estando a dignidade humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, como defende Sarlet (Idem, p. 87) concernente ao reconhecimento dos direitos fundamentais, inerentes a pessoa humana:
[...] atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade. Em primeiro lugar, relembrando que a noção de dignidade repousa [...] na autonomia pessoal, isto é, na liberdade [...] que o ser humano possui de, ao menos potencialmente, formatar a sua própria existência e ser, portanto, sujeito de direitos, já não mais se questiona que a liberdade e os direitos fundamentais inerentes à sua proteção constituem simultaneamente pressuposto e concretização direta da dignidade da pessoa, de tal sorte que nos parece difícil [...] questionar o entendimento de acordo com o qual sem liberdade não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida e assegurada.
O não reconhecimento destes direitos fundamentais para o autor é suficientemente caracterizador da negação da própria dignidade humana, sendo que o ser humano é possuidor de autonomia pessoal, construindo sua própria existência e buscando a liberdade de ação dentro das normatizações estabelecidas pelo Estado.
Desta maneira, o princípio da dignidade humana mostra claramente os valores defendidos pela sociedade a partir do seu reconhecimento jurídico-nomativo em nossa Lei Maior; sendo que a Constituição, também conhecida como Constituição Cidadã, vem concretizar estes valores, como destaca a autora Piovesan (2012, p. 83) sobre os direitos fundamentais, pois estes:
Infere-se desses dispositivos quão acentuada é a preocupação da Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, como imperativo de justiça social [...] nesse sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional.
Através desta visão, compreende-se que a orientação constitucional, através da sua interpretação e compreensão, busca alcançar a justiça social a partir da legitimação da dignidade humana; sendo que este princípio assegura a essência do ser humano, protegendo-o contra violências e arbitrariedades. Podemos dizer que os direitos fundamentais se fazem presentes, no feito de projetar a dignidade humana.
Os direitos fundamentais são, portanto, garantidos constitucionalmente e constituem objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito. Não se limitam, apenas, ao que está expresso no artigo 5º da Constituição da República do Brasil de 1988, vão além disso e se encontram em vários outros, como na Lei de Execuções Penais. Partindo deste entendimento, Sarlet (2007, p. 99) expõe sobre estes direitos e deveres de todos, a partir do âmbito do viver em comunidade, que:
exprimir-se sobre a noção de ser humano sujeito de direitos e obrigações, com fundamento na própria dignidade da pessoa humana, poder-se-á falar também em um direito fundamental de toda a pessoa humana a ser titular de direitos fundamentais que reconheçam, assegurem e promovam justamente a sua condição de pessoa (como dignidade) no âmbito de uma comunidade”. Portanto todos são iguais, em direito e deveres e com tudo, também envolve toda uma questão comunitária, em dignidade e direitos.
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é um norteador das relações, e mesmo que não envolvido diretamente na solução jurídica de um caso concreto poderá ser invocado; compreende-se que o ser humano é o valor máximo da democracia, sendo tal princípio uma decorrência do Estado Democrático; onde a dignidade tem poder supremo e esta contida na base de todos os direitos fundamentais. Ressalta-se ainda que a Constituição brasileira tem como objetivo, possibilitar a concretização de uma sociedade livre, justa e solidaria, objetivos estes contidos na fundamentação do Art. 3º CF\88.
3 NOÇÕES GERAIS SOBRE O SISTEMA PENAL BRASILEIRO
3.1 A NOÇÃO DE PENA NO SISTEMA PENAL
A noção de pena remete-se historicamente ao período da Antiguidade, onde tivemos a fase da vingança privada, pois caso ocorrido um crime, a reação envolvida quase todos os membros do grupo social, não se preocupando em agir em proporção à ofensa, sendo que esta atingia o ofensor e todo o seu grupo, denominado de “vingança de sangue”, que passava a se caracterizar como uma obrigação religiosa e sagrada, nas palavras de Mirabete e Fabbrini (2013, p. 16) “verdadeira guerra movida pelo grupo ofendido àquele a que pertencia o ofensor, culminando, não raro, com a eliminação completa de um grupo”; porém, quando o agressor era um membro da tribo, este sofria a “expulsão da paz”, ou seja, era banido do grupo ficando a mercê da sorte.
Na fase da vingança divina, o castigo, ou oferenda, por delegação divina era aplicado pelos sacerdotes, infringindo aos ofensores penas severas, como a pena de morte do delinquente que desapontou a divindade com sua conduta reprovadora e para se evitar que o mal recaísse sobre seu povo, o delinquente recebia a pena capital, sob o fundamento de agradar aos deuses e purificar sua alma.
Nessa época, a pena tinha caráter essencialmente sacro, adorando e cultuando objetos chamados de “totens”[4]; no conceito de Beccaria (2004, p. 59) “quem perturba a tranquilidade pública, quem não obedece às leis, quem viola as condições sob as quais os homens se mantêm e se defendem mutuamente, deve ser posto fora da sociedade, isto é banido”. Ainda sobre esta visão, Mirabete e Fabbrini (2013, p. 15) abordam a questão religiosa acerca da pena, demonstrando que:
Embora a história do Direito penal tenha surgido com o próprio homem, não se pode falar em um sistema orgânico de princípios penais nos tempos primitivos. Nos grupos sociais dessa era, envoltos em ambiente mágico (vedas) e religioso, a peste, a seca e todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultado das forças divinas (“totem”) encolerizadas pela prática de fatos que exigiam reparação. Para aplacar a ira dos deuses, criaram-se séries de proibições (religiosas, sociais e políticas), conhecidas por “tabu”, que, não obedecidas, acarretavam castigo. A infração totêmica ou a desobediência tabu levou a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que, modernamente, denominados “crime” e “pena”. O castigo infligido era o sacrifício da própria vida do transgressor ou a “oferenda por este de objetos valiosos (animais, peles e frutas) à divindade, no altar montado em sua honra”. A pena, em sua origem remota, nada mais significava senão a vingança, revide à agressão sofrida, desproporcionada com a ofensa e aplicada sem preocupação de justiça.
Observando esta situação, podemos perceber que durante este período histórico, ainda não existia a noção de prisão, enquanto castigo, por condutas contrárias aos costumes; assim como, não se cogitava a segregação do infrator do meio social, já que a pena era aplicada no corpo do condenado, transformando a punição em elemento normatizador das condutas coletivas.
Com a evolução das civilizações, a pena foi perdendo seu conteúdo extremamente religioso, como fica demonstrado a partir da análise acerca da Lei Mosaica (Pena do Talião), que defendia o ‘sangue por sangue, olho por olho, dente por dente’, trazendo para a área penal o princípio da proporcionalidade entre a pena e o delito, sendo a mesma adotada pelo Código de Hamurábi e pela Lei das XII Tábuas. Esta passagem de fase, dentro do campo de estudo histórico da pena é muito bem analisado por Mirabete e Fabbrini (Idem, p. 16) concernente ao papel do Estado, no tocante a sua aplicabilidade:
Com maior organização social, atingiu-se a fase da vingança pública. No sentido de se dar maior estabilidade ao Estado, visou-se à segurança do príncipe ou soberano pela aplicação da pena, ainda severa e cruel. Também em obediência ao sentido religioso, o Estado justificava a proteção ao soberano que, na Grécia, por exemplo, governava em nome de Zeus, e era seu intérprete e mandatário. O mesmo ocorreu em Roma, com a aplicação da Lei das XII Tábuas. Em fase posterior, porém, libertou-se a pena de seu caráter religioso, transformando-se a responsabilidade do grupo em individual (do autor do fato), em positiva contribuição ao aperfeiçoamento de humanização dos costumes penais.
Desta forma, as penas aplicadas não perdem as características de severidade e crueldade, passando as mesmas a representarem a proteção ao soberano, que as justificam em nome de uma entidade religiosa; sendo que gradativamente ela vai perdendo sua rotulação coletiva e adquire os contornos atuais de individualização da pena. Neste sentido, após o período da vingança divina e da vingança privada, emerge a noção de vingança pública, conforme citação de Beccaria (2004, p. 19) acerca do papel exercido pelos soberanos:
Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constitui a soberania na nação; e aquele que foi encarregado pelas leis como depositário dessa liberdade e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo.
Nessa fase, a pena passou a ser competência do poder público, cuja execução materializava-se através do poder soberano, numa ampla utilização da pena de morte, sendo que sua aplicabilidade era orquestrada, em muitos casos, em praça pública, através de toda uma minuciosa preparação, com contornos teatrais, tendo como intuito promover a intimidação dos súditos e impor a supremacia do poder soberano.
Até então, a pena não tinha nenhum caráter ressocializador, mas apenas punitivo, servindo de exemplo para que outros não cometessem o mesmo crime, mantendo a crueldade e atrocidades praticadas nos períodos anteriores. Como analisa Foucault (2003, p. 43), no tocante a aplicação das penas nos crimes tipificados como tendo como características de crimen majestatis na França do século XVIII:
Deve-se conceber o suplício, tal como é ritualizado no século XVIII, como um agente político. Ele entra logicamente num sistema punitivo, em que o soberano, de maneira direta ou indireta, exige, resolve e manda executar os castigos, na medida em que ele, através da lei, é atingido pelo crime. Em toda infração há um crimen majestatis, e no menor dos criminosos um pequeno regicida em potencial. E o regicida, por sua vez, não é nem mais nem menos que o criminoso total e absoluto, pois em vez de atacar, como qualquer delinquente, uma decisão ou uma vontade particular do poder soberano ele ataca seu princípio na pessoa física do príncipe. A punição do regicida deveria ser soma de todos os suplícios possíveis. Seria a vingança infinita: as leis francesas, em todo caso, não previam pena fixa para essa espécie de monstruosidade.
Partindo deste entendimento, o soberano passou a possuir total poder de aplicação e execução das penas, sendo que os espetáculos de horrores eram realizados, na grande maioria dos casos diante de uma grande plateia, em praça pública, no intuito de reforçar a autoridade do governante; como muito bem explicado, com riqueza de detalhes por Foucault (Idem, p. 43), retratando o que de fato ocorria com aqueles que ousassem transgredir os ditames ou interesses do Soberano.
No primeiro dia, ele foi levado à praça onde encontrou uma caldeira d’água fervendo, onde foi enfiado o braço com o qual desferira o golpe. No dia seguinte, o braço foi cortado, e, tendo caído a seus pés, chutou-o lá de cima do cadafalso sem pestanejar; no terceiro, foi atenazado, na frente, nos mamilos e na parte dianteira do braço; no quarto, foi igualmente atenazado nos braços por trás e nas nádegas; e assim consecutivamente, esse homem foi martirizado pelo espaço de dezoito dias. No último, foi posto na roda e atado. Ao fim de seis horas ainda pedia água, que não lhe deram. Finalmente pediram ao magistrado que autorizasse liquidá-lo por estrangulamento para que sua alma não desesperasse e se perdesse.
Tais atrocidades cometidas contra o ser humano, em nome do Estado ou da figura do soberano, sendo o condenado tratado como animal repugnante e sem um mínimo de dignidade, levou a revoltar vários pensadores da época moderna, que passaram a usar o pensamento como única arma contra o Estado opressor; desta forma, de acordo com Mirabete e Fabbrini (2013, p. 18) surge, assim, o período humanista:
Em 1764, Cesar Bonesana, Marquês de Beccaria (nascido em Florença, em 1738), filósofo imbuído dos princípios pregados por Rousseau e Montesquieu, fez publicar em Milão, a obra Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas), um pequeno livro que se tornou o símbolo da reação liberal ao desumano panorama penal então vigente. Demonstrando a necessidade de reforma das leis penais, Beccaria, inspirado na concepção do Contrato Social de Rousseau, propõe novo fundamento à justiça penal: um fim utilitário e político que deve, porém, ser sempre limitado pela lei moral.
Observando este contexto, nos deparamos com as ideias iluministas, desenvolvidas de forma mais incisiva durante o século XVIII, também denominado de “Século das Luzes”[5]; que serviram de base para as inspirações teóricas concernentes a aplicação das penas e a busca por uma justiça penal, ancorada nos valores morais, sendo que, no apogeu da Revolução Francesa, surge a Escola Clássica, tendo como principal defensor Francesco Carrara, influenciado pelos ideais humanistas de Beccaria[6].
Tal Escola defendia a aplicação da pena proporcional ao crime, desvinculando-a do delinquente, colocando o homem como sujeito de direitos que antecedem o próprio Estado; contrapondo-se à Escola Clássica, surge a Escola Positiva, que colocava o homem como centro do direito penal, passando a pena a ter uma finalidade de ressocializar o delinquente. Os positivistas vêem o crime como fato individual e social, onde o mesmo adquiri raízes patológicas, atribuídas ao contraventor, sendo a pena um remédio para a cura de sua doença.
Já os membros da Escola Clássica advogam em defesa da modalidade de pena onde o infrator tinha sua liberdade privada, ao invés, de ter seu corpo castigado. Neste sentido, acerca das formas de aplicação das penas, Ferreira (Idem, p. 20) expõe sobre as violações praticadas, de toda forma, contra os condenados, pois:
É inegável que o pensamento de Cesare Beccaria ecoou por toda Europa, com suas críticas e descontentamento frente à aplicabilidade de castigos cruéis e desumanos àqueles que violavam seus ditames, cena que o filósofo Foucault denomina “Teatro de Horror”. Tal crítica contribuiu para a busca de uma maneira de aplicar castigos aos delinquentes sem, contudo, violar sua integridade física e moral, propondo que o infrator fosse julgado por sua conduta violadora, sujeitando-se, inclusive a um processo legal. Essa busca, um meio de punir sem castigar o corpo do ser humano, é que contribuiu para surgimento da pena privativa de liberdade.
A aplicação da pena, neste entendimento, deveria comportar um devido processo legal, que possibilitaria a busca por uma justiça, nunca antes pensada, onde o corpo do infrator não seria o principal objeto do castigo, mas sim, o seu direito de locomoção ou sua liberdade propriamente dita, preservando assim a integridade física e moral do condenado.
Contudo, é na Idade Média que surge a pena privativa de liberdade, sendo criada pela Igreja para punir seus membros que praticavam condutas reprovadoras, sendo estes colocados em celas e mosteiros, expurgados assim, do convívio social; a Igreja do século V, para punir clérigos faltosos, usava aplicar como penalidade a reclusão em celas ou a internação em mosteiros. No mesmo sentido, Ferreira (Idem, p. 32) assevera que esta pena privativa de liberdade possui suas raízes medievais:
Mas em verdade, quem deu início à pena privativa de liberdade foi a Igreja. Esta tinha o hábito de punir seus infiéis com a pena de penitência (daí penitenciária e prisão celular), realizadas nas celas. Ali, privado de liberdade e isolado de qualquer contato humano, sofrendo e meditando, a alma do homem se depura, se regenera e se penitencia.
Com esta modalidade de pena, praticada pela Igreja Católica, o corpo do indivíduo passou a ser preservado, sendo que não podemos esquecer o fato de a pena ser aplicada somente aos membros pertencentes ao quadro da instituição eclesiástica; estando a população da época medieval subordinada aos castigos que visavam martirizar o corpo do delinquente.
Dentro deste quadro de mudanças, acerca da aplicação das penas, percebemos que as ideias humanistas contribuíram para influenciar na edição dos artigos 7º e 8º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde prevê, entre outras coisas, a anterioridade da lei penal, punição para os que arbitrarem penas desumanas, e surge assim, nova fase no tocante à aplicabilidade da pena, sendo veementemente combatida a pena de morte e as penas cruéis, que foram gradativamente dando lugar à pena privativa de liberdade.
Neste sentido, Da Silva (2009, p. 198) observa que esta influência de ideias perpassou o tempo, configura-se como um princípio fundamental dentro de nossa atual Constituição brasileira, que:
Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos [...] Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital
Temos assim o conceito de pena como uma sanção penal imposta pelo Estado ao indivíduo que comete uma infração, retribuindo o ato ilícito cometido pelo infrator, e a aplicação da pena consiste na restrição de um bem jurídico, e esta aplicação, precisa esta em acordo como principio da dignidade da pessoa humana, preservando sempre o direito indisponível de cada indivíduo à vida.
Dentro desse objetivo, a pena pode ser observada sobre três perspectivas, sendo que na primeira, para que o Estado possa aplicar uma pena é necessário que alguém tenha cometido crime; em segundo lugar, que exista um processo legal[7], para que sejam ouvidas ambas as partes, e por fim, a pena aplicada, deverá esta segundo as regras e teorias, e demonstrando uma simultaneidade, pois castiga pelo crime cometido, e também defende a sociedade.
Neste sentido, o autor Bittercourt (2009, p. 65), “entende que a pena constitui um recurso elementar com que conta o Estado, e ao qual recorre, quando necessário, para tornar possível a convivência entre os homens”. Sendo a pena necessária para que o Estado possa manter uma harmonia na convivência em uma sociedade; onde para o autor, é quase unanime, no mundo da ciência do direito penal, a afirmação de que a pena justifica-se por sua necessidade.
Desta maneira, o conceito de pena e o papel do Estado estão intimamente relacionados entre si, pois o Estado utiliza a pena para a proteção de eventuais prejuízos a determinados bens jurídicos; e ainda, podendo ser observado que não há um conceito preciso para a definição de pena, pois a mesma, encontra sua definição mas precisa em cada período da evolução humana.
Neste diapasão, percebemos que tratando de onde situar a origem da pena, podemos recorrer às palavras de Mirabete e Fabbrini (2013, p. 15) que ressalta “se perder no tempo a origem das penas”, encontrando também, este raciocínio na obra do doutrinador Bittencourt (2009, p. 505) que diz “A origem da pena é muito remota, perdendo-se na noite dos tempos, sendo tão antiga quanto a Historia da Humanidade. Por isso é muito difícil situá-la em suas origens”. E assim concluímos a dificuldade que tem os autores de determinar um lugar certo de onde se originou a pena.
No Brasil durante o período colonial, os portugueses utilizaram as terras de sua maior colônia, como presídio de degredados, para onde eram mandados os portugueses que haviam cometido crimes como contrabando de pedras e metais preciosos, resistência à ordem judicial, invasão violenta em propriedades alheias e ferimentos causados por armas de fogo, segundo o que normatizavam os decretos do período.
Desta forma, os portugueses ao exercerem seu domínio no Brasil colonial, trouxeram as idéias do direito penal ligadas ao direito costumeiro, como a vingança privada e o Talião; neste período, destacam-se as Ordenações Afonsinas (1446) e Manuelinas (1521), que tiveram vigência no Brasil até o surgimento da Compilação de Duarte Nunes de Leão (1569). Em seguida, surgiram as Ordenações Filipinas (1603), que possuíram grande referência aos tempos medievais, onde segundo Mirabete e Fabbrini (2013, p. 23) estavam prevista a aplicação de punições severas:
No período colonial, estiveram em vigor no Brasil as Ordenações Afonsinas (até 1512) e Manuelinas (até 1569), substituídas estas últimas pelo Código de D. Sebastião (até 1603). Passou-se, então, para as Ordenações Filipinas, que refletiam o direito penal dos tempos medievais. O crime era confundido com o pecado e com a ofensa moral, punindo-se severamente os hereges, apóstatas, feiticeiros e benzedores. Eram crimes a blasfêmia, a bênção de cães, a relação sexual de cristão com infiel, etc. As penas, severas e cruéis (açoites, degredo, mutilação, queimaduras, etc.), visavam infundir o temor pelo castigo. Além da larga cominação da pena de morte, executada pela forca, pela tortura, pelo fogo, etc; eram comuns as penas infamantes, o confisco e as galés.
Estas ordenações atuaram no período colonial como norma de conduta social para todos aqueles que seguiam a religião católica e os classificados como infiéis, foram ainda mais perseguidos e submetidos a todas as modalidades de torturas, pois não se enquadravam nos padrões da sociedade da época, onde o traço religiosos era predominante.
Na Carta Régia de 1769, tem-se o registro do que pode ser a primeira cadeia brasileira, denominada Casa de Correção, situada no Rio de Janeiro e, quinze anos mais tarde, em 1789 é erguida na cidade de São Paulo a cadeia pública denominada simplesmente de Cadeia; é interessante ressaltar que a Cadeia ficava localizada no andar térreo de um prédio com dois andares, onde também funcionava a Câmara Municipal. Contudo, nessa época ainda não havia a pena privativa de liberdade, ficando custodiados no local os delinquentes aguardando as penas que existiam à época, como: multa, açoite e o degredo.
Com o advento da primeira Constituição Brasileira, em 1824, ficou normatizado a previsão da criação do Código Criminal, em seu artigo 179, § 19º; desta forma, ficando declarado expressamente o fim dos suplícios e das penas infamantes, positivando que as prisões deveriam ser limpas, seguras, arejadas, bem como, a separação dos presos conforme o tipo penal violado.
O Código Criminal foi estabelecido em 1830, onde previa que os prédios destinados a manter os indivíduos que cumpririam a pena de prisão, deveriam ter arquitetura própria, objetivando assim, garantir celas individuas para os detentos, bem como oficinas de trabalho, pois, a partir do Código de 1830, surgiram para determinados crimes, a modalidade da prisão com trabalho; desta forma, Mirabete e Fabbrini (Idem, p. 23), expõe que o Código Criminal possuía uma forte característica liberal, pois após:
Proclamada a Independência, previa a Constituição de 1824 que se elaborasse nova legislação penal e, em 16-12-1830, era sancionado o Código Criminal do Império. De índole liberal, o Código Criminal [...] fixava um esboço de individualização da pena, previa a existência de atenuantes e agravantes e estabelecia um julgamento especial para os menores de 14 anos. A pena de morte, a ser executada pela forca, só foi aceita após acalorados debates no Congresso e visava coibir a prática de crimes pelos escravos.
Neste sentido, com a Independência do Brasil e o sancionamento do Código Criminal do Império, o Brasil este o seu primeiro Código com autonomia da América Latina. O mesmo, ainda estabelecia pontos acerca da individualização da pena, existência de atenuantes e agravantes, elemento subjetivo, autoria e participação, entre outros, bem como o sistema de dias-multa, pela primeira vez; configurando-se todos estes pontos, como elementos de extrema importância para o direito penal.
Com a Proclamação da República, foi editado em 1890 um novo estatuto básico denominado Código Penal, mas com o tempo percebeu-se que este apresentava graves defeitos de técnica, além de ser atrasado em relação à ciência de seu tempo, sendo alvo de muitas críticas, pois instituía a prisão celular, banimento, reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição, suspeição e multa, foram novas modalidades de penas trazidas com o novo Código Penal de 1890 que, em seu artigo 44, previa a inexistência de prisão perpétua e coletiva, como aborda Mirabete e Fabbrini (Idem, p. 23) acerca do novo estatuto básico penal:
Com a proclamação da república, foi editado em 11-10-1890 o novo estatuto básico, agora com a denominação de Código Penal. Logo, foi ele alvo de duras críticas pelas falhas que apresentava e que decorriam, evidentemente, da pressa com que fora elaborado. Aboliu-se a pena de morte e instalou-se o regime penitenciário de caráter correcional, o que constituía um avanço na legislação penal. Entretanto, o Código era mal sistematizado e, por isso, foi modificado por inúmeras leis até que, dada a confusão estabelecida pelos novos diplomas legais, foram todas reunidas na Consolidação das Leis Penais, pelo decreto nº 22.213, de 14-12-1932.
As inúmeras situações criadas pelo Código Criminal de 1890 levaram os legisladores a elaboração de um novo conjunto normativo de leis, no intuito de estabelecer os padrões de aplicabilidade da pena em nosso país; desta forma, Alcântara Machado foi o encarregado de elaborar e apresentar um projeto de Código Criminal Brasileiro que sancionado, passou a vigorar em 1942, reformado em 1984, tratando-se atual Código Penal Brasileiro (CPB) e, dessa nova estrutura legal, resultou em uma nova parte geral, que deu surgimento à Lei de Execução Penal.
Assim concluímos que, a pena é analisada sobre o ponto de vista formal, relacionando-se ao que está expresso no texto legal; sendo de essencial importância o estudo dessas características, pois além de delimitarmos os aspectos materiais da pena, deve-se observar sua relevância filosófica e doutrinária, no tocante aos fundamentos do poder punitivo estatal.
3.2 O CUMPRIMENTO DA PENA E A DIGNIDADE DAS APENADAS
O direito penal brasileiro[8] é legislado para cumprir funções concretas dentro da sociedade organizada, tendo característica finalística, no tocante ao entendimento de que o direito existe para que algo se realize; este é disposto pelo Estado para a sólida realização de fins, tendo uma missão política de garantir as condições de vida da sociedade e o combate aos crimes, sendo que o dito combate, que pode ser oferecido ao crime, se reduz ao crime acontecido e registrado.
Sua função é conservadora ou de controle social e sobre certas condições, o direito pode desempenar também as funções educativa e transformadora. Neste tocante, vale ressalvar os ensinamentos do autor Nilo Batista (2007, p. 89), acerca da noção de aplicabilidade da pena, referente aos seus objetivos de racionalidade e proporcionalidade:
Postula da pena uma racionalidade e uma proporcionalidade e está vinculado ao mesmo processo histórico dos anteriores. É reconhecido explicitamente pela nossa Constituição. Segundo este, a pena deve ser proporcional ao delito e úteis à sociedade, não podendo desconhecer o réu enquanto pessoa humana. Ele intervém na cominação, na aplicação e na execução da pena. A racionalidade da pena implica a ela ter um sentido compatível com o ser humano e suas cambiantes aspirações, pois se a pena detém-se na simples retributividade, converte seu modo em seu fim, não se distinguindo de vingança.
Neste sentido, a concepção de pena e sua aplicabilidade têm como objetivo principal a desvinculação histórica que a mesma adquiriu ao longo dos tempos, baseada no sentido de vingança; sendo esta agora voltada para atender uma proporcionalidade ante ao delito praticado e uma racionalidade que jamais poderá negligenciar a figura do condenado, antes aos seus direitos inerentes a pessoa humana e a sua dignidade.
No tocante ao cumprimento da pena de prisão, em sentido jurídico, temos a privação do direito de liberdade de locomoção de uma determinada pessoa, ou seja, é a restrição do seu direito constitucional de ir e vir. Porém, o termo tem vários significados no ordenamento jurídico brasileiro, pois pode expressar a pena privativa de liberdade, o ato de captura (prisão em flagrante, cumprimento de mandado de prisão ou recaptura de foragido) ou a simples custódia (recolhimento da pessoa ao cárcere).
O ordenamento jurídico também faz a distinção entre as várias espécies de prisão: a prisão-pena (penal em sentido estrito) e a prisão sem pena (processual penal, civil, administrativa e disciplinar). A prisão penal em sentido estrito, objeto do presente estudo, é a que ocorre após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Analisando a questão referente ao cumprimento das penas estipuladas pelo Estado, podemos perceber que existem três teorias que apontam acerca das diversas finalidades a respeito da pena. Para a Teoria Absoluta ou Retribucionista, o castigo pelo mal causado à sociedade seria a finalidade da pena, a Escola Clássica, já citada neste capítulo, filiava-se a essa teoria.
A segunda teoria chamada de Relativa ou Utilitária defende um fim útil à pena, desvinculando-a do castigo, atribuindo praticidade à pena, que passa a ter caráter ressocializador, reeducando o delinquente enquanto permanecesse segregado, para que pudesse retornar à sociedade, que, em tese, estaria protegida de um indivíduo que ela considerava de alta periculosidade; e finalmente, a Teoria Mista, que preceitua a pena, a partir de um caráter duplo, possuindo a finalidade de prevenção e educação.
Vencidos estes registros, caminha-se na direção da classificação da prisão penal no ordenamento jurídico brasileiro, que nada mais é do que a pena privativa de liberdade, estando disciplinada nos arts. 33 a 42 do Código Penal, com previsão no preceito secundário de cada tipo penal incriminador, servindo a sua individualização e permitindo a aferição da proporcionalidade entre a sanção que é cominada e o bem jurídico protegido. Nessa estrada, o art. 33 do Estatuto Punitivo prevê duas espécies de pena privativa de liberdade: reclusão e detenção. Esta diferença pode acarretar uma série de implicações nas órbitas penal e processual penal.
A evolução histórica da pena resultou em seu abrandamento e à correlação da causa do crime com a natureza da punição, pelo qual, além de dar uma satisfação à sociedade, que se vê ofendida pelo crime, a lei se preocupa também em proteger esta sociedade, através da prevenção do delito e da reabilitação do apenado.
Em nosso país, observa-se que as leis apresentam finalidades diversas, onde se observa na Lei dos Crimes Hediondos, um caráter de prevenção geral negativa; a Lei de Execuções Penais, que busca a ressocialização (finalidade preventiva especial positiva), enquanto a Lei dos Juizados Especiais Criminais tem finalidade de reparação do dano (finalidade retributiva).
Sendo que no modelo de prisão previsto na Lei de Execuções Penais, temos como característica a noção de proporcionar ao infrator, que ali se encontra, o aprendizado da disciplina, as regras de moral, o estímulo ao arrependimento e o trabalho e amparo religioso. Desta forma, dentro da realidade atual do Sistema Penitenciário Brasileiro, a pena privativa de liberdade não cumpre as finalidades para as quais foram criadas pelo legislador, que via nesse tipo de punição, a possibilidade do infrator, por meio da reflexão, trabalho e orientação, retornar ao seio da sociedade, imbuído com outros princípios e postura.
Estas penas restritivas de direito, que foram criadas em prol da proteção de bens indispensáveis ao convívio em sociedade (pois o direito penal priva de liberdade àqueles que praticaram uma conduta delituosa) podem ser substituídas por penas alternativas, objetivando eliminar os males que sistema carcerário acarreta, principalmente em relação àqueles presos que cometem pequenos delitos e encontram-se misturados com delinquentes altamente periculosos, considerando-se que a pena de prisão, no Brasil, é praticamente um instituto falido.
Neste entendimento, corrobora o autor Marcão (2011, p. 13), em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, acerca da precariedade do nosso sistema prisional:
É inegável que “os tempos são outros” desde a insurgência de Beccaria, tanto quanto é inegável que a sociedade atual conhece e reclama a vigência de um sistema penal cercado de garantias que interessam ao cidadão e à sobrevivência democrática da própria sociedade moderna. Muito embora se possa dizer que, a contar das ideias iluministas, o ordenamento jurídico brasileiro tem avançado em direção ao ideal humanístico, a realidade prática é de todos conhecida, tanto quanto os efeitos deletérios que de tal estado de coisas decorre. A prática execucional brasileira demonstra o reincidente e impune desrespeito às garantias constitucionais incidentes, bem como a constante afronta aos dispositivos da Lei de Execução Penal (LEP), sem que inúmeras autoridades incumbidas do dever constitucional de fiscalizar, buscar e dizer o direito, adotem as providências que também estão explícitas no ordenamento jurídico vigente e que, portanto, são de conhecimento presumido e exigência imperiosa.
Nas palavras do autor fica evidenciado que o cumprimento da pena, perpassa por um longo caminho que desrespeito as garantias constitucionais, tendo além, deste elemento, também, em muitos casos a não observância das normatizações já estabelecidas em lei, como expresso no Caput do § 2° do art. 33 do CPB, onde o cumprimento da pena privativa de liberdade será feito de forma progressiva, segundo o mérito do condenado.
Conforme preceitua o art. 112 da Lei de Execução Penal (LEP): “A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para o regime menos rigoroso”. Desta forma, o regime inicial a ser imposto para o cumprimento de pena deverá observar os ditames do art. 33 do CPB, em especial as letras “a”, “b” e “c” do §2° e o §3°, onde há remição ao art. 59 do mesmo diploma legal.
Vale destacar que a Constituição Federal de 1988, além de oferecer formalmente todas as garantias constitucionais, incorpora ainda outros meios de tutela que integram tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Assim, os direitos enunciados em tratados internacionais passaram a ser também constitucionalmente protegidos, fazendo com que o legislador ordinário, não possa criar normas que violem tais direitos.
Dessa forma, os direitos inseridos nos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos passam a serem cláusulas pétreas, não podendo ser suprimidos por emenda à Constituição, nos termos do artigo § 4º, IV, do artigo 60, da Carta de 1988, que diz: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais". Ou seja, a partir do ingresso de um tratado internacional de direitos humanos no ordenamento constitucional brasileiro, todos os seus dispositivos normativos passarão, desde seu ingresso, a constituir cláusulas pétreas, não mais podendo ser suprimidos.
No entanto, a prática prisional desrespeita, em grande parte, estas garantias constitucionais, sendo importante perceber que quando se volta o foco para os detentos do sexo feminino, a distância entre teoria e prática é ainda maior. O princípio da igualdade é, inúmeras vezes, simplesmente ignorado, notadamente sob o falso argumento de proteção da mulher custodiada contra abusos sexuais ou sua exposição, mesmo quando se refere ao exercício da livre disposição da própria sexualidade. Acerca deste abismo, concernente ao regime prisional, o autor Paulo Bonavides (2009, p. 550) comenta sobre a elaboração das bases constitucionais e suas garantias no nosso ordenamento pátrio, pois:
A conclusão que se extrai assim não poderá ser outra senão esta: ou o pensamento constitucional brasileiro teve criatividade teórica bastante para unir numa fórmula jurídica perfeita e acabada o Estado liberal com o Estado social – o que não nos parece haver já acontecido – ou produzido com aquela cláusula de garantias uma contradição enorme e frontal, que será o desespero e o tormento dos juízes e tribunais no exercício das competências de controle de constitucionalidade, em razão de eventuais colisões dos dois princípios, ambos de constitucionalidade máxima: o do Estado social e o do Estado de Direito.
Através deste pensamento, temos a instituição das necessidades reais de ratificação dos direitos e garantias assegurados pela CF/88, porém, o próprio texto constitucional, como bem frisa o autor, coloca em colisão os princípios citados, sendo que estes devem ser analisados também nos demais textos normativos; desta maneira, a dificuldade de se alcançar uma objetividade, no tocante, a aplicação das leis penais, especificamente para as apenadas, ganha uma maior complexidade.
As normas penais e sua execução foram estruturadas, assim como outras formas de controle social, a partir do ponto de vista masculino, sendo as especificidades femininas desconsideradas[9]; desta forma, embora a prisão se apresente como um espaço majoritariamente masculino, as taxas de delinquência feminina encontram-se em constante elevação; a mulher vem, ao longo do tempo, ampliando sua participação na sociedade, inclusive no mundo do crime sendo constante o seu envolvimento com criminosos, que as iniciam na criminalidade.
Neste sentido, tem-se como elemento norteador a ausência de condições mínimas necessárias para que as mulheres que se encontram cumprindo penas, possam vislumbrar a real noção do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, através de medidas asseguratórias deste, por parte do Estado; observando que muitas, devidos sua condição social reduzida, não possuem amparo público ou privado, para a busca de alternativas diante da situação em que se encontram.
O tratamento prisional para a encarcerada é pior que o dispensado aos homens, que também têm precárias condições no cárcere, porém, a desigualdade de tratamento é patente e decorrente de questões culturais vinculadas à visão da mulher. Estas possuem direitos ao tratamento condizente com as suas peculiaridades e necessidades, próprias da aplicação do princípio constitucional de individualização da pena, da qual decorre a regra constitucional de Direito Penal explicitada no artigo 5º, inciso XLVIII, segundo o qual “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.” (BRASIL, 2012, p. 24)
Sendo que o desrespeito aos direitos afronta a própria dignidade humana e os diversos dispositivos da legislação infraconstitucional. Portanto, o Princípio da Dignidade Humana é significativo porque se refere a um critério de valor obrigatório, juridicamente legitimado pela Constituição Federal. Assim, todos os direitos e garantias estabelecidos pela Constituição podem ser efetivados através de medidas judiciais, haja vista que devido à sua intangível dignidade, o homem tem direito ao respeito.
3.3 A ESTRUTURA PRISIONAL FEMININA E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA
Analisando as Constituições dos países observa-se como um dos principais fundamentos a dignidade da pessoa humana e regem-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Quando falamos em dignidade da pessoa humana devemos entendê-la como um valor espiritual e moral inerente a pessoa, cujo valor deva manifestar-se na condução de sua própria vida e no respeito à vida dos seres humanos que vivem em sociedade.
Neste sentido, para que tais objetivos se cumpram é preciso apresentar propostas que propiciem o verdadeiro resgate do condenado e sua reintegração social, de modo que o tempo de reclusão venha a servir, não somente para retribuição do mal causado, mas como forma de renovação e aprendizado aliada a capacitação profissional proporcionada pelo Estado, buscando valorizá-lo e preservá-lo em sua dignidade. Desta forma, no que se refere ao status jurídico-normativo do principio da dignidade da pessoa humana, o professor Sarlet (2007, p. 47) proclama que no âmbito de nosso ordenamento constitucional:
o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, guindando-a, pela primeira vez à condição de princípio (e valor) fundamental (artigo 1º, inciso III) Aliás, a positivação na condição de princípio jurídico-constitucional fundamental é, por sua vez, a que melhor afina com a tradição dominante no pensamento jurídico constitucional luso-brasileiro e espanhol apenas para mencionar os modelos mais recentes e que têm exercido – ao lado do paradigma germânico – significativa influência sobre a nossa própria ordem jurídica.
A ideia da dignidade como valor e norma, fonte do sistema constitucional, possibilita o entendimento da pessoa humana, através do seu papel especial, para tanto, este princípio ganhou destaque dentro do primeiro artigo da nossa Constituição; sendo que o seu reconhecimento normativo traduz, em parte, a pretensão constitucional de transformá-lo em um parâmetro objetivo de harmonização dos diversos dispositivos constitucionais.
Após este entendimento, percebemos que o principio da dignidade da pessoa humana não teria utilidade se a própria Carta Magna não garantisse o núcleo básico de direitos aos cidadãos. Por isso sua relação com os direitos e garantias fundamentais, bem como sua identificação como cláusula aberta à recepção do surgimento de novas gerações de direito.
Desta maneira, entende-se que conceber a dignidade significa admitir que o Estado se constrói a partir da pessoa humana; implicando no reconhecimento de um dos fins do Estado brasileiro, que deve ser o de propiciar as condições materiais mínimas para seus cidadãos. Sendo que o doutrinador Moraes (2007, p. 34) destaca os relevantes aspectos sobre a importância do principio da dignidade da pessoa humana no contexto constitucional:
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: o de fonte jurídico-positiva de direitos fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. Dessarte o extenso rol de direitos e garantis fundamentais consagrados no título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art.1º, III). Em suma, os direitos fundamentais são uma primeira e importante concretização desse último princípio, que se trate dos direitos e deveres individuais e coletivos (art.5º). Dos direito sociais (arts.6º a 11) ou dos direitos políticos (arts.14 a 17). Ademais, aquele princípio funcionará com uma ´cláusula aberta´ no sentido de respaldar o surgimento de ´direitos novos´ não expressos na Constituição de 1988, mas nela implícitos, seja em decorrência do regime e princípios por ela adotados, ou em virtude de tratado internacionais em que o Brasil seja parte, reforçando, assim, o disposto no art. 5º, parágrafo 2º. Estreitamente relacionada com essa função, pode-se mencionar a dignidade da pessoa humana como critério interpretativo do inteiro ordenamento constitucional.
Partindo deste entendimento constitucional, fica clara a importância da ratificação do princípio da dignidade da pessoa humana, pois este comporta diversas interpretações dentro do universo normativo, estando o mesmo em destaque no tocante a análise dos direitos inerentes aos detentos do sistema penitenciário nacional, especificamente as apenadas, sendo necessária a urgente interpretação do artigo 1º da Lei de Execução Penal, de forma adequada, objetivando diminuir as discrepâncias entre a letra da lei e a prática carcerária.
Neste sentido, citamos abaixo, o julgado do Supremo Tribunal Federal, que ratifica a importância da reinclusão social dos presos observados os fundamentos da Carta Magna, cidadania e dignidade humana, nos seguintes termos:
"A Lei de Execução Penal – LEP é de ser interpretada com os olhos postos em seu art. 1º. Artigo que institui a lógica da prevalência de mecanismos de reinclusão social (e não de exclusão do sujeito apenado) no exame dos direitos e deveres dos sentenciados. Isso para favorecer, sempre que possível, a redução de distância entre a população intramuros penitenciários e a comunidade extramuros. Essa particular forma de parametrar a interpretação da lei (no caso, a LEP) é a que mais se aproxima da CF, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos (incisos II e III do art. 1º). A reintegração social dos apenados é, justamente, pontual densificação de ambos os fundamentos constitucionais." (HC 99.652, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 3-11-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009.)
Observando o julgado temos a clara noção da importância da dignidade humana e sua valoração enquanto mecanismo de resocialização dos apenados, que devem ser reintegrados e sociedade, garantido a estes os fundamentos constitucionais prescritos para todos os cidadãos. No entanto, constata-se no cotidiano a total violação, pela inaplicabilidade, do principio da dignidade humana, uma vez que no atual estágio em que se encontram certas prisões, estas são incapazes de oferecer ao condenado a tão falada ressocialização.
Diante da precariedade que vive o sistema penitenciário, não só brasileiro, mas também de outros países, verifica-se que se torna impraticável realizar a reintegração social da condenada, sobretudo, porque em muitas, se não a maioria das unidades penais, não se oferece trabalho ou estudo, o que o torna a apenada escrava da privação de liberdade sem nenhum retorno.
Além da ausência do tratamento penal em sua essência que deveria, por lei, ser propiciado a condenada, há também a convivência com a degradação material das unidades prisionais e o tamanho desproporcional das celas onde se empilham vidas humanas. A Lei de Execução Penal também estabelece metragens para as prisões e há uma série de requisitos que, legalmente, devem ser obedecidas para a construção das penitenciárias.
Referente a esta falta de meios adequados, assim como, de pessoal capacitado para colocar em prática um tratamento penitenciário digno e eficaz Bittencourt (2012, p. 189), comenta:
A ressocialização passa pela consideração de uma sociedade mais igualitária, pela imposição de penas mais humanitárias, prescindindo dentro do possível das privativas de liberdade, pela previsão orçamentária adequada à grandeza do problema penitenciário, pela capacitação de pessoal técnico, etc. Uma consequência lógica de teoria preventivo-especial ressocializadora é no âmbito penitenciário, tratamento do delinquente. A primeira contrariedade que se apresenta em relação ao tratamento penitenciário é sua eficácia diante das condições de vida que o interior prisional oferece atualmente. Em segundo lugar, mencionam-se os possíveis problemas para o delinquente e seus direitos fundamentais que a aplicação acarretaria. Finalmente, a terceira posição refere-se à falta de meios adequados e de pessoal capacitado para colocar em prática um tratamento penitenciário eficaz.
A falta de estabelecimentos adequados leva muitos Estados da Federação Brasileira a colocar as presas para cumprirem sua pena em contêineres, onde as condições são inadequadas, inclusive para o atendimento pelo advogado. O tratamento dado a mulher presa em contêiner é um ultraje ao Estado Democrático de Direito, pois, dessa forma, se torna inviável reeducá-la e o resultado de tais atitudes é torná-la cada dia mais embrutecida, sentindo-se um animal pela condição desumana e degradante, devolvendo a sociedade o resultado de um “produto” mal elaborado.
Dessa forma, observa-se que a execução penal, cujo objetivo é efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal proporcionando condições para a harmônica integração do condenado, não tem uma das suas finalidades cumpridas, que corresponde a ressocialização. Apesar de a Lei de Execução Penal preponderar a finalidade preventiva-especial positiva, ou seja, a ressocialização.
Neste sentido, existe um abismo dentro das práticas penais no Brasil, pois ocorre uma enorme dificuldade, no tocante a compatibilizar as normatizações legais, os princípios basilares constitucionais e a prática do Sistema Prisional; neste sentido, o artigo 88 da Lei de Execução Penal garante a todos os presos requisitos básicos da unidade celular, como a salubridade do ambiente, uma área mínima, dormitório, aparelho sanitário, dentre outros; sendo que a integridade física das presas deverá sempre ser respeitada, como afirma Da Silva (2009, p. 199):
Agredir o corpo humano é um modo de agredir a vida, pois esta se realiza naquela. A integridade físico-corporal constitui, por isso, um bem vital e revela um direito fundamental do indivíduo [...] Agora, a Constituição vai mais longe: além de garantir o respeito à integridade física e moral, declara que ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante.
O referido preceito constitucional, o respeito a vida, garante a dignidade de todos os detentos que se encontram sob a tutela do Estado, sendo que este caráter formal, em muitos casos não é percebido, quando se observa de maneira mais detalhada para dentro das estruturas do Sistema Penitenciário Brasileiro; neste sentido, o autor continua:
É que a vida, além de ser um direito fundamental do indivíduo, é também um interesse que, não só ao Estado, mas à própria humanidade, em função de sua conservação, cabe preservar. Do mesmo modo que a ninguém é legítimo alienar outros direitos fundamentais, como a liberdade, por exemplo, também não se lhe admite alienar a própria vida em nenhuma de suas dimensões (DA SILVA, Idem, p. 200).
Desta forma, fica ainda mais claro o entendimento de que o direito a vida é, e sempre será, o principal objetivo de nossa Constituição, sendo que atrelado a este direito, caminha a dignidade da pessoa humana. Nos termos do artigo 89, da referida Lei de Execução Penal, temos o reconhecimento acerca das diferenças de gênero, objetivando diminuir as desigualdades existentes entre homens e mulheres encarcerados.
Neste sentido, além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária feminina será dotada de seção especial para as gestantes e parturientes e de creche para abrigar crianças de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa. Sendo que fundamental importância o cumprimento desta normatização do artigo 88, como forma de valorizar a dignidade das apenadas.
Percebemos que o papel da maternidade no contexto prisional é de relevante importância para a socialização da mulher, neste ambiente; assim como, sua ressocialização após o cumprimento da pena. Pois a mulher apenada atravessa um processo de abdicação referente a algumas funções, como a prática habitual da maternidade, a sentido de esposa ou de obrigações/práticas femininas em sentido estrito.
Sendo que esta construção social, determinada pelo cárcere, pode transformar-se em um sentimento de culpa íntimizada pela mulher, contribuindo o mesmo, enquanto entrave, dentro do sentido de caminhar para a ressocialização. Percebe-se, portanto, que a omissão ou a falta de medidas que objetivem consolidar as normatizações, estabelecidas pela LEP, no tratamento das apenadas pelo Sistema Penitenciário, promove o contexto de desvalorização da população carcerária feminina.
O problema em questão é a desigualdade que a mulher sofre no contexto prisional, porquanto a lógica masculina prevalece sobre o sistema, visto que as instalações internas das prisões femininas, que, na maioria dos casos são mistas, com estruturas precárias, não atendendo aos requisitos dos textos legais, mais especificamente aos da Lei de Execução Penal, cuja base é constitucional. Portanto, a Lei nº 7.210/84 que anunciava uma revolução no sistema penitenciário brasileiro ainda carece de certas considerações em determinados aspectos.
É necessária, portanto, uma urgente reforma nos estabelecimentos penais destinados a mulheres, a fim de atender os requisitos básicos das penitenciárias femininas no que tange a seção para gestantes e parturientes. A fim de que o papel ressocializador da pena possa ser cumprido.
Assim como obedecer a garantia constitucional, assegurando às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. No entanto, atrelado a esse conceito, é de importância relevante retirar do plano simbólico, princípios da Constituição Federal que garantem a igualdade entre gêneros, e principalmente a dignidade da pessoa humana no que concerne à relação materna no sistema carcerário. Para tal entendimento temos os ensinamentos do professor Ingo Salert (2007, p. 53), que aborda a questão acerca da dignidade como fundamento da nossa República, pois:
não se deverá confundir as noções de dignidade da pessoa humana e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo. Registre-se, neste contexto, o significado da formulação adotada pelo nosso Constituinte de 1998, ao referir-se à dignidade da pessoa humana com fundamento da República e do nosso Estado democrático de Direito. Neste sentido, [...] na sua dimensão jurídica e institucional, a concepção de dignidade humana tem por escopo o indivíduo (a pessoa humana), de modo a evitar a possibilidade do sacrifício da dignidade da pessoa individual em prol da dignidade humana como bem de toda a humanidade ou na sua dimensão transindividual.
A partir deste pensamento doutrinário, percebe-se que a concepção de dignidade humana, adotada em nossa Constituição de 88, não poderá jamais ser usurpada por fundamentos quais que queiram retirar seu caráter pessoal ou individual. Desta maneira, as apenadas, mesmo encontrando-se nesta situação de tolhimento de sua liberdade; ainda sim, são possuidoras de todas as prerrogativas legais e dos direitos individuais inalienáveis do cidadão.
4 DIGNIDADE HUMANA E O SISTEMA PENAL FEMININO
4.1 OS DIREITOS DAS APENADAS, ATRAVÉS DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA, DENTRO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO.
Vários estudos apontam para a falência do sistema carcerário no Brasil; destacando a precariedade e as condições subumanas que as detentas vivem, além da extrema violência material e simbólica. Os presídios tornaram-se depósitos humanos, onde a questão da superlotação acarreta inúmeros problemas, desde a violência, as doenças graves que se proliferem dentro e para fora dos muros da unidade prisional e o comércio e consumo de drogas, cada vez mais habitual nos presídios, configurando-se em uma relação onde o mais forte, subordina o mais fraco.
A incessante batalha, no sentido de dialogar com os problemas apresentados pelo nosso Sistema Penitenciário Brasileiro, além de ser algo complexo, comporta inúmeras contradições em diversos campos. É certo que um conjunto significativo de pesquisadores dedica-se a estudos sobre a problemática da violência e da criminalidade. Porém, ressalta-se que uma parcela significativa destes estudiosos não se preocupa especificamente com os temas voltados para o Sistema Penitenciário; e muito menos ainda, com a questão da prisão de mulheres e o pagamento das suas penas.
Analisando o histórico da formação do sistema penitenciário, observa-se que desde os tempos mais remotos, em diversos países a perspectiva é crítica. Neste sentido, segue-se uma tradição, caracterizada pelas mazelas que acompanham o próprio sistema desde sua fundação, sendo que no Brasil a questão penitenciária é ainda mais precária, pois estes locais passam a se configurar enquanto depósitos humanos, escolas de crime e fábrica de rebeliões, desta forma, não podemos mais fingir que o fato em questão não nos diz respeito.
Vale ressaltar acerca desta visão, que o artigo 5º, XLIX, da CF/88, prevê que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, porém, o que se observa ao longo dos anos, é o Estado não garantindo a execução do que preceitua a normatização constitucional; seja por descaso do governo, pela falta de cobrança da sociedade, que muitas vezes se sente aprisionada pelo medo e insegurança ou pela corrupção existente dentro dos presídios.
Neste sentido, embora as condições variem significativamente de um estado para outro, e de uma instituição para outra, as condições carcerárias no Brasil são normalmente assustadoras; vários estabelecimentos prisionais mantêm entre duas e cinco vezes mais presos do que suas capacidades comportam. Em alguns estabelecimentos, a superlotação atingiu níveis desumanos, com detentos amontoados em pequenas multidões.
As celas lotadas e os dormitórios desses lugares mostram como os presos se amarram pelas grades para atenuar a demanda por espaço no chão, ou são forçados a dormir em cima de buracos de esgoto; na maioria das prisões, a distribuição do espaço é relativamente irregular, de forma que o pior da superlotação recai desproporcionalmente sobre certos presos. Em geral, presos que são mais pobres, mais frágeis e menos influentes tendem a viver em acomodações menos habitáveis.
Tipicamente, as celas de castigo e triagem são as áreas mais apertadas e menos confortáveis. A prática de torturas e de agressões físicas é uma das várias outras garantias que são desrespeitadas dentro da prisão; essas agressões geralmente partem, tanto dos outros presos, como dos próprios agentes da administração prisional, sendo estes últimos os agentes penitenciários e os policiais, principalmente após tentativas de fuga e a ocorrência de rebeliões.
Inúmeros fatores se combinam para causar tais abusos, entre eles: as péssimas condições das prisões, a falta de supervisão eficiente, a abundância de armas, a falta de atividades e, talvez a mais importante, a ausência de classificação dos presos. De fato, reincidentes violentos e pessoas presas pela primeira vez por ofensas menores, normalmente dividem a mesma cela no Brasil.
Outra violação cometida, que também acaba por resultar em superlotação no sistema prisional, é a demora em se conceder os benefícios àqueles que já fazem jus à progressão de regime, ou de serem colocados em liberdade os presos que já cumpriram sua pena. Esta situação é resultado da própria negligência e ineficiência dos órgãos responsáveis pela execução penal, pois mantêm os indivíduos encarcerados de forma excessiva e ilegal.
Desta forma, no tocante aos direitos dos presos, contidos através das normatizações existentes em nosso país, que possuem como finalidade a busca por assegurar um tratamento humano aos mesmos, temos como parâmetro a Lei de Execução Penal, que comporta em seu artigo 3°, que “é garantido ao condenado e ao internado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”, sendo que, diante desta normatização, o Ministério da Justiça, a partir do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania[10], se posiciona afirmando que:
Há discrepâncias muito fortes entre a previsão legal e a realidade. No Estado Democrático de Direito, o cumprimento das leis, especialmente as que tratam de um dos maiores valores do ser humano, que é a sua liberdade, deveria ser a regra. Todavia, o que se vê em quase todos os Estados é o descumprimento flagrante das normas jurídicas que tratam da execução penal. Basta lembrar os presos que cumprem pena em regime fechado, os quais deveriam estar em celas individuais (art. 34, d 1º, do Código Penal e art. 88, da LEP). Isso raramente acontece em nosso país. As regras do regime semi-aberto estão desvirtuadas e praticamente são as do regime aberto. Não existem casas de albergados. Os patronatos não foram instalados; os Conselhos da Comunidade, com raras exceções, não cumprem suas atribuições. Em suma, a Lei de Execução Penal não passa de ficção: só existe no papel (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2007, p. 72).
Como fica exposto, o principal valor abordado nesta citação do Ministério da Justiça, concernente a liberdade do indivíduo, não é de forma alguma respeitada, pois as normas que estão contidas na Lei de Execução Penal ficam apenas na letra fria do papel; ocorrendo enormes discrepâncias entre o que esta positivado e a realidade prisional, acarretando assim, em um descrédito ainda maior acerca da capacidade de gerenciamento da questão prisional; neste sentido, através da elaboração do PRONASCI, o governo tenta buscar soluções para o grave problema carcerário:
A modernização e a reestruturação do sistema penitenciário se dão através da criação de vagas e aquisição de equipamentos de segurança. O programa prevê a criação de 41 mil novas vagas para homens e 5,4 mil para mulheres até 2011. Os estabelecimentos penais femininos já existentes receberão atenção especial, com a criação de áreas destinadas às mães de recém-nascidos. A construção de novos presídios para jovens entre 18 e 24 anos, onde será possível separar detentos por faixa etária e pela natureza do crime cometido. A medida evitará o contato de jovens que cometeram pequenos delitos com presos de alta periculosidade. Todos os presídios construídos com recursos do PRONASCI serão equipados ainda com módulos de saúde e educação (sala de aula, laboratório de informática e biblioteca), e o estado ou município que tiver interesse em construir novas unidades terá à disposição recursos do programa. (Idem, 2007, p. 62)
A estrutura do projeto demonstra o interesse em combater as mazelas do Sistema Penitenciário Brasileiro, porém, a aplicabilidade do mesmo, esbarra nos tramites burocráticos, na morosidade das negociações e licitações e na falta de escrúpulos de alguns administradores; no tocante as detentas a carência de áreas para o acolhimento das mães com seus filhos recém-nascidos é sem sombra de dúvidas uma grave falha do sistema e uma negligencia por parte do Estado.
Desta forma, percebemos que com o decorrer do tempo, a função das prisões vem se modificando e, atualmente, é considerada, ou acaba por ser, um “depósito” de delinquentes infratores, criminosos, bandidos que devem “pagar” por seus atos e crimes – como suplica a sociedade. Muitos, na verdade, encontram-se vivendo de forma irregular perante a Lei de Execução Penal, estão em regime fechado nas penitenciárias, quando deveriam cumprir pena em regime semiaberto, sendo esta uma das causas da superlotação e consequentemente das rebeliões.
O Brasil possui um dos maiores sistemas prisional do planeta e são notórias as condições cruéis e desumanas dos apenados em nosso país e principalmente das apenadas, como já foi mencionado anteriormente; as instalações carcerárias são vergonhosas e o cumprimento da pena beira a barbárie. Dessa forma, o Direito Penal, assim como as prisões, estariam servindo de instrumento para conter aqueles não “adequados” às exigências do modelo econômico neoliberal excludente, que são os miseráveis que acabam sucumbindo às tentações do crime, tornando-se delinquentes.
Assim, o sistema penal e, consequentemente o sistema prisional, não obstante sejam apresentados como sendo de natureza igualitária, visando atingir indistintamente as pessoas em função de suas condutas; têm na verdade um caráter eminentemente seletivo, estando estatística e estruturalmente direcionado às camadas menos favorecidas da sociedade.
Neste sentido, o delinquente é condenado e preso por imposição da sociedade, ao passo que recuperá-lo é um imperativo de ordem moral, do qual ninguém deve se escusar; a sociedade somente se sentirá protegida quando o preso for recuperado, sendo que a prisão existe por castigo e não para castigar, sendo que jamais devemos nos esquecer disso.
Os estudos acerca do tema demonstra que os doutrinadores do assunto na atualidade, com acertado critério, proclamam a tese de que o preso, mesmo após a condenação, continua titular de todos os direitos que não foram atingidos pelo internamento prisional decorrente da sentença condenatória em que se impôs uma pena privativa de liberdade.
Com a condenação, cria-se uma especial relação de sujeição, que se traduz em complexa teia jurídica entre o Estado e o condenado, em que, ao lado dos direitos do primeiro, observam-se uma vasta legislação pertinente, que se constituem enquanto os deveres do preso; sendo que os direitos do segundo, deveriam ser respeitados pela administração penitenciária e demais órgãos que compõem o Sistema de Segurança Pública.
Por estar cerceado da liberdade, o preso encontra-se em uma situação especial que condiciona uma limitação dos direitos previstos na CF/88 e nas leis, mas isso não quer dizer que perde, além da liberdade, sua condição de pessoa humana e a titularidade dos direitos não atingidos pela condenação. Neste ponto, é salutar abordar a questão prisional feminina e todas as suas peculiaridades inerentes a figura feminina.
No contexto do encarceramento feminino, quase inexistem estudos sobre a situação de mães apenadas, estando as mesmas com suas crianças, atrás das grades; desta forma, a maternidade torna-se limitada em razão dos muros (visíveis e invisíveis) de uma prisão; sendo, porém, assegurados em lei, aspectos importantes para estas mulheres, como a existência de unidades prisionais exclusivas, o direito ao aleitamento materno, a instalação de berçários, entre outros. No entanto, na prática, não ocorre à institucionalização dessas ações, ou quando efetivadas, configuram-se como algo pontual, dentro de um amplo universo prisional brasileiro.
Observa-se que as ações institucionais se desenvolvem sem nenhum planejamento que leve em consideração a humanização da execução penal. São precárias, isoladas, pontuais, ineficazes e têm contribuído para a degradação e violação do direito a uma vida digna. Nota-se que todas as formas de encarceramento são complexas, e isso implica pensar no agravamento dessa situação, especialmente quando seres humanos, reconhecidos legalmente como prioridade absoluta, estão em uma de suas fases mais significativas: os primeiros anos de vida.
Neste sentido, a falência de nosso sistema carcerário tem sido apontada, acertadamente, como uma das maiores mazelas do modelo repressivo brasileiro, que, hipocritamente, envia condenadas para penitenciárias, com a apregoada finalidade de reabilitá-las ao convívio social, mas já sabendo que, ao retornar à sociedade, estas estarão mais despreparadas, desambientadas, insensíveis e, provavelmente, com maior desenvoltura para a prática de outros crimes, até mais violentos, em relação ao que as conduziu ao cárcere.
A superlotação devido ao numero elevado de presos, é talvez o mais grave problema envolvendo o sistema penal hoje. As prisões encontram-se abarrotadas, não fornecendo o mínimo de dignidade humana; todos os esforços feitos para a diminuição do problema, não chegaram a nenhum resultado positivo, pois a disparidade entre a capacidade instalada e o número atual de presos tem apenas piorado.
Devido à superlotação muitos dormem no chão de suas celas, às vezes no banheiro, próximo a buraco de esgoto. Nos estabelecimentos mais lotados, onde não existe nem lugar no chão, presos dormem amarrados às grades das celas ou pendurados em rede (FERREIRA, 2004). Com a lotação do sistema prisional, não existem mais estabelecimentos prisionais destinados, exclusivamente, aos presos que aguardam julgamento; as Cadeias públicas, delegacias, presídios, penitenciárias, todos foram transformados em depósito de pessoas, que não são tratados como tais.
Desta forma, as rebeliões que tem acontecido, com tamanha frequência, já fazem parte do dia-a-dia e é o resultado da caótica realidade do sistema penitenciário. Dentro deste cenário, as apenadas encontram-se ainda mais marginalizadas, pois o número da população carcerária feminina tende a crescer a cada ano, sendo que o sistema não foi pensado e muito menos elaborado para este gênero, agravando ainda mais o cumprimento da pena; a reivindicação mais comum é referente a melhoria das condições estruturais dos estabelecimentos prisionais.
Observando este quadro, sobre as condições carcerárias na atualidade, podemos não obstante lembrar de como o Sistema Penal europeu do século XIX, comportava estas mesmas características presentes agora nos presídios do início do século XXI, nas palavras de Folcault (2003, p. 107-8), que nos mostra as causas das rebeliões daquela época e como estas não diferem das nossas atuais:
Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo. Os objetivos que tinham suas palavras de ordem, seu desenrolar tinham certamente qualquer coisa paradoxal. Eram revoltas contra toda miséria física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação e o excesso de população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas também revoltas contra as prisões-modelos, contra os tranquilizantes, contra o isolamento, contra o serviço médico ou educativo. Revoltas cujos objetivos eram só materiais? Revoltas contraditórias contra a decadência, e ao mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas, e ao mesmo tempo contra os psiquiatras? De fato, tratava-se realmente de corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos: como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do século XIX. O que provocou esses discursos e essas revoltas, essas lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas, essas ínfimas coisas materiais.
No século XIX, o clamor por mudanças por parte da população carcerária, concernente às melhorias nas estruturas prisionais e também as modalidades de tratamento que eram submetidos os encarcerados, demonstram a ocorrência de uma perpetuação referente a algumas características desta estrutura de segurança pública até os dias atuais; onde sem sombra de dúvidas, tendem a serem mais nocivas estas mazelas apresentadas pelo sistema, para a população carcerária feminina.
As rebeliões ou revoltas, existentes na época, apresentavam reivindicações dos presos não atendidas, principalmente com relação ao tratamento dispensado pelos funcionários do sistema penitenciário; estas mesmas, de forma anacrônica encontram-se presentes dentro dos muros dos presídios da atualidade, como afirma o referido autor (Idem, p.108):
Quem quiser tem toda a liberdade de ver nisso apenas reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas. Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade medida em que ele é instrumento de vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” – a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras – não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos. É desta prisão, com todos os investimentos políticos do corpo que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história. Por puro anacronismo? Não, se entendemos com isso fazer a história do passado nos termos do presente. Sim, se entendermos com isso fazer a história do presente.
A noção de prisão neste sentido ultrapassaria a questão da pena propriamente dita, para chegar ao corpo do prisioneiro através de um tratamento aviltante e em muitos casos degradante, onde os funcionários passam a aplicar uma dupla pena; neste prisma, as apenadas brasileiras, encontram-se, devido as mazelas das estruturas prisionais e a falta de dignidade no tratamento dispensado por parte dos serventuários, cumprindo esta dupla pena.
As alternativas para solucionar o problema que se agrava, seria a construção de novos presídios, o livramento condicional das presas ou a privatização do sistema prisional que continua em excesso. Porém, a falta de investimento público é um grande fator que impede a solução da superlotação; há necessidade de construção de novos estabelecimentos no Brasil com infraestrutura capaz de proporcionar a ressocialização da condenada e que o mesmo tenha condições de sobrevivência de forma digna e humana.
Como demonstra o Ministério da Justiça (DPN, 2008, p. 32) desde 2002, a taxa de crescimento das mulheres nas prisões brasileiras é de aproximadamente 30%, em relação à dos homens. Analistas apontam que isso se deve, em grande parte, a um maior envolvimento das mulheres no tráfico de drogas, sendo que um número significativo delas atuam como chefes de família, onde na maior parte dos casos, sua prisão leva à desestruturação do núcleo familiar.
Desta forma, em 2007, sob liderança da Secretaria Especial de Políticas das Mulheres e do Ministério da Justiça, foi criado um Grupo Interministerial com a finalidade de elaborar propostas para a reorganização e reformulação do Sistema Prisional Feminino; envolvendo diferentes Ministérios e Secretarias do governo federal, o Grupo teceu um diagnóstico da situação e elaborou um documento que foi divulgado em dezembro de 2007. Segundo o texto, atualmente:
[...] o retrato do sistema prisional brasileiro é composto de imagens que revelam o desrespeito aos direitos humanos e, ao olharmos especificamente para as mulheres que estão neste sistema, as imagens são ainda mais aterradoras, pois a elas é destinado o que sobra do sistema prisional masculino: presídios que não servem mais para abrigar os homens infratores são destinados às mulheres, os recursos destinados para o sistema prisional são carreados prioritariamente para os presídios masculinos e, além disso, os presos masculinos contam sempre com o apoio externo das mulheres (mães, irmãs, esposas e ou companheiras) ao tempo que as mulheres presas são abandonas pelos seus companheiros e maridos. Restando- lhes, apenas, a solidão e a preocupação com os filhos que, como sempre, ficam sob sua responsabilidade. (SEPM, 2007, p. 23)
Vale ressaltar a formação histórica dos presídios, como exposto acima, voltados exclusivamente para os homens, na sua origem, sendo que estes não foram preparados para receberem a clientela feminina, onde as apenadas sofrem uma forte marginalização, ou seja, a mulher presa é segregada dentro e fora dos muros existentes nos presídios brasileiros.
Em muitas unidades, a violação de direitos, vivida pela gigantesca maioria da população prisional, tem sua perversidade acentuada no caso das mulheres. A elas são negadas unidades com quadra de esporte, atendimento de saúde especializado, a convivência com os filhos pequenos, visitas íntimas, acesso a determinados livros e a uma educação profissional que vá além dos cursos e oficinas, de pequena duração, considerados tradicionalmente “de mulheres”.
O reforço aos estereótipos de gênero está na origem das prisões femininas no Brasil, que nasceram vinculadas a ordens religiosas, que atuaram durante parte da história colonial brasileira, como espaços de “purificação” das mulheres criminosas. “A intenção era que a prisão feminina fosse voltada à domesticação das mulheres criminosas e à vigilância da sua sexualidade; tal condição delimita na história da prisão os tratamentos diferenciados para homens e mulheres”. (Idem, 2007).
Essas são as causas mais comuns das rebeliões. Toda essa falta de estrutura, morosidade da justiça, espancamentos, torturas, enfim, toda essa violação dos direitos humanos acaba por gerar conflitos entre os detentos. Assim, Lima (2005, p. 48) assinala: “o desespero dos presos acaba gerando conflitos, onde milhares deles amotinam-se para exigir melhores condições de vida em troca da liberdade de reféns”. Não sendo esta realidade diferente no caso das mulheres encarceradas dentro das estruturas penitenciárias em todo o país.
4.2 A VALORIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO FAMILIAR COMO FORMA DE CUMPRIMENTO DIGNO DA PENA
Neste ponto, é importante situar as ações institucionais voltadas para a mãe presa, como forma de compreender melhor a realidade e o descompasso dos direitos declarados em lei; assim como, aquelas questões específicas e particulares do “todo feminino”. Essas temáticas estão referidas no conjunto que compreende a mulher, prisão, criança e os direitos humanos, sendo preciso considerar esses embates no reflexo da política penitenciária, que, de uma maneira geral, não apresenta diretrizes definidas quanto à singularidade da mãe presa.
O encarceramento feminino, comporta peculiaridades diversas, com restrições “intramuros”, como a visita íntima, que ultrapassa o ambiente de prisão; longe de ser um espaço para “reintegração”, a prisão de mulheres parece ter seu efeito mais perverso na quebra dos vínculos familiares, no abandono de crianças, que, mesmo estando além dos muros de confinamento, se encontram em outros muros de exclusão e de miserabilidade, com a ausência da figura materna.
Apesar da existência do dispositivo legal, a realidade prisional brasileira vem mostrando que, em algumas unidades da Federação, existe um complexo penitenciário polivalente, em que o local para mulheres é uma de suas unidades, ainda que tenha separação por gênero; ou, pior ainda, existe apenas uma cela destinada a essa categoria.
Neste sentido, a inserção de mulheres gestantes para cumprimento de pena privativa de liberdade já se constitui como uma questão que merece reflexão e ações no âmbito da gestão dos complexos prisionais; são inegáveis as precárias condições de habitação/cela em que se encontram as apenadas, concernente as estruturas de funcionamento das penitenciárias brasileiras.
Esse problema se agrava à medida que as unidades femininas não dispõem de recursos humanos especializados e espaços físicos necessários à saúde da mulher, em especial ao tratamento pré-natal e pós-natal. Com isso, pode-se afirmar que há um descompasso da lei (e também sua omissão) frente às particularidades do encarceramento feminino brasileiro. Sendo que na prisão, a detenção incorpora, além da privação de liberdade, outras perdas profundas das individualidades. Alguns exemplos são: o despojamento da aparência física, o uso de uniformes-padrão, a forma de caminhar com as mãos para trás, entre outros, significando uma série de degradações e humilhações.
Desta forma, embora esses padrões prisionais tenham sido pensados para o “homem criminoso”, eles não são diferentes para uma prisão de mulheres. Observa-se que a rotina de uma instituição total e, aqui, especificamente de uma prisão, tem uma peculiaridade de controle delimitada pelo corpo dirigente e pelo corpo dos funcionários. Nesse contexto de perda de autonomia, a mulher, quando inserida no sistema penitenciário, é despojada também, como o homem, de seus papéis e das relações sociais com o mundo externo às grades.
Contudo, a mulher apresenta uma singularidade em relação à quebra dos vínculos e papéis familiares. O fato de ocorrer nascimento e/ou permanência de crianças no interior da prisão já remete a situações que extrapolam a condenação legal e que apresentam reflexos sociais na ultrapassagem da pena para os familiares, impondo a implantação de políticas sociais, criminais e penitenciárias de respeito à diversidade.
Neste prisma, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – Lei nº 8.069/90, produto de um amplo processo organizativo da sociedade para a superação do comportamento tradicional, alicerçado no abandono, na carência e na delinquência dos menores, assegura a prioridade absoluta à criança e ao adolescente como dever da família, da sociedade e do Estado, pois em seu art. 1º, esta normatizado que “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.
Neste sentido, os menores são definidos como pessoas, sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento; ou seja, preconiza-se que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo, na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais (art. 5º).
Desta forma, referente a questão prisional feminina, o ECA, impõe-se ao Poder Público, às instituições e aos empregadores, o dever de propiciar condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade, através do seu art. 9º; onde as unidades prisionais deverão comportar esta normatização.
Relativamente aos filhos destas, mais uma observação se impõe; nos termos da Constituição da República, “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação” (art. 5º, inc. L, CF/88). Por esse motivo, a Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal – LEP –, foi alterada pela Lei 9.046, de 18 de maio de 1995, para incluir o seguinte mandamento: “os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam amamentar seus filhos” (art. 83, § 2º, LEP).
Nessa proteção legal, está prevista a instalação de ambiente prisional específico para a mulher, com destinação de um berçário, ficando facultativa a instalação de creches, sendo importante observar, como já foi discutido anteriormente, que as estruturas prisionais brasileiras, não foram pensadas e muito menos planejadas para tal peculiaridade.
Outro fator bastante problemático refere-se ao período ou idade máxima para a permanência da criança junto à mãe que cumpre pena de prisão, havendo uma variação de 04 meses a 06 anos. Sabe-se que a própria Constituição Federal e a Lei de Execução Penal não definem um período de tempo mínimo para a permanência da criança junto à mãe que cumpre pena de prisão; apenas mencionam o direito que têm as mães de amamentar os seus filhos ou filhas. Assim, em termos legais, a mulher presa tem o direito de permanecer com o filho no período de aleitamento, em instalação de berçário.
No tocante ao tempo de amamentação, o Ministério da Saúde e a Organização Pan Americana da Saúde editaram o Guia[11] alimentar para crianças menores de dois anos, no qual se mencionam diversos estudos e pesquisas. Nesse documento, explicita-se que os Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) devem fortalecer as atividades e elaborar novos critérios para proteger, promover e apoiar o aleitamento materno exclusivo durante seis meses, como recomendação de saúde pública mundial, tendo em conta as conclusões da reunião consultiva de especialistas da OMS sobre a duração ótima do aleitamento materno exclusivo.
Os Estados também devem proporcionar alimentos complementares apropriados, junto com a continuação da amamentação, até os dois anos de idade ou mais, dando ênfase a esses conceitos nos canais de divulgação social, a fim de induzir as comunidades a desenvolverem essas práticas (Organização Mundial da Saúde. Resolução WHA 54.2, par. 2. WHO, 2001). Dessa forma, a amamentação exclusiva até os seis meses e, a partir daí, complementada por outros alimentos, que serão introduzidos gradativamente, é medida de saúde pública.
Além das normas constitucionais, internacionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, a melhor interpretação para o direito à amamentação, à convivência familiar e comunitária e, assim, à vida e a condições dignas de sobrevivência, hoje, talvez esteja contida no Projeto de Diretrizes das Nações Unidas Sobre Emprego e Condições Adequadas de Cuidados Alternativos com Crianças, apresentado pelo Brasil ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU, em 31 de maio de 2007, no qual se propõe:
Quando o único ou o principal responsável pela criança for condenado à privação de liberdade ou estiver em prisão preventiva, os interesses da criança devem ser considerados acima de tudo. Sentenças que não prescreverem a custódia ou a decisão de novo julgamento deverão ser aplicadas sempre que possível. Os Estados devem levar em consideração o que seria melhor para a criança, ao decidirem pela retirada de crianças nascidas na prisão ou que viverem com um dos pais na prisão. A sua retirada deve ser tratada da mesma forma que a retirada em outros casos. No caso de crianças abaixo de três anos, a retirada não deve, em princípio, ser feita contra a vontade do pai em apreço. Deve-se fazer o máximo esforço para assegurar que a criança que ficar na prisão com o pai ou a mãe receba cuidados e proteção adequados, de modo a garantir-lhe a liberdade e a convivência comunitária. (BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Ministério de Relações Exteriores (MRE) e Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Projeto de Diretrizes das Nações Unidas Sobre Emprego e Condições Adequadas de Cuidados Alternativos com Crianças. Brasília, 2007. p. 17.)
Segundo o exposto, o Estado deve buscar garantir o cuidado e a proteção das crianças que se encontram nos presídios com seus genitores, garantindo-lhes “liberdade” e convivência comunitária; porém, devemos destacar que a falta de estrutura prisional e a mazelas do sistema penitenciário, que contribuem para a agravamento da pena e um maior sofrimento das apenadas, é também repassado para seus filhos destas.
Desta maneira, o preceito legal parece colidir com aspectos subjetivos da gestão prisional; com isso, a maternidade na prisão pode constituir-se de forma ambígua, pois de um lado, funcionaria como fator de felicidade; de outro e, ao mesmo tempo, como dupla penalização, face ao momento de separação entre a criança e a mãe-presa, como preceitua o Comitê dos Direitos da Criança da ONU, onde a retirada deve ser tratada de forma especial e com todos os cuidados necessários para as duas principais partes envolvidas.
Esta sugestão apresentada pelo Brasil deve possuir o significado, menos que de forma mínima, de que todos os responsáveis pelo funcionamento das estruturas públicas de segurança assumam o compromisso de tratar nossas crianças da forma sugerida; para tanto, será necessário a superação das inúmeras mazelas apontadas até este momento, pelo presente estudo.
Ainda sobre essa questão, vale citar os documentos apresentados pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul da 7ª Promotoria da Infância e da Juventude, acerca da realização de discussões entre membros desse Órgão, da Superintendência dos Serviços Penitenciários – SUSEPE – e do Programa de Assistência à Mulher Apenada – PAMA, com o intuito de aprofundar questões referentes à permanência das crianças, filhas de mulheres presas, na penitenciária feminina Madre Pelletier (Av. Teresópolis, nº 2727 - Porto Alegre/RS.)
Nesse período de discussões, a direção da unidade prisional havia adotado o critério que os menores ficariam apenas até os seis meses de idade em companhia das mães. Desta maneira, podemos perceber que as medidas adotadas acerca desta questão são pontuais, não comportando um padrão de procedimento legitimado para todas as instituições penais do país; ficando as apenadas a mercê de critérios subjetivos em cada unidade carcerária.
Diante de uma análise mais critica sobre a realidade prisional feminina brasileira, pode-se considerar que a situação do atendimento infantil aos filhos de mulheres encarceradas, além de ser assunto polêmico, parece não dialogar com o campo dos direitos da política para a infância. Essas crianças, por não terem a necessária e efetiva visibilidade, apesar de consideradas legalmente como pessoas em desenvolvimento, estão relegadas ao “abandono” e ao “fechamento social” de uma instituição como a prisão.
Ao tratar do comprometimento das diversas práticas do encarceramento feminino, verifica-se que há vários problemas que são negados, desconhecidos e que se tornam invisíveis, como, por exemplo, o da existência de mulheres desamparadas, com filhos inseridos em diferentes destinos familiares ou entregues a estabelecimento de abrigo para crianças abandonadas.
Aliada ao fator abandono, incorpora-se uma experiência de criminalidade, o que pode ser extremamente agravante para o processo de relacionamento no futuro social da criança. Outra grave situação se estabelece quando a mãe/mulher presa não participa de nenhum programa adequado à fase de separação da criança; dessa forma, percebe-se que infelizmente o processo de separação da criança no ambiente prisional ainda não é tratado de forma aprofundada em relação aos aspectos biopsicossociais da mãe e da criança.
Na falta de uma maior discussão e aprofundamento sobre o tempo mínimo e máximo para a permanência de criança em ambiente de pena, levam as unidades prisionais brasileiras decidirem, conforme sua livre vontade e diferente interpretação legal, refletindo assim em ações institucionais diferenciadas e descaracterizadas de qualquer diretriz de política pública minimizadora de violação de direitos humanos e valorização da instituição familiar, seja para a mãe presa ou para seu filho.
4.3 RESSOCIALIZAÇÃO DAS APENADAS E DIGNIDADE HUMANA
Temos como um dos conceitos, em termos objetivos de ressocialização a consideração de uma sociedade mais igualitária, com a aplicação de penas de caráter justo e voltadas para a legitimidade dos Direitos Humanos, dentro do rol das penas privativas de liberdade, impostas pelo Estado. Sendo este mesmo Estado capaz de promover uma adequada previsão orçamentária, pela capacitação de pessoal técnico e o tratamento mais adequado às apenadas, mantendo de forma digna as estruturas do Sistema Penitenciário Brasileiro.
Sendo que a primeira contrariedade que se apresenta é em relação ao tratamento penitenciário é sua eficácia diante das condições de vida que o interior prisional oferece atualmente; em segundo lugar, mencionam-se os possíveis problemas que afetam as apenadas e seus direitos fundamentais e finalmente, a terceira posição refere-se à falta de meios adequados e de pessoal capacitado para colocar em prática um tratamento penitenciário eficaz.
Desta forma, o Estado tem como um de seus principais deveres para com as apenadas, o de proporcionar-lhes a ressocialização; contudo, ele não pode impor as detentas os valores predominantes na sociedade, limitando-se apenas a propô-los, sendo que estas mulheres terão o direito de refutá-los (se entender o caso), recusando a adaptar-se às regras fundamentais coletivas..
Neste sentido, existem preceitos de grande importância que devem ser obedecidos, os quais incluem respeito à integridade física e moral, pois a mulher presa não se configura enquanto um simples objeto de um processo administrativo-penal; ela deve ser considerada como titular de direitos e faculdades e não somente detentora de obrigações e ônus. Nesse contexto, Costa Jr. (2008, p. 153) cita:
Em homenagem ao principio da legalidade, a exemplo do que se fez o ordenamento penitenciário italiano, os direitos assegurados aos presos são enumerados na legislação especial, a LEP. Fundamental o papel a ser desempenhado pelo magistrado penal em todo o processo executório. Não só para dirimir eventuais incidentes de execução, como principalmente para supervisionar toda a atividade administrativa, assegurando aos presos seus direitos, o respeito à dignidade do condenado, a humanização do tratamento e as medidas educacionais e terapêuticas. É ele o supremo garantidor dos direitos humanos dos presos.
A partir da citação, percebemos a importância dos magistrados, no tocante a confirmação e aplicação dos dispositivos normativos contidos na Lei de Execuções Penais, como forma de salvaguardar os direitos das apenadas, pois as mesmas apesar de encontrarem-se cerceadas de sua liberdade, devido uma conduta tipificada como crime, não deixam de serem possuidoras de direitos inerentes e inalienáveis que toda pessoa humana possui consigo.
Entende-se que, a prisão deforma ainda mais o caráter da apenada, a pena que lhe é imposta tem como finalidade punir uma ilicitude e assegurar que esta não volte a acontecer. Portanto, é necessário que o ambiente seja saudável e adequado à ressocialização, tratando-se de um processo longo que deve levar a condenada à mudança de seu pensamento e a refletir como irá prosseguir sua vida fora do cárcere. Entretanto, se a apenada for inserida em um ambiente degradante, tal mudança tem poucas chances de acontecer e, assim, ela poderá até voltar a reincidir.
Neste sentido, a exclusão social, a miséria e o crime são fenômenos incompatíveis com os princípios de justiça e da liberdade que alicerçam as obrigações políticas e a sociabilidade existente na ordem democrática; sendo que o Estado deve intervir na sociedade através das leis, da polícia, do judiciário e das penitenciárias, quando situações desta natureza se apresentem.
No entanto, deve o Estado formular programas e políticas de prevenção e controle da criminalidade que se caracterizam por projetos de emprego, programas de redução da pobreza, qualificação para o trabalho e, primordialmente, a ressocialização das presas. Ou seja, trabalhar a prevenção social, devendo ocorrer a mobilização da máquina estatal para enfrentar estas questões, criando pressupostos necessários para a socialização das apenadas, como afirma Ferreira (2004, p. 56) pois:
Educação e socialização, casa, trabalho, bem-estar social e qualidade de vida são os âmbitos essenciais para uma prevenção primária, que opera sempre a longo e médio prazo e se dirige para todos os cidadãos. As exigências de prevenção primária correspondem a estratégias de política cultural, econômica e social, cujo objetivo último é dotar os cidadãos de capacidade social para superar de forma produtiva eventuais conflitos.
Desta forma, esta prevenção primária encontra configuração normativa na própria CF/88, sendo que em seu art. 1º, prescreve que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a cidadania (Inciso II); a dignidade da pessoa humana (Inciso III) e os valores sociais do trabalho (Inciso IV). Sendo que este mesmo Estado possui como objetivos fundamentais no seu art. 3º, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (Inciso I) e promover o bem de todos (Inciso IV).
Através destes princípios fundamentais, percebemos que a prevenção primária poderá ser muito bem executada, a partir do momento em que as engrenagens estatais sejam postas a serviço dos cidadãos, no intuito de se construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos; sendo estes valores comportados por todos os indivíduos, inclusive as mulheres apenadas do país.
Deve-se observar que a prevenção primária é, segundo especialistas, a mais eficaz, por atuar em prestações sociais, intervenção comunitária e, por isso, seus resultados surgem em médio e longo prazo e não de forma imediatista com reclama a sociedade. Já a prevenção secundária atua em setores de risco da sociedade, ou seja, grupos e subgrupos que ostentam maior risco de padecer ou protagonizar o problema criminal e conecta-se com a política legislativa penal, assim como com a ação policial, fortemente polarizada pelos interesses de prevenção geral.
Nesse sentido, programas de prevenção policial, de ordenação urbana e utilização do desenho arquitetônico como instrumento de autoproteção desenvolvido em bairros de classes menos favorecidas, são exemplos de prevenção secundária; porém, em muitos casos, estes servem apenas como instrumento de segregação dos grupos marginalizados e sem oportunidades, que se encontram alijados dos ditos direitos fundamentais do nosso Estado.
A proteção terciária visa os grupos que encontram-se reclusos, a população presa, com o objetivo de evitar a reincidência, através de programas ressocializadores, em que afirmam o efetivo cuidado com o indivíduo em suas relações sociais, de trabalho e familiar, em colaboração para se evitar a reincidência, como demonstra Duarte (2008, p. 23) que:
É imprescindível acreditar na viabilidade da reforma ou emenda do delinquente, que não pode ser visto como um monstro sinistro e malsão, de perversidade total e incurável. O presidiário deve ser encarado como suscetível de recuperação, por mais incompatível que seja seu temperamento e por mais chocante que tenha sido seu crime [...] Cientificamente, não é infalível que existam delinquentes irreformáveis.
Concernente as detentas, que cumprem penas dentro das estruturas do Sistema Prisional Brasileiro, estas devem participar de projetos e programas de ressocialização, no intuito de aprimorar o seu discernimento acerca do viver em sociedade e todo o conjunto normativo que nos alicerça, válido para todos os cidadãos, como forma de recuperação, após o cumprimento da pena.
Desta maneira, o legislador dotou o Brasil de um instrumento legal extremamente evoluído, no que diz respeito ao sistema penal e carcerário, mas tal sistema não é levado a efeito, o que faz com que os egressos, ou seja, aqueles que já cumpriram suas penas, pagando seu débito social, não tenham condições de serem efetivamente reintegrados ao convívio social, fato este que eleva sobremaneira os índices daqueles que voltam a delinquir e retornam para o sistema.
Acerca desta ressocialização, devemos, portanto, observar que o Título IV da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) foi destinado a disciplinar sobre os estabelecimentos penais, ou seja, sobre os locais em que as penas devem ser cumpridas por aquelas pessoas que já foram condenadas, para onde devem ser encaminhados os presos provisórios (ainda sem condenação), e também para onde devem ser remetidos aqueles cidadãos praticantes de delitos, que são considerados inimputáveis ou semi-imputáveis.
Isto é de extrema relevância, pois a falta de cuidado na aplicação destas normatizações contribui para a permanência de pessoas que possuem diferentes tipificações em um mesmo ambiente, sendo algo nocivo na maioria dos casos, principalmente para indivíduos que ainda não foram julgados ou que não possuem a capacidade de imputação de pena.
Dentro deste cenário, é importante abordar a legislação referente a assistência ao preso, que encontra-se, assim, disciplinada pelos artigos 10º (dez) a 27º (vinte e sete) da LEP, sendo que estes disciplinam a respeito da assistência material, saúde, jurídica, educacional, social, religiosa e ao egresso, ou seja, àquele que definitiva ou condicionalmente está autorizado a retornar ao convívio social, contudo, em quase nada tais disposições legais são atendidas.
A assistência material deve consistir no fornecimento ao preso e ao internado, de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. Os estabelecimentos penais devem ainda dispor de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela administração prisional (artigos 12º e 13º da LEP).
Assim exposto, observa-se que a análise acerca das instalações penitenciárias, que são destinadas para a clientela feminina, não comportam diversas destas indicações, pois as peculiaridades das apenadas, ou do gênero feminino, requer um ambiente propício para tal cumprimento da pena de forma digna e salvaguardando os direitos das detentas.
A assistência à saúde dos segregados deve ser de caráter preventivo e curativo e compreender atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para promover assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento (artigo 14º da LEP).
Esta assistência à saúde envolve na questão feminina um aparato que deve comportar meios capazes de promover a manutenção das apenadas e quando for o caso, dos filhos que estão em sua guarda, sendo esta a responsável pelos primeiros alimentos da criança, fundamentais para sua sobrevivência nesta importante etapa da vida infantil.
A assistência jurídica prevista pelos artigos 15º e 16º da mesma lei, é destinada aos presos e aos internados sem recursos financeiros para constituir um advogado, sendo que cada unidade federativa deve manter a assistência jurídica nos estabelecimentos penais; sendo que estes artigos configuram-se como letra morta, dentro da prática prisional, pois um número cada vez mais considerado de detentas encontram-se ainda nos presídios, devido a carência de recursos, no tocante a constituírem um advogado, no intuito de promover a revisão de suas penas.
A assistência social e a assistência ao egresso, disciplinadas pelos artigos 22º e 23º e 25º a 27º da já referida lei, têm por finalidade amparar o preso e o internado, prepará-lo para o retorno à liberdade e acompanhá-lo quando deste fato, estando tais encargos sob a responsabilidade do serviço de assistência social do Estado; porém, como mencionado anteriormente, a maioria das apenadas fica entregue ao ócio; não estando preparada para o retorno de forma plena para o seio da sociedade, onde irá experimentar dissabores, devido sua antiga condição.
A assistência educacional deve, segundo os artigos 17º a 21º da LEP, compreender a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado, sendo obrigatório o ensino de primeiro grau e também a dotação de cada estabelecimento penal com uma biblioteca que deve contar com livros didáticos, instrutivos e recreativos. Dentro destas normatizações, o universo carcerário feminino, constitui como carente de opções culturais, haja vista, o histórico sobre a constituição das unidades penitenciárias no país.
As assistências acima descritas são uma obrigação do Estado e um direito das apenadas e têm por objetivo proporcionar condições para que a execução penal efetivamente proporcione condições para que a apenada possa num futuro, após cumprir a pena que lhe foi imposta, ser plenamente reinserida na sociedade, sem, contudo, ser uma ameaça à mesma.
Observando este cenário, podemos detectar que o atual sistema penal e carcerário brasileiro encontra-se falido, não só pela distorção existente na lei penal, que trata de igual forma os infratores da lei, classificados como eventuais ou acidentais, os portadores de anomalia psíquica e os contumazes, conscientes ou profissionais.
Assim como, pela ausência da aplicabilidade da lei de execuções penais no que diz respeito às disposições estruturais dos estabelecimentos penais, que se encontram superlotados e da inoperância do Estado na prestação de assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa aos segregados, que também não recebem qualquer auxílio, apoio ou assistência quando do seu retorno ao convívio social.
Neste sentido, a inexistência de vontade política do Estado, que se furta a realizar os investimentos necessários no setor, o que em muito contribui para o agravamento da situação, impedindo que os segregados sociais recebam o tratamento adequado, para que posteriormente possam ser reinseridos ao convívio social, o que faz com que muitos deles voltem a delinquir e retornem ao cárcere; sendo que o nosso sistema prisional fica configurado enquanto uma verdadeira escola de marginais, e, o pior, financiada com recursos públicos.
Assim sendo, as presidiárias possuem o direito a que o Estado atue para reformá-las moral e intelectualmente, devolvendo-as curadas e recuperadas para o convívio coletivo. Sendo de incumbência do Estado orientar, corrigir e reeducar a presa, concorrendo para que ela guarde sua dignidade e forme um novo ideal embasado na renovação de conceitos, normas e valores. Assim, a educação moral deve ser a condição sine qua non da verdadeira regeneração das delinquentes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a abordagem realizada nos capítulos trabalhados na presente pesquisa de conclusão de curso, percebemos que no Brasil não se efetivou, de fato, um Estado de Bem-Estar, como normatizado pelos direitos sociais estabelecidos na Carta Magna. O capítulo 2º da CF/88, que aborda os Direitos Sociais, define, em seu art. 6º, que são direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.
Contudo, sabe-se que esses direitos garantidos por lei funcionam, muitas vezes, como “letra morta”. No âmbito de uma instituição prisional, esse fator se agrava ainda mais pela primazia da política de segurança e segregação, em detrimento da efetividade de políticas sociais, sendo as mulheres as maiores vítimas desses desrespeitos aos seus direitos fundamentais.
A manifestação do Estado Penal, por intermédio de políticas repressivas, comprova-se diretamente, não somente nas políticas criminais, mas também nas políticas de execução penal. Segue a mesma lógica estrutural das desigualdades sociais, na ampliação do quadro de pessoas excluídas e vulneráveis e, consequentemente, na minimização das políticas sociais, para efetivação de direitos sociais.
Entendendo-se o sistema penitenciário como uma instituição complexa, na qual existe todo um conjunto de normas legais garantidoras de um tratamento humanitário as apenadas, observa-se, na prática, que não há ações para o efetivo cumprimento desse objetivo. A prisão é concebido como lugar de perda da dignidade humana, onde as injustiças se agravam ainda mais pelas concepções estruturais, arquitetônicas e comportamentais do Sistema Penitenciário.
A ocorrência de superpopulação carcerária em quase todas as unidades prisionais brasileiras e os indicadores acerca do alto índice de reincidência criminal, da carência de servidores no sistema penitenciário com qualificação especializada, da falta de tratamento individualizado da pena, da ausências e/ou precárias assistências à saúde, jurídica, social, laborativa, educacional, dentre outros, agravam ainda mais o quadro complexo e perverso do encarceramento feminino brasileiro.
As diversas formas de assistência regidas pela Lei de Execução Penal – LEP – como dever do Estado e direito da pessoa presa – não adquirem status de direitos sociais e ficam à mercê da dinâmica burocrática de funcionamento da unidade prisional e do poder discricionário das direções dos presídios.
Observa-se a existência de precárias condições do Sistema Penitenciário Brasileiro, refletida em inúmeras violações de direitos humanos, apesar da existência de leis voltadas à humanização da execução penal e de diversos tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário.
De uma forma genérica, pode-se dizer que esses avanços legais e normativos não foram alvos de ações na efetivação dos direitos a serem reconhecidos, as atividades voltadas aos presos e presas, dão-se de forma fragmentada e descontínua, não lhes proporcionando o mínimo de dignidade, de respeito à sua integridade física e moral e preservação de seus direitos assegurados em lei. Compreende-se, assim, que o Sistema Penitenciário Brasileiro, tão conhecido pelo simbólico termo de “universidade do crime”, reflete o descompasso entre o seu ideário e a sua realidade.
O Estado não se julga responsável pela obrigação no que diz respeito a condenada, pois além da falta de novos estabelecimentos, muitas ali se encontram já com suas penas cumpridas e são esquecidas. A falta de capacitação dos agentes, a corrupção, a falta de higiene e assistência a condenada também são fatores que contribuem para a falência.
Mudanças radicais neste sistema se fazem urgentes, pois as penitenciárias se transformaram em verdadeiras “usinas de revolta humana”, uma bomba-relógio que o judiciário brasileiro criou no passado a partir de uma legislação que hoje não pode mais ser vista como modelo primordial para a carceragem no país, principalmente quando abordamos a questão das apenadas e o cumprimento da pena.
Estas são algumas das mazelas do nosso sistema prisional feminino, sendo que a partir do demonstrado na pesquisa em tela, percebe-se que a figura da mulher em nosso país, deve ser respeitada e salvaguardada em todos os momentos de nossa vida contemporânea; porém, quando tratamos das apenadas o olhar deve ser diferenciado, sempre percebendo que as mesmas possuem preceitos legais, que a prisão não retira das mesmas, pois enquanto pessoas, lhes é garantido o princípio da dignidade humana.
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