RESUMO
A origem do presente artigo é a paixão pela sua característica polêmica no cenário jurídico. No segundo capítulo foi desenvolvido o assunto sobre a reprodução humana medicamente assistida, abordando suas espécies entre heteróloga e homóloga. A concepção “post mortem” e toda sua interpretação jurídica, respeitando o sistema jurídico brasileiro, partindo da Constituição Federal e seus princípios familiares, chegando até o Código Civil foi colocado no terceiro capítulo. Por fim, o quarto capítulo trouxe uma análise e adequação da legislação civil brasileira a realidade atual e a necessidade de uma regulamentação jurídica.
Palavra chave: Inseminação artificial – “Post mortem” – Consequências jurídicas – Direito Civil - Sucessão
1. INTRODUÇÃO
Por não haver uma pacificação na doutrina e na jurisprudência é que se faz polêmico esse tema, razão pela qual se deu a origem do presente estudo.
A reprodução humana medicamente assistida é dividida entre as espécies heteróloga e homóloga. A primeira utiliza o sêmen ou o óvulo fértil de um terceiro desconhecido, já a segunda utiliza o material genético do casal sendo dividida entre “post mortem” e embriões excedentários.
Porém, mesmo o Código Civil tratando do tema, há lacunas deixadas pelo legislador que ainda não foram supridas diante da falta de uma regulamentação jurídica. Como essa situação não pode ficar à discricionariedade do Poder Judiciário, é que se faz necessário uma regulamentação jurídica para tratar de um assunto tão excepcional como esse.
2. REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA
2.1. Breves considerações
A reprodução humana medicamente assistida é gênero da qual podem derivar duas espécies: a inseminação artificial e a fertilização de proveta, mais conhecida por fertilização in vitro (FIV).
De acordo com o enunciado 105 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, “as expressões ‘fecundação artificial’, ‘concepção artificial’ e ‘inseminação artificial’ constantes, respectivamente, dos incs. III, IV e V do art. 1.597 deverão ser interpretadas como “técnica de reprodução assistida””, sendo, portanto, consideradas três as espécies do mesmo gênero.
Certo é que não se pode dizer que a inseminação artificial seja algo recente, uma vez que a primeira inseminação teria ocorrido em 1884[1], sendo que essa prática só teria sido divulgada em 1970, quando o médico inglês John Hunter, teria conseguido realizar uma inseminação homóloga em uma mulher cujo marido, devido a uma deformidade na uretra, estava impossibilitado de procriar, gerando na época, uma repulsa muito grande pela sociedade e até mesmo pela própria Medicina.
No entanto, no final do século passado e começo desse século é que as técnicas de reprodução humana medicamente assistida ganharam destaque e passaram a ser mais desenvolvidas.
O Código Civil de 2002 ao introduzir no direito brasileiro o tema da reprodução humana assistida, principalmente no que concerne à reprodução humana homóloga, trouxe sérios problemas para o Direito Sucessório, uma vez que o atual Código Civil concede aos filhos gerados por inseminação “post mortem” o direito à filiação, mas os nega legitimação para suceder.
2.2. Espécies
2.2.1. Reprodução humana heteróloga
Neste tipo de reprodução, tem-se a utilização do material genético, sempre a título gratuito, de um terceiro desconhecido, ou com o sêmen fértil de um homem, ou com o óvulo fértil de uma mulher.
Por essa técnica, reúne-se extracorporeamente o material genético masculino e o material genético feminino, no qual será feito a fecundação e levará à formação do ovo, que posteriormente será implantado no útero da mulher.
Nestes casos, a paternidade biológica divergirá com a legal, uma vez que o filho gerado por inseminação heteróloga terá seu componente biológico pertencente a um dos cônjuges e a um estranho.
O tema da inseminação heteróloga foi introduzido pelo atual Código Civil no artigo 1.597, inciso V, no qual trata da presunção pater is est quem justae nuptial demonstrant, ou seja, presume-se que o pai daquela criança gerada pela inseminação heteróloga é o marido da mãe que se submeteu a esse procedimento, desde que tenha previamente autorizado essa inseminação de forma expressa, conforme estabelece o enunciado 104 aprovado na I Jornada de Direito Civil e também conforme o item I e II da resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina.
Caso não houvesse essa autorização, a mulher estaria cometendo aquilo que a doutrina chama de adultério casto, que segundo os ensinamentos de Yussef Said Cahali[2]:
“Temos como correto o entendimento de que inexistirá o adultério ainda que a inseminação tivesse sido feita sem o consentimento do marido.
Assim, a mulher poderá dar causa à separação judicial ao sujeitar-se a inseminação sem o consentimento do marido.”
O mais correto seria afirmar que a mulher estaria violando os deveres do casamento dando ensejo a uma separação judicial litigiosa.
2.2.2. Reprodução humana homóloga
Neste tipo de reprodução, tem-se a utilização do material genético do casal, colhido com o consentimento de ambos.
Em seu livro, Direito de Família, Arnaldo Rizzardo traz um trecho em que Mônica Sartori Scarpo[3], explica essa técnica:
“A técnica da inseminação artificial homóloga consiste em ser a mulher inseminada com o esperma do marido ou companheiro, previamente colhido através da masturbação.
O líquido seminal é injetado pelo médico, na cavidade uterina ou no canal cervical da mulher, na época em que o óvulo se encontra apto a ser utilizado (...).”
Nestes casos, a paternidade biológica coincidirá com a legal, uma vez que o filho gerado por inseminação homóloga terá seu componente biológico pertencente a ambos os cônjuges, não alterando assim as estruturas jurídicas já existentes.
Essa técnica foi introduzida pelo atual Código Civil no artigo 1597, incisos III e IV, e, assim como na inseminação heteróloga, aqui também há a presunção pater is est quem justae nuptial demonstrant, ou seja, presume-se que o pai daquela criança gerada pela inseminação homóloga é o marido da mãe.
Porém, aqui há duas situações distintas: a primeira, prevista no artigo1597, inciso III do Código Civil de 2002, diz respeito à inseminação “post mortem”, ou seja, quando a mulher utiliza o sêmen criogenicamente conservado após o óbito de seu marido.
Já a segunda situação, prevista no artigo 1597, inciso IV do Código Civil de 2002, refere-se aos embriões excedentários, que são aqueles que remanescem de uma inseminação artificial feita anteriormente, ou seja, são os embriões resultantes de uma técnica de inseminação artificial que não foram implantados no útero da mulher e, consequentemente, foram congelados.
3. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL “POST MORTEM”
3.1. Histórico
O primeiro caso envolvendo a inseminação artificial “post mortem” que teve grande repercussão jurídica aconteceu na França no ano de 1984.
Esse caso foi julgado pelo Tribunal de Grande Instance de Crétil, e ficou conhecido como o Caso Parpelaix.
Tudo começou quando Alain Parpelaix, que vivia em união estável com Corinne R., fora acometido por um câncer nos testículos. Advertido por seu médico sobre a possibilidade de esterilidade que seu tratamento quimioterápico provocaria, em 1981, Alain decide depositar seu esperma na clínica de inseminação CECOS.
Durante dois anos, Alain se submeteu há diversos tratamentos, mas nenhum logrou êxito e, em 25 de dezembro de 1983, ele veio a falecer, sendo que dois dias antes ele e Corinne se casaram.
Diante da situação, Corinne e seus parentes solicitaram a CECOS que devolvesse o esperma coletado para que fosse possível realizar a inseminação artificial em Corinne.
Porém, por falta de previsão legal, a clínica se negou a devolução do esperma.
A questão foi submetida a julgamento e o Tribunal[4] se manifestou de forma favorável a realização da inseminação “post mortem”, visto que não havia nenhuma previsão legal contrária à realização de tal técnica.
Embora o Tribunal tenha acolhido o pedido de Corinne, a inseminação não foi bem sucedida, com a demora em resolver o caso, os espermatozoides já não estavam mais potencializados para a fecundação.
Diante desse importante caso, diversos países regulamentaram esse tema, alguns em sentido contrário, como a Espanha, Alemanha e Suécia. Outros, porém, se manifestaram a favor da inseminação “post mortem”, como a Inglaterra e o Brasil.
3.2. À luz da Constituição Federal
A Constituição de um Estado é considerada sua Lei Fundamental, ou seja, é a base hierárquica de todo o sistema jurídico desse Estado.
Por ser a Constituição toda a base do sistema jurídico, toda vez que um fato novo não regulado em lei aparecer, é necessário que os princípios da Constituição sejam observados e respeitados.
O fato novo, no caso, seriam as técnicas de reprodução assistidas, principalmente no que tange a reprodução “post mortem”.
É certo que essa técnica, ao ser introduzida no atual Código Civil no artigo 1597, incisos III e IV, foi contemplada pelo Direito Brasileiro, porém não houve nenhuma regulamentação a respeito, principalmente quando se fala em direito sucessório.
O próprio Código Civil disciplina na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que quando houver a omissão da lei, devem ser observados os princípios gerais de direito: “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”(Grifo nosso)”.
Com isso, não restam dúvidas de que com a omissão da lei sobre a inseminação “post mortem”, os princípios presentes na Constituição Federal devem ser observados e respeitados, já que nenhuma técnica pode afrontar a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, entre outros princípios tão importantes presentes em nossa Carta Magna.
Além disso, a Constituição deve ser a base para a resolução de todo e qualquer litígio que possa vir a surgir em relação à inseminação “post mortem”, bem como a base para a regulamentação sobre esse tema.
3.2.1. Dignidade da pessoa humana
Esse é o princípio mais importante do Direito Brasileiro.
A expressão “dignidade da pessoa humana” foi usada pela primeira vez na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
A partir daí todas as Constituições democráticas passaram a usar essa expressão ou outra que tivesse o mesmo significado, inclusive a Constituição do Brasil.
A dignidade da pessoa humana é um princípio e um fim do Direito, assim como estabelece o artigo 1º da nossa Constituição, sendo esse um princípio basilar, que dá suporte a todo e qualquer outro princípio.
O primeiro viés desse princípio é a proteção da pessoa humana contra atos desumanos praticados pelo próprio Estado.
Porém, esse princípio não serve de orientação apenas para o Estado, serve também de orientação para todas as pessoas, já que ninguém pode praticar atos desumanos.
Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana também está ligado a um mínimo existencial, ou seja, tudo aquilo que é necessário para uma pessoa viver de forma digna, assim como nos ensina Ingo Wolfgang Sarlet[5]:
“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.”
Esse é um direito assegurado a todos, desde a concepção até a morte, inclusive ao nascituro, assim, toda e qualquer atitude que atinja negativamente um ser humano, ainda que não nascido, estará afrontando diretamente a Constituição.
3.2.2. Direito ao planejamento familiar
Esse direito deriva do princípio da dignidade da pessoa humana e está previsto no artigo 226, parágrafo 7º da Constituição.
Esse parágrafo é regulado pela Lei nº 9263/96 que, além de outras providências, traz o conceito de planejamento familiar:
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
De forma simplificada, o planejamento familiar é direito que todo cidadão tem à assistência à concepção, contracepção e a educação sexual.
É dever do Estado garantir a todo e qualquer cidadão o direito de formar uma família, o direito à procriação, e isso inclui o direito de desfrutar dos progressos da ciência e suas aplicações desde que não atentem contra a integridade física e a dignidade da pessoa humana.
E, ao garantir esse Direito, o Estado não pode intervir na decisão sobre ter ou não ter um filho, já que o planejamento familiar é de livre escolha, ou seja, é a pessoa que irá escolher se e quando ter um filho, sem nenhuma intervenção estatal.
Com isso, é possível chegar a seguinte conclusão:
Se o planejamento familiar é de livre escolha, sendo que o Estado em nenhum momento pode intervir, e sendo vedada qualquer forma de coerção, isso inclui também a inseminação “post mortem”, ou seja, o Estado, de forma excepcional, deveria propiciar todos os recursos para aqueles que escolheram conceber um filho após a morte de seu genitor e isso inclui tanto os recursos científicos quanto jurídicos. O Estado, segundo esse princípio, deveria amparar aqueles que por algum motivo decidiram fazer uma inseminação artificial “post mortem”, garantindo, inclusive, seus direitos e respeitando não só o direito ao planejamento familiar como também o princípio basilar da dignidade da pessoa humana.
3.3. À luz do Direito Sucessório
O Código Civil, apesar de contemplar a possibilidade de uma inseminação “post mortem” não a regulamenta, o Código apenas constata a existência de uma problemática e dá uma solução apenas ao que se refere à filiação.
É certo que não há aqui uma desfuncionalização do direito, uma vez que o Código Civil trata de temas modernos, como a inseminação “post mortem”. O que se verifica, neste caso, é a ausência de uma regulamentação jurídica específica, principalmente quando trata-se dos direitos sucessórios daquele concebido após a morte de seu pai.
Ao tratar desse tema no Direito das Sucessões no Código Civil de 2002, o legislador apenas repetiu aquilo que estava previsto no Código de 1916:
CC/1916, Art. 1.718. São absolutamente incapazes de adquirir por testamento os indivíduos não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição deste se referir á prole eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão.
O legislador não poderia prever que, ao elaborar o Código Civil de 1916, com o avanço da ciência, fosse possível gerar um filho depois da morte do pai biológico, só que atualmente essa possibilidade existe.
Tanto no Código Civil de 1916 quanto no Código de 2002, para que haja a sucessão, é necessário que o sucessor seja pessoa viva ou já concebida à época da abertura da sucessão, conforme preceitua o art.1.798.
Isso se dá porque se o sucessor falecer antes do sucedido, não terá mais capacidade para herdar.
Consequentemente, aquele que ainda não foi concebido ao tempo da morte do autor da herança não poderá suceder, salvo na hipótese do artigo 1799 do Código Civil de 2002, que determina ao autor da herança a possibilidade de deixar em testamento legado ou herança ao filho ainda não concebido, desde que determine quem será a genitora desse herdeiro e que esse filho seja concebido no prazo máximo de dois anos, contados a partir da abertura da sucessão, sob pena de caducidade da disposição testamentária, conforme disposto no artigo 1800, §4º do Código Civil de 2002.
O primeiro problema que pode-se observar, neste aspecto, é de ordem prática, uma vez que o Código Civil só autoriza ao concebido “post mortem” ser herdeiro testamentário e não legítimo. Só que no Brasil, ainda não há o costume de fazer testamento, assim como nos ensina Francisco Cahali e Giselda Hironaka[6]:
“Esta espécie de aversão à prática de testar, entre nós, é devida, certamente, a razões de caráter cultural ou costumeiro, folclórico, algumas vezes, psicológico, outras tantas. O brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluidos e más agruras...’Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda, não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos a serem utilizados após a morte. Parece que essas atitudes, no dito popular, ‘atraem o azar...’.”
Como é costume do brasileiro seguir a sucessão legítima e não deixar um testamento é necessário observar aquilo que dispõe o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ou seja, além de observar os princípios previstos em nossa Constituição Federal, o juiz deve, ao analisar o caso concreto, observar os costumes, para que o concebido “post mortem” não seja prejudicado em relação aos demais herdeiros do falecido, principalmente se forem irmãos já vivos ao tempo da concepção. Até porque, não só a Constituição proíbe a discriminação entre os filhos, como também o próprio Código Civil atual (art.1.596) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (art.20) também proíbem.
Desta forma, não se justificaria privar aquele que foi concebido “post mortem” da legitimação para suceder, mesmo que não haja um testamento.
O segundo problema é que o legislador não fez qualquer referência à necessidade ou não de uma prévia autorização do marido para o uso de seu material genético após a sua morte.
Segundo a parte in fine do enunciado 106 aprovado na I Jornada de Direito Civil é necessário que haja uma autorização expressa, ou seja, por escrito do marido para que seu material genético possa ser usado após sua morte:
106 – Art. 1.597, inc. III: para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte. (Grifo nosso).
Além disso, a Resolução nº 1358 de 1992 do Conselho Federal de Medicina também exige a manifestação de vontade expressa dos cônjuges sobre o destino que se dará aos embriões congelados:
V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES
3. No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.
Porém, é necessário chamar a atenção para essa autorização, já que não poderia ser interpretado como uma manifestação de vontade positiva o simples fato de o marido efetuar o depósito de seu material genético em um banco de esperma sem nenhuma ressalva quanto à sua utilização “post mortem”?
A tese[7] encontrada para essa pergunta é que ao depositar o material genético, o marido exteriorizou, manifestou sua vontade de ter um filho, caso contrário não teria depositado seu material, então, aqui, se estaria falando de uma autorização tácita para a realização da inseminação “post mortem”.
Além disso, o próprio marido poderia fazer uma ressalva quanto à utilização de seu material para depois de sua morte, ou seja, ele poderia proibir seu uso para a realização de uma inseminação “post mortem”.
Ou, então, se não fosse da vontade do marido e até mesmo da mulher ter um filho, não haveria motivos para o homem depositar seu sêmen em uma clínica de reprodução.
Diante dessa tese, não haveria, portanto, a necessidade de uma autorização por escrito do marido, na medida em que o mero ato de depositar seu material genético em um banco de esperma já seria a exteriorização de uma vontade e, com isso, estaria suprida a necessidade de uma autorização expressa.
Mas, segundo as lições de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[8] o descumprimento daquilo que está previsto no enunciado 106 não gera a presunção “pater ist est”:
“Se o falecido não consentiu expressamente o uso de seu embrião, após o seu óbito, mas o deixou congelado e a esposa veio a utilizá-lo, embora não seja caso de incidência da presunção de paternidade, será caso de determinação biológica da filiação. Em outras palavras, o filho não ficará sem pai.”
Por fim, o legislador também não estipulou um prazo para que seja utilizado o material genético depositado e, consequentemente, o filho seja concebido.
Dessa forma, é necessário aplicar novamente o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, in verbis: “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, (...).” (Grifo nosso).
Com a omissão do legislador, seria possível aplicar, por analogia, o prazo de dois anos previsto no artigo 1800, §4º do Código Civil de 2002, ou, então, também poderia ser aplicado o prazo de três anos previsto no artigo 5º da Lei nº 11105/2005 (Lei de biossegurança).
Dessa forma, a mulher teria um prazo razoável para realizar a inseminação artificial e, passado esse prazo, o material genético depositado poderia ser descartado.
Com esse prazo, além da inseminação artificial ter maior êxito, o Direito não precisaria esperar “ad eternum” para regularizar a situação da concepção “post mortem”.
4. ADEQUAÇÃO DA LEGISLAÇÃO CIVIL BRASILEIRA À REALIDADE E A NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA
É certo que a legislação vigente não é suficiente para disciplinar as técnicas de reprodução medicamente assistidas, principalmente no que se refere à inseminação “post mortem”, visto que é necessário adequar nossa legislação pátria com aquilo que estabelece a Constituição Federal e a realidade do mundo em que vivemos.
A inseminação “post mortem” é uma técnica de caráter excepcional que deveria ser tratada como tal, ou seja, a regra continuaria sendo que só podem suceder aqueles que já estavam vivos ou concebidos no momento da abertura da sucessão e, excepcionalmente, nos casos de inseminação “post mortem”, os filhos nascidos após a abertura da sucessão teriam direito a suceder.
Assim sendo, é necessário analisar o ordenamento jurídico como um todo, com isso, se o Código Civil for interpretado conjuntamente a Constituição Federal, o direito sucessório do concebido “post mortem” torna-se completamente viável, sem que se afronte qualquer princípio presente em nosso ordenamento e, desta forma, o Código também estaria de acordo com as avançadas técnicas de reprodução medicamente assistidas presentes na realidade em que vivemos.
Porém, isso não afasta a necessidade de uma regulamentação jurídica.
Atualmente, não há uma expressa proibição, como também não há nenhuma regulamentação sobre as técnicas de inseminação artificial, principalmente no que se refere à inseminação “post mortem”.
Pensando nisso, o Senador Lúcio Alcântara apresentou o Projeto de Lei nº 90/99 como uma tentativa de regulamentar as técnicas de inseminação artificial, inclusive no que tange a inseminação “post mortem”.
Esse Projeto trazia em sua redação a necessidade do consentimento de ambos os cônjuges através de um instrumento particular.
Além disso, o Projeto deixava claro que no caso de falecimento do depositante, se este não manifestasse seu consentimento de forma expressa ou deixasse em testamento uma autorização para a utilização do seu material genético para depois de sua morte, esse material deveria ser obrigatoriamente descartado.
Caso contrário, a utilização desse material genético sem uma autorização prévia, ou seja, sem um consentimento expresso seria considerado crime.
Esse Projeto de Lei resolveria parte do problema envolvendo a inseminação “post mortem”, uma vez que, com sua entrada em vigor, seria obrigatória uma autorização para a utilização do material genético após a morte do depositante, não restando mais dúvidas sobre a necessidade ou não de uma prévia autorização.
Porém, esse Projeto de Lei foi apenas uma tentativa de regulamentar a utilização das técnicas de inseminação artificial, visto que ele foi arquivado em 28 de Fevereiro de 2007.
Houve outras tentativas para regulamentar a utilização dessas técnicas como, por exemplo, o Projeto de Lei nº 3638/93 do Deputado Luiz Moreira, Projeto de Lei nº 1184/03 do Senador Lúcio Alcântara e o Projeto de Lei nº 7701/2010 da Deputada Dalva Figueiredo.
Este último projeto traz uma tentativa de regulamentar, exclusivamente, a inseminação “post mortem”.
Com isso, a atual Deputada Dalva Figueiredo defende a inclusão do artigo 1597-A no Código Civil, que ficaria com a seguinte redação:
Art. 1.597-A. A utilização de sêmen, depositado em banco de esperma, para a inseminação artificial após a morte do marido ou companheiro falecido, somente poderá ser feita pela viúva ou ex-companheira com a expressa anuência do marido ou companheiro quando em vida, e até trezentos dias após o óbito.
Esse artigo também resolveria o problema sobre a necessidade de uma autorização expressa para a utilização do material genético depositado pelo companheiro ou marido e vai além, porque o material genético só poderia ser utilizado até trezentos dias após o óbito.
E, ainda, a Deputada justifica o seu Projeto de Lei dizendo que como o planejamento familiar é de responsabilidade do casal, essa situação deveria estar prevista na legislação brasileira, para que assim fossem evitadas situações jurídicas embaraçosas.
Apesar de todas essas tentativas de regulamentação da inseminação artificial no Brasil, nenhuma logrou êxito até o momento, sendo que todos esses projetos de lei foram arquivados.
Infelizmente, ainda não há nenhuma regulamentação jurídica sobre o tema, tornando a situação muito difícil para aqueles que se enquadram nessa situação.
Atualmente, se o marido não deixou nenhum testamento ou autorização para a utilização de seu material genético para depois de sua morte, é necessário recorrer ao Poder Judiciário, mas isso não é garantia de que a mulher irá conseguir uma autorização judicial para utilizar esse material genético.
5. CONCLUSÃO
Diante do avanço das ciências médicas juntamente com o avanço da sociedade, a inseminação artificial começou a ganhar cada vez mais destaque no mundo atual devido à possibilidade das pessoas conseguirem alcançar o desejo da maternidade e da paternidade através dessa técnica.
Ao contrário da inseminação heteróloga na qual não há grandes discussões, a inseminação homóloga traz uma série de dúvidas e questionamentos no mundo jurídico.
O Código Civil de 2002 recepcionou essa inseminação no artigo 1597, incisos III (“post mortem”) e IV (embriões excedentários).
O problema central da inseminação homóloga diz respeito à utilização do sêmen criogenicamente conservado após o óbito do marido, conhecido também por inseminação “post mortem”.
Por não haver uma pacificação na doutrina e na jurisprudência é que se faz polêmico esse tema, já que o próprio Código Civil entra em contradição com ele mesmo e com os princípios da dignidade da pessoa humana e do planejamento familiar presentes na Constituição Federal.
No artigo 1597, inciso III o Código reconhece o direito à filiação daquele concebido “post mortem”, porém, o próprio Código o nega direito a sucessão no artigo 1798.
Embora haja uma ressalva no artigo 1799 que dispõe que o autor da herança pode deixar em testamento legado ou herança ao filho ainda não concebido, não é da cultura do brasileiro fazer testamento, de forma que esse dispositivo acaba se tornando inócuo em relação ao direito sucessório do concebido “post mortem”.
Outra questão relevante sobre o tema é em relação à necessidade ou não de uma prévia autorização do marido para o uso de seu material genético após a sua morte.
Tanto o enunciado 106 aprovado na I Jornada de Direito Civil, quanto a Resolução nº 1358 do Conselho Federal de Medicina preveem a necessidade de uma autorização expressa do marido para a utilização de seu material genético após sua morte.
Em sentido contrário, também é possível encontrar o entendimento segundo o qual o fato do marido ter depositado seu material genético em um banco de esperma deveria ser interpretado como uma manifestação de vontade positiva, ou seja, uma autorização tácita para a realização da inseminação “post mortem”, não necessitando de uma autorização expressa.
Porém, parece mais acertada a necessidade de uma autorização expressa, visto que se para a realização de uma inseminação heteróloga ou para o uso de embriões excedentário quando há o fim do casamento é necessária uma autorização do cônjuge ou ex-cônjuge, por qual motivo não haveria necessidade de uma autorização para a inseminação “post mortem”. Portanto, nos parece infundada a tese de que o simples depósito do material genético em um banco de esperma possa ser considerado uma autorização tácita, já que em todas as outras hipóteses é imprescindível essa autorização de forma expressa.
Além disso, o Código Civil também não estipulou nenhum prazo para que seja concebido o filho através da inseminação “post mortem”. O entendimento aqui é que poderia ser aplicado por analogia o prazo de dois anos previsto no artigo 1800 do mesmo diploma ou então o prazo de três anos previsto na Lei de Biossegurança.
A inseminação “post mortem” é uma técnica de caráter excepcional que deveria ser tratada como tal, ou seja, a regra continuaria sendo que só podem suceder aqueles que já estavam vivos ou concebidos no momento da abertura da sucessão e, excepcionalmente, os filhos nascidos por essa técnica teriam direito a suceder.
Porém, para que se torne viável a sucessão do concebido “post mortem”, primeiro é necessário regulamentar as técnicas de inseminação artificial, preenchendo as lacunas deixadas pelo legislador.
Esse tema já foi objeto de diversos projetos de lei, cujo objetivo era regulamentar a inseminação artificial no Brasil, porém, eles não passaram de tentativas, já que até o momento nenhum logrou êxito.
Atualmente temos previsto em nossa legislação a possibilidade de se reconhecer um filho por inseminação “post mortem”, porém, existem lacunas que devem ser preenchidas para que a vontade do casal não seja submetida à discricionariedade do Poder Judiciário, porém, essas lacunas só serão preenchidas se houver uma regulamentação jurídica sobre o tema.
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7. Notas
[1] Maura Roberti. Biodireito – Novos desafios. In: CAHALI, Yussef Said; CAHALI Francisco José (orgs.). Família e sucessões: direito de família, p.41.
[2] Separações conjugais e divórcio, p.335.
[3] Fertilização Assistida – Questão Aberta, p.10, apud Arnaldo Rizzardo. Direito de Família. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p.523.
[4] Rossini Lopes Jota. Fertilização Assistida. Considerações a respeito da inseminação artificial com sêmen do marido ou companheiro, na viúva ou companheira, após a morte do depositante. Consequências Jurídicas. In: CAHALI, Yussef Said; CAHALI Francisco José (orgs.). Família e sucessões: direito de família, p.1245 e 1246.
[5] Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p.73.
[6] Curso avançado de direito civil, p.264, apud Márcio Rodrigo Delfim. As implicações jurídicas decorrentes da inseminação artificial homóloga post mortem. In: CAHALI, Yussef Said; CAHALI Francisco José (orgs.). Família e sucessões: direito de família, p.1347 e 1348.
[7] Rossini Lopes Jota. Op. Cit., p.1251.
[8] Direito das famílias, p.576.